O CASO DA AGENDA ACHADA – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Conversava com amigos numa dessas biroscas da Beira-Rio quando apareceu um rapaz vendendo uma agenda que achara na escadaria em frente à residência governamental. Pertencia a alguma adolescente, de inicial L, sem sobrenome que a identificasse e cujo prenome soava estranho. Era uma agenda rosa, cheia de quadrinhos ilustrados com potes, flores, xícaras e corações. Em sua capa dura estava pregado um coração cor-de-rosa feito de veludo. Na extremidade havia duas hastes de aço, possivelmente para receber um pequeno cadeado.

Comprei o objeto, apesar de saber que não me serviria para nada. Meus amigos até me censuraram, mas a abriram, curiosos. “Pra quê tu queres isso”? Disseram-me. “Ninguém conhece essa tal L., mas deve ser alguma garotinha gazeteira que veio curtir a tarde na orla”. E em seguida começaram as especulações sobre o objeto, a dona do objeto e os seus escritos, inclusive sobre os seus erros de português. Mesmo assim, levei a agenda para casa.

Confesso que me senti um canalha ao ler cada uma das pequenas redações sobre as lembranças lúdicas e sonhadoras daquela garota em formação que escrevia seus sonhos e os fatos acontecidos com ela de forma tão sincera. Não quis decifrar os escritos em código. Ela contava detalhes dos acontecimentos de sala de aula e das relações de amizade que pareciam coisas extraordinárias. E eram coisas incríveis. Na adolescência todos sonhamos muito, cada momento vivido parece um sonho, cada fato é uma experiência marcante para ser esgotado como assunto numa boa conversa do recreio ou num passeio do fim da tarde. Narrava fatos do seu tempo, da sua família e da sua escola. Embora não soubesse, L. era uma etnógrafa do dia-a-dia de sua tribo contemporânea: a sua própria escola. Falava “que era a mais doida da sua sala e que iria fazer um trabalho muito bacana sobre o marabaixo. Elogiava seus novos amigos e sempre tinha como título das redações “um dia feliz”. Quando o tema era “Eu”, dizia que estava confusa com o que estava acontecendo com ela. Achava tudo muito estranho, mas seu coração lhe dizia que tudo estava bem. Ora achava-se feia, doida, cavalona, bruxa, nojenta, horrorosa e tudo de ruim ora gostava dos seus gritos e também detestava as pessoas preconceituosas, que nunca seriam suas amigas.

Mesmo me sentido um pulha ao penetrar na privacidade daquela agenda anônima, vi uns versos que me chamaram atenção, mas que haviam sido motivo de riso de meus amigos há anos lá na Beira-Rio. Era endereçado a alguém “muito especial”. Diziam: “Te adoro, e não quero ser na sua vida/ O começo de um fim/ Ou o fim de um começo/ Quero ser na sua vida/ O começo de um início sem fim”. Outro poema assim dizia: “Se alguém disser que você/ Nunca fez nada de importante/ Não ligue porque o mais importante já foi feito: você”. Eram versos adolescentes anônimos, mais difíceis de esquecer que os clássicos que li a vida inteira.

Tempos depois um casal bateu em minha porta com largos sorrisos e olhos acesos. Júnior, um menino superativo, filho do meu amigo Raul, agora quase um adulto me disse: “- Tio, meu pai me falou que certa vez o senhor comprou uma agenda lá na Beira-Rio. Vocês riram pra caramba”. Assenti com a cabeça. “- É dela, tio”. Disse apontando para a bonita moça, que encabulada e nervosa me pedia com os olhos a agenda de volta. Então me contaram como se conheceram e como veio à tona coincidentemente o caso da agenda perdida. Ela a queria de volta porque havia sido assaltada por uns moleques drogados em frente à residência governamental. Na agenda estava escrito em código muita coisa que sua memória jamais poderia esquecer. Pedi perdão por tê-la lido um dia e a entreguei à dona como quem devolve um tesouro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *