O Castanho e o Deconforça

José Araguarino de Mont’Alverne

A fazenda Uruguaiana possuía somente dois cavalos de sela, para o campeio das cinqüenta reses que constituíam o então rebanho bovino: o Castanho e Alazão, nomes tirados da própria raça sem pedigree nem qualquer linhagem nobre. Eram ambos pé-duro, com o Castanho mostrando porte e linhas mais elegantes e harmoniosas. Viviam juntos, até quando o Castanho formou lote, com três éguas adquiridas no Aporema.

A fazenda vizinha, também de rebanho reduzido, não tinha para o serviço de campeação, além de um cavalo e uma égua. O cavalo era o Deconforça, animal fogoso, valente e irrequieto. Era um cardão, também pé-duro, imponente, de boa postura e sobretudo rixoso.

As éguas que passaram a constituir a pequena manada do Castanho, alvaçã de uma orelha derrubada, a castanha e a alazã, despertaram cobiça no Deconforça, que não só começou a desejá-las, como também a açular o bisonho garanhão, tomando-lhe as fêmeas. A qualquer hora do dia ou da noite, tanto estivesse solto, lá vinha o Deconforça atormentar o Castanho, flagelar-lhe as costas e ancas, botar-lhe para correr a arrebatar-lhe as éguas.

A vida do inexperiente pastor tornou-se um inferno, como desassossegada ficou a do velho Justo, crioulo nascido na Guiana Francesa e que era o feitor da fazenda.

Muitas vezes, noites escuras, lá vinha o Deconforça, saltando e quebrando a cerca onde pastavam o Castanho com seu lote. E o velho Justo acordando e levantando a toda pressa, saia célere, resmungando malcriações naquela sua linguagem que era uma mistura de patoá com português inculto, para laçar e tanger o invasor, e ainda remendar a cerca se ficasse danificada.

Mas um dia – lembro-me bem, embora fosse um menino de uns oito anos de idade – estava o Castanho pastando com as éguas na relva macia que se estendia por trás do casarão da fazenda, quando lá do capão, entre duas moitas, surgiu o árdego cardão. Se fez anunciar pelo relinchar provocante, que recuou alem do cordão de buritizal que orlava a mata distante.

O sol da tarde declinava obliquamente, do poente a nascente refrigerando a terra como um bálsamo reconfortante, quando o relincho do truculento animal alvoroçou as mulheres e os meninos. Todos correram pressurosos para o janelão da parede dos fundos. Os homens estavam fora, nos trabalhos de rotina e por isso, aos de casa restava apreciar o espetáculo e ver o que ia acontecer.

O novato pai d’égua ao pressentir o perigo iminente, rufiou as éguas para trás, esticou depois as orelhas, levantou bem alto a cabeça e partiu resoluto ao encontro do outro, sacudindo o pescoço, balançando a crina, ornejando como se proferisse palavrões, soltando baforadas, respirando forte e estrepitposamente pelas narinas dilatadas e pisando firme e raivoso o solo com as patas dianteiras.

O cardão vinha com a certeza de abater o inimigo e tomar-lhe o pequeno rebanho. O Castanho, como se imbuído daquele moral que sente o ser de resguardar o que lhe pertence, parecia decidido a não se deixar abater. E disposto a defender suas éguas a todo custo, confrontou-se com o audacioso rival.

A luta foi indescritível, um duelo de bravos, como de dois titãs tirando cisma, corpo a copo, peito a peito, com ardência e firme desejo de vitória, cada um valorizando pela sua combatividade, a braveza do outro, o Castanho querendo a toda força, apagar do cardão a fama de valente.

Depois de meia hora de briga ingente, o cardão viu-se abatido, jogado ao chão, ao ser abocanhado pelo joelho. Quando levantou tropeçando, para correr com as forças que lhe restaram da refrega, foi feroz e cruelmente fustigado por dentadas a lhe dilacerarem a cernelha, as costas, as ancas e os ilhais de onde espadanava sangue.

Correram pelo campo em fora; o Castanho atrás do Deconforça. Passaram pelo vaquejador e apertaram mais o galope, até sumirem na mata.

Uma hora depois novo relinchar se fez ouvir na direção onde antes haviam sumido na mata; relincho diferente, com entonação de alegria e de canto de vitória. Era o Castanho banhado de suor, retornando depois de ter banido para bem longe e definitivamente, o seu velho e pertinaz desafeto. Trazia como troféu, também marcas de dentadas pelo corpo, e encharcada de sangue a grenha que lhe contornava as orelhas e caia sobre a testa.

As três éguas como se compreendessem o inusitado e valente feito, festejaram-lhe a chegada, saltitando, dando volteios, relinchos, meneios de pescoço e por fim, com farejos amorosos, sorvendo pelas narinas, o cheiro forte do suarento corpo do macho.

José Araguarino de Mont’Alverne, escritor, maçon e servidor público aposentado completou 90 anos no dia 02/11.

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