O Quadro – Conto de Luiz Jorge Ferreira

 

Conto de Luiz Jorge Ferreira

De Lisboa a Londres fui andando.

A nado fui de Belém a Macapá. Voando fui de João Pessoa a Quixadá. Hoje neste apartamento pequeno em que as paredes, pintadas de roxo, têm muitas manchas amarelas provocadas pela umidade Amazônica. É que sei que o tempo passou, enquanto eu calçava e descalçava os sapatos surrados. Manchou-me também.

Hoje corro descalço, olhando de suas janelas que dão para a Av Ernestino Borges, as da frente. A da cozinha, abrem-se para a Rua Iolanda Marcucy. A do banheiro, dela se vê a Rua 14 de Março, e a da cozinha tem a paisagem da rua Cel Lisboa, com o telhado descorado da casa do Braz.

Estou em meus oitenta anos. A cabeça já funciona aos solavancos e os cabelos, estão úmidos, produto desta fina garoa, que teimosamente chove sobre mim. Ela me abriga a usar permanentemente um guarda chuva aberto, mesmo dentro do apartamento.

Caminho devagar, entre os dias e as noites. São seis aparelhos de televisão ligados, cada um em um canal. Oito rádios sintonizados nas oito maiores capitais do mundo que enchem a casa de um barulho estéril de Mandarim, Russo, Árabe, Japonês, Hebreu, Grego, Inglês e Italiano. Tenho dois sois, um amarelo e outro castanho, que se reflete em um jogo de espelhos, que dependurei entre a cômoda e a estante cheia de bíblias sempre movimentadas as suas paginas por um amontoado de ventiladores, que mantem a temperatura da sala quase meio grau abaixo de zero.

Caminho devagar entre as esculturas Maias e Incas que coabitam comigo na sala, entre cabeças empalhadas de orangotangos e chimpanzés. Por isso perco com facilidade meus chinelos. E quando vou pé ante pé para o local em que guardo meus discos e os ponho na vitrola em trinta e oito rotações por minutos rangem as tabuas do assoalho.

Fazem dueto com os estalos de minhas articulações, quase enferrujadas. Ouço Mario Lanza em um dueto estranho com minhas próprias barulheiras. Abro as janelas muitas vezes e o ar de fora bate na minha própria umidade e volta criando um pequeno ciclone que apelidei de “Equadorzinho”.

Um dia lendo uma das dezenove Enciclopédias e fazendo cálculos com uma régua fisiogeográfica percebi que os trópicos de Câncer e Capricórnio cruzam-se aqui, talvez por isso, este prurido que me castiga determinados dias do mês, e que me fez ficar amigo de uns pelicanos, que também se coçam.

Eles pousam na janela, aquela que abre para a Avenida Ernestino Borges, em alguns dias do mês. Comecei a morar aqui quando fiquei viúvo. Ela morreu e deixou um enorme vazio que preenchi com garrafas de Rum e desenhei sua silhueta.

Para formar o par de peitos foram necessárias mais de cinqüenta garrafas. Era uma mulher abastada que deu-me dezoito filhos e pretendia dar-me mais se não se houvesse tocado fogo lixando tanto as unhas. Quando fiquei só pretendia mudar-me o mais cedo possível, mas a amizade com as águas vivas do lago do Ibirapuera e a admiração pelas borboletas do Pacoval foram prolongando minha estadia.

Hoje sou parte deste Quadro. E olhando a pintura de um quadro feito por Salvador Dali, dependurado no vão entre a porta do nosso quarto e o inicio da escada que nunca subi, nem sei aonde vai dar. É que percebo que envelheci.

Não tenho mais vontade para trocar de roupa e agora me cubro, com pelos espessos e longos cabelos, que pouco molho, mas estão sempre úmidos.

Como muito pouco e durmo quase nada. Quando a saudade aperta abraço-me a imagem dela feita de garrafas e assim fico por um tempo.

O que tem me cortado demais o peito e o púbis. Mas eu não ligo. O que me incomoda são os filhos. Estes que estão empalhados pelo corredor entre as cabeças empalhadas de Orangotangos e Chimpanzés.

Amanha irei para Osasco aonde enterrarei o Quadro.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial II Edição – São Paulo – 2017.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *