O SALTO DO JAGUAR (Conto de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto para Cristóvão Lins

A montanha parece c2363392e-51ad-3d98-aa65-7cfb26a36873ortada ao meio pela densa cerração. Nuvens brancas sobem pelas folhas das árvores devagar, negando a estação, esfregando as copas delgadas de um verde diáfano que mudam de nuance conforme a terra gira e o sol aparece.

O homem foge, subindo cada vez mais a montanha, que para ele significa o topo do mundo, tanta é a sofreguidão impingida pela vontade de fugir, pois tem que valorizar sua vida e não importa o prejuízo inevitável de meses de trabalho. Importa, sim, atravessar a serra e encwusongtigerontrar alguém que não fale apenas as onomatopeias da floresta. Naquele momento ele compreende o menor dos motivos para ir embora e abandonar aquela vida de predador profissional. O motivo não foi a perda da arma de fogo nem a luta que teve com um grande felino ou o golpe que lhe dilacerou o peito, afinal venceu. Era por isso mesmo um caçador, um homem destemido e vaidoso dos seus atos.download

Andar montanha acima e fugir ao menor fragor dos elementos selvagens é a meta, mas o espanto permanece e conta e fica à vista no brilho e na cor do suor que o corpo solta. A mata não perdoa e lanha os membros e o rosto, mesmo que ele rasgue a trilha a fio de facão. Ele anda sem parar. Está exausto. Mas a hora é premente e é necessário o passo rápido das botas sobre a organicidade das folhas podres no solo da enorme campânula de árvores que é a montanha. Ela só falta soar para lhe dizer o tempo que resta para chegar a uma cidade, vila, povoação ou qualquer acampamento de garimpeiro. Trocaria tudo por um bom guisado de galinha com arroz, um cheiroso café e uma rede armada na varanda da casa que porventura lhe abrigasse.Kraven2sits

O caçador não pode esmorecer nem ter medo dos elementos da mata. Sabe que essas coisas existem e que pode ser uma vítima em potencial delas porque é um caçador, um predador, e que só agora se dá conta de tamanha maldade para com os animais. Foge, mas não se sente um covarde. Está ali por conta e risco da profissão, pelo dinheiro que pode ganhar com o couro dos felinos. Nesse ofício aprendeu que a violência do homem é semelhante a dos animais: todos caçam para sobreviver. A lógica simplória justifica os meios para matar. Tem a perfeita consciência que é um invasor e que pode até mesmo estar sendo caçado por índios.showest-thunder1 E se eles o pegarem não vão perdoar. Já ouvira falar da violência do seu caráter e das lendárias torturas que cometem contra caçadores. Mas já vira, também, filmes de guerra em que soldados da América praticavam carnificinas contra índios daquele país. A lembrança dos filmes lhe agrada. Ela surge em sua mente como uma espécie de vingança por antecipação.

O homem fugindo é como o vento. Talvez assim como o pensamento. Vai se perdendo pelas forquilhas das árvores, penetrando pelas folhas, ganhando as altas frondes e se misturando na cerração. O som de cada passo em fuga traz uma lembrança.images

A lembrança lhe faz cerrar os olhos por três vezes. Não pode se livrar do antigo tique nervoso. E projeta o pensamento para os dias que passa na mata, na sua voluntária solidão de caçador por necessidade de sobreviver. A imagem da mulher amada tomando banho com ele no rio do seu lugar percorre como um raio em sua cabeça, em sua solidão. Ela surge quase todas as noites nas labaredas da fogueira. Ah, essas imagens… Concebem uma figura humana brotada do húmus da terra, de um solo mágico que faria tudo nascer. E sonha com ela como um dia sonhou com a companheira o homem ancestral. Mas nem barro tem nestes rios encachoeirados. Não esculpiria nas pedras que se abrem no caminho das corredeiras. Deixaria quedownload (1) a própria natureza se encarregasse de fazer figuras que lembrassem formas femininas, pois que ele é apenas um homem comum e não um deus ou ente da floresta. Sua arte está apenas matar felinos. Por isso agora foge, recolhido numa concha de lembranças. Torna-se quase um ser invertebrado em sua fuga. Vai vivendo nos passos que dá e nas lembranças que o atormentam. Um inseto em mimetismo, a engolir impulsos de palavras não articuladas.

De súbito, as presas do jaguar crescem em seus olhos. A surpresa e o impacto. A consciência esvai-se. O não essencial para a fera agora é parte da montanha.

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