O Resgate – Crônica de Fernando Canto

 

Crônica de Fernando Canto

Alguns verão em ti uma caricatura
E sedentos da carne voltam sempre o rosto
À anônima elegância da humana ossatura.
(Charles Baudelaire – Dança Macabra)

Quem és tu, mulher da noite úmida, azulada de semáforos clandestinos, arquetípica e idolatrada por todos os bêbados bisonhos de risos ortodônticos. Teu lugar é a resposta para os meus anseios ecológicos que ora jazem na pedra do IML, inertes e sem pronúncias de palavras, assim, clivadas no porradal de um dia de depressão e raiva que eu deslembro.

Teus pés outrora um ponto de apoio ficaram presos na grade da janela quando os rotwaillers te encurralaram no jardim que abriste após quebrares a tramela da cancela oculta, que só tu sabias depois de mim.

Nenhuma entrada é tão fácil de acessar no meu jardim se a vigilância for um policial dopado de angústia e solidão, penetrado de sóis artificiais na madrugada. E teimas, tu, mulher de ranço impregnado nas tuas veias, em lacerar meu coração outrora transplantado e agora retalhado a faca e costurado com a singela singer do subúrbio, em tempo de equinócio, com a linha do equador.

Ora, eu que cheirei as “Fleurs du Mal” e vi a destruição dos meus tentames literários ao constatar ainda hoje que “sans cesse à mês côtes s’agite le Démon”. Meus olhos eram os de Charles, que viera um dia de Mitilene e Lesbos, após poético colóquio com Terpandro, Arião e Safo.

Ora, eu que fiz libações de vinho – um Charles Heidsieck Blanc, safra 1995 – e gestuei peripécias fesceninas no caneco dos generais (ainda que trague as marcas do peito lacerado, esfolado da tortura), hoje sou um enigma esfíngico/ paranoico à mercê dos binóculos, um eremita cadavérico que se transforma em relógio e vaga na escuridão que , ainda bem, já se dissipa no jardim onde estão os cães e a tua sombra na cancela. Fiz tudo por ti, eu juro. Eu juro. Não sou mais vigilante de mim mesmo. Refuto o ardor do Santo Graal e me embebedo de antigas memórias contemplando o inútil renascer de tua ternura, algo que me deves e não naturalizas em mim devido a tua fobia do Hades, ainda que me queiras Cérbero.

Ora, teu coração está cheio de peste, catorras pretas e joaninhas coloridas. Teu coração parece estar traspassado à espada, à ambição do ouro e a um avião de sexo, onde chupas testículos de chumbo e gozas com a penetração das asas de um serafim.

Quem és tu, mulher bendita, que regurgitas pelos poros sonhos inefáveis, que arrota preces e ofereces sexo em troca do amor fugaz – pérola trincada no mar do teu remorso?

Ora, um insight veio e eu me lembrei de que o amor tem a consistência do mercúrio, que é chuva em terra plena quando eu me separo ouro de ti. Eu avanço ao pólen, ao orvalho sobre tuas ramagens. Eu tenho pressa, eu vou, eu vou, eu vou. Eu vou dourado de manhãs jogando a sombra longa nos significados das lamas gulosas que deixei nas velhas trilhas. Resgatado pelas rutilantes luzes do equador eu vou. Eu vou, cônscio, amalgamado de poesia. Eu vou, eu-lírico e sem rastros.

Algo me espera.

Eu me visto, então, de branco e prata; amarro meus cadarços e vou. E só, sou líquido, sou água do Amazonas, sou vinho de bacaba, sou – às vezes – um açaí do grosso, farinha de estrelas na imensa nebulosa que avisto, pois é noite. Eu me preparo, desamordaçado e belo como nunca, para embarcar na nave que o Cósmico enviou e que pousou dentro de mim.

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