O RETRATO AZUL – Conto porreta de Fernando Canto sobre sua mãe

Conto de Fernando Canto

E agora estou aqui, engolindo este silêncio seco, sem saber o que dizer para você.

Por tantas vezes você me acariciou os sonhos e os cabelos e me aparou de quedas vertiginosas, falando em anjos guardiães. Às vezes, em pequenos pedaços de iracúndia você me insultou. – Burro, não é assim, é assado, é grelhado. Eu ouvindo, eu burro. Você me ralhava, dizia até com ponta de aspereza para que eu não me importasse com a perda das coisas, as que considerava tolas. Eu parado ouvia, mas dentro a cachoeira vinha abrupta e profusa. Havia de sentar ou fugir, me rebelando do trato ou a enchente me afogava.

Agora estamos nós dois sem saber o que fazer… Você aí sentado nessa rede com olhos brilhosos de lágrimas, olhando fixo o quadro que lhe demos de presente de aniversário. E você tem vergonha de chorar porque homem não chora, ainda mais um homem como você que sempre foi forte e capaz de transpor os obstáculos e desarmar, sorrindo, tantas armadilhas.

Você tem lembranças e elas são fantasias de nuvens. Você quer concreta a sua lembrança. Ela surge na forma que você quer. Ela vive em sua memória de um jeito estranho, pois o cenho não esconde a projeção e você a sente como se tivesse medo. Mas medo você não tem nem está triste, apenas lembra.

Eu ao seu lado toco em seus cabelos e na sua dor. Você me abraça. Nós, é óbvio, não temos a mesma idade nem a mesma opinião sobre os golpes que o tempo deixa, pois os ventos mudaram para outras pontas da grande rosa e os valores brilham em forma e conteúdo ou, como se diz comumente, qualitativa e quantitativamente. Hoje você vale o brilho que sabe demonstrar com sua esperteza. Hoje os fios do bigode são meros adornos de vaidade e moda. – E não culpe somente as mãos do mundo. Cuspa, se lhe aprouver. Eu vivo a contragosto esses valores e trago em mim a amargura do meu tempo. No entanto, estou aqui junto a você, agora sentindo uma reação esquisita, frente a essa tela.

Minhas lembranças não são mais nítidas que as suas porque o amor que eu sinto é diferente. Você esteve mais perto, então uma imagem lhe traz uma série de outras mais claras, mais tangíveis.

Para mim muita coisa é confusa. Os sentimentos da monocromia em azul saltitam sobre o retrato emoldurado. Consigo ver um tempo que não é meu e me sinto intruso perscrutando o que pertence a seu mundo, me metendo, penetrando no interior de seus sentimentos e elaborando apenas fantasia.

O retrato espelhado em seus olhos mexe com você até a alma. Um doce para mim se sou capaz de adivinhar. Você segura a minha mão com força como se de longe estivessem lhe chamando. Você está em dúvida. Eu respondo. Não quero que você vá. Mas quem sou eu para lhe impedir a vontade se você ama, se você quer ir.

Minha lembrança migra para uma tonalidade tênue e vejo você sentado no pátio de nossa velha casa de madeira conversando com ela sobre as atividades dos filhos, sobre a TV em preto-e-branco que desejam comprar, e especialmente sobre sua situação financeira que não está nada boa, desde que foi obrigado a vender seu comércio pra pagar dívidas contraídas pelo sócio mau-caráter.

Vejo vocês saindo da missa. Uma, duas, mil esperanças a cada domingo. Um almoço farto é imprescindível nesse dia da semana. Você diz orgulhoso:

– Em minha casa nunca faltou comida. E agradece a Deus. E come as delícias que ela fez.

Embora sua risada fosse discreta, os olhos demonstravam a cor do seu pensamento feliz. Havia tristeza, é claro. Ninguém vive sem sentir o gosto dos diferentes venenos que ingere. Porém, há remédio para tudo, isso até hoje você diz. Você pratica e ensina que há antídoto para as agruras; que existem meios e formas para superar qualquer barreira da vida; que não é necessário beber veneno, mas se for inevitável engole-se aos poucos para depois vomitá-lo todo. Então você vomita. Muitas passagens da vida são venenosas e a ação do tempo é emética, aprendo.

Não posso me arriscar a duvidar. Você foi feliz e sofre hoje. Todavia, a sua felicidade acabou no momento em que a paixão incrustou definitivamente, acho, assim como a tinta na parede, como o asfalto no leito da rua, como a cola no papel. Ora, você sabia da durabilidade das coisas porque consertou mil objetos. Sabia que nem tudo é resgatável, gastou horas e sentimentos lidando com minúcias para não esgotar a paciência. Perseverava sempre, até o limite técnico de sua vocação de engenheiro e alma de artesão incomparável. Sim, você sabia que a parede tomba com a violência do temporal, que a tinta escurece e descasca com as intempéries, que o asfalto rompe com o tráfego dos veículos, que a rua desnivela com as erosões, que a cola desgruda com as variações da temperatura, que o papel rasga e amarelece com o manusear constante. Você sabia tudo isso, mas levou tempo para admitir.

Você embala a rede que me roça as pernas. Eu afago seus cabelos brancos com uma ternura de me causar surpresa. Nós sempre fomos amigos, mas havia uma barreira. Talvez a do excesso de respeito, pelo que a aproximação arrefecia. Foi preciso tempo e esta situação para que eu me decidisse amá-lo com toda a força do meu coração, entendo-o agora, dizendo dentro de mim e, se eu quiser, bem alto e retumbante, um Eu Te Amo para impregnar este quarto onde mora a intimidade de sua memória, onde você cultiva sua solidão particular.

Há uma relação inquebrável, uma linha, um foco de luz entre seus olhos e a tela. Nela você penetra aos poucos. Eu deixo, porque a luz é sua, a transcendência é clara. Suas mãos emitem uma aura azul.

Você não percebe que eu desliguei a luz. Você enxuga uma lágrima cadente com a mão esquerda no rosto brônzeo e transmigra com os olhos fixos para dentro da figura tão bem pintada por um artista amigo da família. Com as mãos em seus cabelos acaricio, talvez, a necessidade de seu sonho. Sinto que alimento sua satisfação, embora a sua dor esteja explícita no cenho errado, duro, mas substancialmente alinhado agora. Você não parece ter a idade que tem. Eu observo seu rosto pelas réstias de luz fugidas da sala vizinha, através das frestas das tábuas. Há nele inevitáveis rugas. Mas um sorriso paira em sua boca. Um enigma.

O passado corre no quarto como um rio de volta para a nascente. Recordo suas velhas histórias. Longas e quase inacreditáveis. Histórias amazônicas, histórias que, sabemos, são verdadeiras, pois você nos ensinou que a mentira não é necessária, é sempre uma coisa dispensável. Todas elas traziam a liberdade sonhada nos quintais. Todas abrangiam um mundo particularizado, impenetrável porque aconteceram antes da devastação da floresta, o que tanto o entristece e o preocupa quando assiste aos jornais da televisão. Fogo, antes, só o fátuo – a ilusão. Eu criança e mesmo já adulto absorvia os mistérios dos seringais, as técnicas descobertas por extrema necessidade no meio da selva, e o idolatrava quando contava das farras feitas com seus irmãos, sempre aprontando alguma. Ríamos muito no final dessas histórias.

Um sentimento enorme tomava conta de nossa família. Você encanecia rápido, dizia que não era de preocupação, era genético. Mas eu sabia. Sabia quando você se preocupava, porque depois do almoço, quando mamãe saía para o trabalho, você ficava se embalando numa rede larga, de cor branca, fixando a vista em algum ponto da parede, assim como o faz agora na direção deste quadro. Depois saía sozinho, de bicicleta, ganhando a tarde.

Só você e ela sabiam das dificuldades que nos afligiam. Nós, os filhos, tínhamos o que queríamos e o que pedíamos no limite de nossa pobreza. Nunca reclamamos de nossa infância. Éramos felizes e tentamos até hoje dar um sentido racional a ela, sem, contudo, perdermos o vínculo do encantamento pretérito com a chuva de desencantos que às vezes caía sobre nós. Há um remédio para cada veneno. Lembra? Você não lembra. Está quintessenciado.

Será que erramos com a ideia do presente? Assim você sofre demais, deixando transparecer a debilidade do corpo que balança a rede. Você ainda me abraça e olha o perto/longe. Está lá dentro conversando com ela, caminhando nos paralelepípedos da cidadezinha do interior, de mãos dadas, com seu termo de linho branco, galante e contente, demonstrando o seu amor, inclusive às solteironas invejosas das janelas coloniais. Você sobe a ladeira com um sorriso de homem maduro. Mais alegre, ainda, é ela, a professorinha da Prefeitura Municipal, a desfilar com a graça de seu andar miúdo e um sorriso fulgurante, ajeitando de vez em quando a rosa amarela presa aos cabelos negros. É final da tarde de domingo.

Você a imagina assim, como no retrato. O retrato azul, transposto e ampliado de uma velha foto da década de 40. Minha impressão é que você confunde o real e o imaginário. Permanece o silêncio. Nós dois aqui.

Ah, falta o violão, imagino eu, para que você dê uns acordes harmônicos e cante músicas do seu tempo. Valsas, valsas. Mas o silêncio é seco. É áspero. É doído. Acho então que não estou errado. Seu semblante está feliz, está tocando, está ouvindo músicas. Não há amor sem música. Para ela havia muitas, dessas que entrelaçam e fortalecem uma relação aparentemente ingênua.

De repente você escuta o apito de um navio passando longe. E a convida para viajar, conhecer outras terras, começar a vidinha a dois. O apito do navio transporta o engano do futuro. Você é um aventureiro nato. Não desiste nunca. Mas não impõe. Os dois vão viajando trinta e poucos anos. E gostam. Não enjoam jamais da cara do outro. As brigas que se sucedem são só de vocês. Ai daquele que meter a colher.

Até parece que ela vive. Você devaneando me faz acreditar. Eu acredito. Você me diz: – Eu não estou triste, só lembro.

Lembrar é fato legítimo. É viver o presente com lucidez. E você vive. Apenas viajou.

Paro de afagar sua cabeleireira branca. Você me abraça e não me olha. Sei, no entanto, que está sorrindo, que está feliz. Você levanta, me dá três tapinhas nas costas e vai assuar o nariz no banheiro.

Acendo a luz fluorescente. Olho o retrato mais uma vez. O quarto está repleto de luz. Mamãe está sorrindo na tela com os olhos molhados de ternura.

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