O Futebolês

Por Édi Prado
Confesso: não gosto de futebol. Não assisto nem final de copa do mundo, mesmo tendo o Brasil em campo. Mas começo a ficar seduzido pelo futebolês. É uma linguagem consagrada pelos cronistas, narradores e comentaristas esportivos. A equipe do Aurélio Buarque está “bestinha” com esse enriquecedor glossário.
Não tenho certeza quanto ao autor da frase. Mas é atribuída ao brilhante João Saldanha: “Os narradores de televisão pensam que os telespectadores são cegos. E que os narradores de rádio pensam que o ouvinte é surdo”. Não deixa de ter razão. É que geralmente os “craques” do rádio foram para a televisão e levaram a mania do improviso, do imaginário e não se desfizeram do linguajar bem antigo. Na linguagem policial, por exemplo, o cadáver está de bruços, logo fica em decúbito dorsal. A vítima de trânsito sofre escoriações pelo corpo. Pensei que era na alma. Se for escoriação só pode ser onde, meu Deus? O espírito fica escoriado, também? São os preciosismos.
Mas o nosso caso é o futebol. Este esporte que transforma a chuteira no calçado oficial do Brasil. É a pátria de chuteiras, como dizem. A força de expressão da equipe esportiva está intimamente alterada com o volume da voz. Mas é tão tolerável como a licença poética. Vale tudo e tudo vale. Tudo é perdoável. Afinal o povão quer saber mesmo é de bola na rede do adversário. Quer viver as tantas emoções até a última gota. Até a última nota do apito final. Dizem que o jogo só termina quando acaba.
Já faz muito tempo. Só havia o Estádio Municipal Glicério de Souza Marques. Era o palco das grandes atrações esportivas, embora só se praticasse o  futebol. Logo foi batizado com o ostentoso adjetivo de Glicerão. Era o “próprio da municipalidade”, o gigante da Favela. Quem não o conhecia embarcava num grandioso Estádio. Era o único mesmo. O resto era poeirão. E foi nessa época que se consagraram os grandes narradores e criadores de neologismo do futebolês. Durante os “certames” o “balão de couro” saía para fora, entrava para dentro, subia para cima, descia pra baixo ou então disparava pelas cercanias do Glicerão. E enquanto a pelota, geralmente havia uma só bola, não retornava ao centro do gramado, era bonito ver a criatividade dos narradores, como forma de manter os ouvidos ocupados.
Até aí puro saudosismo. Tempos difíceis. Tudo começou para valer no velho Glicerão. E têm-se a impressão que “fita” daqueles velhos tempos ficou agarrada na memória dos novos “talentos” esportivos. Pode-se dizer que o repertório é o mesmo daqueles tempos, como algumas inovações consagradas pelas famosas equipes da Rádio Marajoara – PRC 5, a voz que fala e encanta o rincão amazônico, além da Rádio Clube de Belém do Pará. Nessa época a voz falava. Que encanto.
Por acaso, como se houvesse o acaso, fui ao Bar do Abreu, quando funcionava na FAB. Na entrada seis aparelhos de TV. Cada uma exibindo jogo diferente. Lá dentro mais três aparelhos. Era como se estivesse no camarote do Bar. Futebol em todos os aparelhos com jogos para todo tipo de torcedor. Galvão Bueno no melhor estilo dele mesmo gritava: pênalti! É pênalti. É pênalti. E tudo mundo vendo que era pênalti, mesmo. Silêncio total. Tensão. Expectativa. Nenhum ruído, como quem não quisesse espantar o carapanã. Bueno anuncia que o camisa 10 se preparava para a cobrança da penalidade máxima. Esse jogador não tem nome. Tem número. O narrador, como que anunciando uma suprema revelação, grita que o camisa 10 chutou com o pé e a bola foi na direção da gaveta do arqueiro, ou onde a coruja dorme. Coruja dormir com holofotes na cara e aquela gritaria é duro.
Diz que o goleiro saltadeformaespetacularepegaabolacomasmãos. Tudo foi tão rápido e envolvente que as palavras saíram assim, coladinhas. Incrível. O atacante chuta com o pé e o arqueiro pega com as mãos. Que proeza genial. Fantástico. Mas “péraí”. O arqueiro não é o atleta que pratica arco e flecha? A trave é retangular ou é em forma de arco? Agora grandes coisas o goleiro pegar a bola com as mãos. Goleiro bom é Iquita. Aquele da Colômbia, lembra? Aquele, sim é especial. Encantou o mundo quando defendeu uma bola de bicicleta, na marca falta do gol. Lembra? E da voz emocionada de Galvão gritando que Iquita pegou com os pés. Isso que é façanha. Impressionante esse Iquita.
Esse Iquita calou o grito de pééégaaa, pôrra. Ele fez milhões de pessoas engolirem o grito. Depois desta saltibanca defesa, ele caiu no chão, informa o narrador. Tanto lugar pra ele cair e foi logo no chão? Esse linguajar cativa. O futebol se transformou num espetáculo também gramatical. Saem como pétalas preciosas pelas ondas do rádio. Tem o caso do centro avante que avançava sem pretensões de gol. Mas o que que é isso, meu Deus do céu?  É sacanagem. Tira esse cara. Bota ele pra fora. Qual é a dele, hein? Avançar sem pretensão de gol?
O que mais chateia assistir futebol pela TV é que a torcida não grita o bastante alto para que o jogador possa ouvir as instruções: chuta, chuta. Passa, passa… olha o ladrãããoooooo! Mas como o jogador vai poder ouvir  com aquele barulho da torcida, fogos, gente batendo na mesa e o juiz enchendo o saco com aquele infernal e inconveniente  apito? Não aprenderam a gritar mais alto.
Mas o melhor de tudo são os comentários: – o certame vai começar. O técnico escalou o plantel para a contenda. Informa no reclame, que a transmissão tem a chancela da Poçobras e outras empresas do ramo. Certame, até onde conhecia quer dizer luta, combate, contenda. Briga, mesmo. E plantel é um grupo de animais de boa raça, em especial bovino e equino para reprodução. Mas eles vieram para o campo para jogar ou procriar?  E chancela? É o selo que se coloca em documentos oficiais, rubrica, sinete. Saudosismo monárquico.
 
E o pior de tudo: quando o goleiro está estirado, humilhado, abatido e a bola no fundo do barbante, o desgraçado grita quase com ódio: pééééégaaa, pôrra. Não queria que o goleiro pegasse coisa nenhuma. Porque não advertiu antes? Só gritam depois que a bola entra?  Eu que era goleiro, sei muito bem o que é isso.
A bola coitada: sobe para cima, desce para baixo, entra para dentro, sai para fora. Não sossega durante os 90 minutos. Depois de tanta briga por ela, quando acaba o jogo, o juiz que não fez nada para merecer, fica com a bola.
Mas o melhor de toda essa história é ouvir o Galvão Bueno  convidar para logo após o jogo, para assistir o capítulo inédito de Vale a Pena Ver de Novo. Aí dá  vontade de meter o dedo na goela e sair rasgando pela beirada.
 
Capítulo inédito de Vale a Pena Ver de Novo, Galvão?

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