O Mistério do Sanduíche do Abreu – Crônica de Fernando Canto

Por Fernando Canto

Certa quarta-feira, depois de uma bela taca do Flamengo no Vasco, o Ronaldo Abreu pediu a sua mulher, Liete, que lhe preparasse um sanduíche, afinal trabalhara o dia inteiro e parte da noite servindo fregueses enjoados e assobiando para as garçonetes no código de mando que ele tem com elas. Passava um pouquinho da meia-noite, e no rescaldo do jogo da TV uns clientes ainda circulavam em direção ao banheiro, próximo ao balcão.

Meia-noite é uma hora tenebrosa para os supersticiosos. Dizem eles que a partir do quarto de hora anterior até o seguinte a ela abre-se um portal no qual se realizam quebrantos e mistérios. Coisas inexplicáveis ocorrem e até a figura do Malévolo pode se fazer presente sem que ninguém veja. Dá até arrepios quando nesse período de tempo um vento bate cortando o ambiente como uma navalha. – É o rabo do Demo, acreditam os mais crédulos. É justo nessa hora que o Satanás circula deixando o sopro frio da noite se misturar ao vento artificial dos ventiladores do bar.

Nesse ambiente imperceptível restavam por dentro do espaço do balcão alguns fregueses contumazes que como sempre tomavam sua “loura” sentados em altos bancos de madeira. E enquanto o proprietário esperava o sanduíche as garçonetes vinham varrendo o salão fazendo aquele barulho peculiar de centenas de fichas de cerveja se arrastando pelo piso cerâmico. Foi então que um freguês também pediu um sanduíche.

Dona Liete trouxe os dois. Quentinhos, quentinhos. O freguês pagou o dele e saiu contente, pois era flamenguista. Ronaldo Abreu deixou o refrigerante e o sanduíche de filé cheiroso feito com carinho só para ele num pires em cima do freezer que separa a área de circulação da área restrita. Mas ocorreu que na hora de comer foi chamado para atender outro cliente que queria pagar sua conta. Demorou apenas uns vinte segundos e voltou.

Enquanto suas pupilas gustativas produziam saliva em excesso, tanta era a vontade de dar uma mordida no dito cujo, ele olhou na direção do freezer e viu que o sanduíche “no capricho” havia desaparecido.

Na área só estavam o sisudo senhor Roberto; o Marra, que é famélico convicto; o enfastiado Ivan Macaco, que só bebe; o cadavérico Gabriel, e o Tatá, que a tudo observava no seu canto do balcão, mas com o olhar já turvo, falando sozinho, enrolando as orelhas e cumprimentando um cara, passando o cartão na mão dele.

Depois que viu que aquilo não era brincadeira de esconder, Ronaldo ficou invocado com o sumiço do seu jantar, feito com tanto gosto pela bem-amada companheira. Deu o alarme, mas ninguém se acusou. Foi então que começou a rolar suspeita. “Não, não fui eu. Onde já se viu?” “Na minha casa tem comida, tá? Não preciso de um sanduichezinho fuleira pra me alimentar”. “Mas tá, não? Eu que gosto de comer com pão!”. “Teu xiri que fui eu, otário!” “Eu acho que foi o fulano”, dizia o Tatá, se esgoelando de tanto rir da parada.

Quatro horas depois a discussão continuava entre goles de cerveja, poeira levantada da varredura e o duro silêncio da Avenida FAB.

Os suspeitos mudavam de assunto, mas vez por outra ele retornava. Um olhava para os olhos do outro e todos hesitavam em sair do lugar. Se alguém não aguentasse e fosse ao banheiro já virava o principal acusado. Ir para casa, então, nem pensar.

O impasse continuou até o Ronaldo pedir pira paz e dizer que ia fechar o bar, pois já estava muito tarde. Aí todos pediram para ele anotar a despesa na conta e saíram juntos, enquanto os primeiros raios do sol apareciam no oriente. Até o seu Roberto, o mais sério de todos os suspeitos, foi para casa meio cambaleante. Mas ao dobrar a esquina da Tiradentes soltou uma risada seguida de um arroto tão grande que ecoou em toda a FAB. Até hoje a Dona Liete suspeita dele nesse roubo que ainda é um mistério a ser desvendado pelo investigador Viana.

  • Com papilas ou com pupilas…o texto é do Caraió
    Para ser lido onde tal fato ocorreu …na criatividade desembriagada do Fernando….Muito bom!
    Bom demais!

  • Um texto com a cara do bar do Abreu a descrição dos atores foi de uma precisão cirúrgica quando se refere ao marra e ao Roberto o ambiente com as garçonetes varrendo o chão quem conheceu o BAR DO ABREU com certeza irá fazer uma viagem ao amigo passado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *