O CAVALO DA DOCA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Dava para ver o tempo passar lá fora, tão lento que era e se afigurando como nuvem na imaginação dos homens e mulheres, dos velhos e das crianças. O sol da tarde queimava, inexorável, o capim das margens da rua, e o cavalo do tio Panga saciava sua fome assim mesmo, procurando um naco de folhas verdes perto das raízes.

O tempo tinha o som rangento das velhas janelas há anos sempre abertas pelo vento. Mas se sabia que eram fechadas à noite por causa dos insetos. O tempo gritava às seis da tarde: – Rééém reeh! Réééém reeh!

Vez por outra uns bem-te-vis zombavam dos poucos passantes que vinham do trabalho na Prefeitura ou do comércio da rua Cândido Mendes. A luz das lâmpadas dos postes de aquariquara ainda estavam apagadas a essa hora. Só depois que o sino da matriz badalada o Ângelus é que as pragas começavam a sair de suas tocas.

Assim mesmo a rapaziada ia jogar bola no campo da praça da matriz até que escurecesse ou que eles se cansassem.

Depois ouvia-se um rádio chiador e logo um silêncio mortal cobria a cidade, para mais tarde ser preenchido pelo coaxar dos sapos de todas as espécies nos charcos dos arredores.

O tempo voltava quase inerte ainda no escuro das manhãs de verão. Cachorros latiam de fome e o cavalo do tio Panga começava sua jornada de trabalho atrelado a uma carroça molenga, cujas rodas rangiam como as janelas e se dirigiam em direção à doca da Fortaleza, em busca de frete entre os barcos que ali aportavam com suas velas róseas, tingidas de tinta de raízes.

Cachos de bananas /madeira de Breves/ potes de barro de Portel/ cachaça do Abaeté/ carne de caça salgada do Bailique/ gurijuba de Calçoene/ óleo de mutamba do Afuá/ paneiros, esteiras e matapis da Pedreira e um sonho do futuro estampado nos olhos das crianças. Tudo chegava com as marés todos os dias naquele lugar.

Um dia o cavalo do tio Panga desapareceu. Foram achá-lo porque exalava um forte odor de chá de erva cidreira, em uma tarde quente lá por perto da praia do Araxá. Ele havia caído na ladeira do torrão, próximo aonde se ouvia o rio bater mais forte, e teve a barriga furada em uma enorme pedra pontiaguda. A força avassaladora da terra rebentou-lhe as entranhas e fez ele trocar com ela o sangue para a perpetuação do telurismo, onde os micro-organismos do solo e as aves de rapina se deliciaram num longo banquete.

Ao avisarem tio Panga que seu ganha-pão jazia mortinho num matagal ele foi caindo, caindo, caindo… E lhe trouxeram água com açúcar. Bebeu aquela mistura salvadora, mas seus olhos se transfixaram no vazio.

Passou a ser um homem insone até a chegada das chuvas, quando seus olhos já secos ardiam em brasa, num tempo mais lento ainda que construíra para si. Tombou mortinho bem ali no pátio da casa após o almoço, sob o som rangento das velhas janelas. Era meio-dia, num dia de equinócio das águas. O mundo estava assombrado e cheirava a cavalo suado.

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