O papel da Defensoria Pública na reinvenção do acesso à justiça em tempos de coronavírus – Por @giovannaburgosr

Por Giovanna Burgos

No mês de maio é comemorado o mês do Defensor e da Defensora Pública. Maio verde, assim chamamos, para lembrar que a nossa cor é a da esperança. Em tempos de pandemia do coronavírus, não há muito o que celebrar. Talvez, nem seja muito justo falar de esperança. Mas talvez haja espaço, no entanto, para fazer o que melhor sabemos: refletir a sociedade sob o olhar dos marginalizados e como são costumeiramente excluídos, por meio de vários mecanismos, dos processos de decisão que os afetam.

O vírus espalhou angústia e foi expondo, de maneira crua e sem pudor, as desigualdades que assolam, principalmente, o nosso país. Acabou, involuntariamente, reforçando o quanto as políticas públicas e as medidas tomadas nos centros de poder, aí incluído o Sistema de Justiça, são majoritariamente pensadas para os visíveis.

E o que a pandemia vem nos ensinando sobre acesso à justiça? Essa reflexão toca especialmente à Defensoria Pública, porque a nossa realidade é permeada de histórias invisíveis que, muitas vezes, não saem dos nossos pedidos e das nossas demandas, pois sequer são apreciadas. O que vem sendo identificado é que o acesso à justiça, que já era algo longe de se tornar uma realidade ansiada, talvez esteja agora ainda mais distante.

Em razão da necessidade de obedecer às normas sanitárias de isolamento social, temos enfrentado desafios para chegar até as comunidades para nos fazer presentes. Mal firmamos a nossa identidade, principalmente no Estado do Amapá, tendo em vista a realização muito recente do primeiro concurso público para a carreira, já temos a inquietante responsabilidade de reformular a nossa atuação, mesmo sem condições estruturais adequadas e o aparato tecnológico necessário. Assim, foi nos cobrada uma criatividade para além da ideia saudável da criação, mas porque era realmente a única saída disponível para não sermos mais um obstáculo para o acesso à justiça.

Uma prática exitosa, que vem reformulando as relações sociais no Estado, idealizada por Defensores e Defensoras Públicas que estão atuando em um grupo de trabalho voltado especificamente para o combate à COVID-19, é a realização de audiências públicas digitais com as comunidades mais atingidas pelos efeitos da pandemia, como é o caso da do Mucajá e Macapaba. O espaço é destinado à educação em direitos, à conscientização sobre a importância das medidas de isolamento social e à consultas jurídicas sobre demandas comuns, em um processo emancipatório de empoderamento inédito no Brasil.

O trabalho, aqui, não para. Os atendimentos seguem por meios remotos, por telefone e aplicativos virtuais. Constantemente, há relatos de que o acolhimento dos Defensores e Defensoras, ainda que à distância, tem sido bem-vindo na falta do contato humano, nossa principal forma de nos fazer presentes. Mas também preocupa a redução constatada na procura pela instituição.

Já cuidávamos de inúmeras vulnerabilidades (econômicas, sociais, informacionais e de gênero, por exemplo), ou mesmo hipervulnerabilidades, quando há a dura convivência de mais de uma delas. Agora, o nosso desafio é cuidar também, já que não houve o desaparecimento das outras, ao contrário, da vulnerabilidade digital ou tecnológica.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que uma a cada quatro pessoas não tem acesso à internet no Brasil e quase a metade das pessoas não têm acesso à rede. Na Região Norte, quase quinze por cento daqueles que não acessam a internet não têm acesso ao serviço nos locais que frequentam (Fonte: Agência Brasil). Já se falava, inclusive, em desigualdade digital (“internet inequality”), que passa pelo direito humano fundamental ao acesso à conexões modernas e velozes.

Fato é que, com novos tempos, mudanças são exigidas. Mas é preciso reinventar o acesso à justiça sob o olhar de quem já conhecia com propriedade as suas barreiras. É preciso reinventar o acesso à justiça sob o olhar da Defensoria.

Mudanças que relativizam direitos e flexibilizam prerrogativas não podem vir travestidas de futuro. O perigo mora no retrocesso. Claro, não se discute a necessidade de seguir em frente, com as adaptações necessárias, mas temos que cuidar para não normalizar uma vigilância sombria sobre o privado e não dispor de direitos que não nos pertencem.

Nunca foi tão urgente ouvir, no processo de tomada de importantes decisões, aqueles e aquelas que não existem na realidade virtual. Se não é para eles e elas, grande maioria da população brasileira, que padece com as agruras das desigualdades, para quem, de fato, estáse garantindo a justiça? Podemos, agora, falar, igualmente, da necessidade de se garantir a cidadania digital.

A Defensoria Pública tem, por lei e pela Constituição, o papel de promoção de direitos humanos e da cidadania e redução de desigualdades sociais. O nosso papel, portanto, na reinvenção do acesso à justiça, é resistir a uma suposta evolução, que só beneficia quem dele não precisa. É tensionar as esferas de poder, para permitir que os que mal tinham cidadania agora tenham, além dela, existência digital.

O esforço é, portanto, agora, em dobro. Por isso, é fundamental, para neutralizar os incontáveis danos que virão, contar com uma Defensoria forte e autônoma. Para que a justiça chegue efetivamente não só nos celulares e dispositivos, mas, principalmente, nas pessoas.

* Giovanna Burgos – Presidente da Associação das Defensoras e Defensores Públicos do Estado do Amapá

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