O Sanitarista (Conto porreta de Fernando Canto)

Antigo Aeroporto de Macapá – Foto: site Mais Paisagens Aéreas.

Conto de Fernando Canto

Depois de trinta anos ausente, o médico E. E. Spíndola avistou da aeronave o novo aeroporto da sua cidade natal e a placa de aço com os dizeres “Aeroporto Internacional das Ilhas Redondas Alberto Alcolumbre”. O dia estava amanhecendo em Macapá. Ele apanhou um táxi e mostrou o cartão do hotel ao motorista. Falante que só ele, o taxista lhe disse que pegaria a Rua Comandante Barcellos e seguiria pela Avenida General Ivanhoé, onde existira uma velha igreja em homenagem a São José, passaria por trás do Estádio Monumental dos Góes até o Marco Zero “Presidente Sarney”. Informou-lhe que passaria na rotatória da linha do Equador “Janary Nunes”, que atravessaria a Praça dos Capiberibe pela orla da Praia do Camarão no Bafo, e iria para a Cidade Evangélica para poder contornar novamente a orla em direção ao hotel, pois a Rodovia Praiana estava interditada em diversos pontos.

Ouvira no monitor do carro que havia uma greve de professores estaduais a reivindicar 501% de aumento de salários e a aquisição de instrumentos pedagógicos mais modernos para seus alunos. Também fora informado pelas redes sociais que no centro da cidade estudantes universitários e populares preparavam desde o dia anterior uma manifestação “pacífica” contra a falta de emprego e a corrupção. O médico fez uma cara de espanto, mas concordou com o taxista e seguiram. Ao chegarem ao destino, viu que o hotel tinha quase o mesmo nome de antes: “Macapá Hotel Vale do Tumucumaque”, mas que era agora um prédio de dezoito andares.

Era cedo, então tomou o seu café no restaurante e esperou a hora do evento que participaria. Perto das 09h00 adentrou o suntuoso salão de convenções “Ernestina Libório” e, para a surpresa sua, encontrou velhos amigos empaletosados em busca dos mesmos interesses profissionais.

Eram todos médicos sanitaristas preocupados com um surto de varíola que grassara inexplicavelmente na região, uma doença que parecia extinta há mais de cem anos. Realmente era preocupante. Na foz do rio Amazonas uma peste medieval dessas poderia ser muito perigosa para todas as populações que cresceram ao longo do rio e nas ilhas oceânicas, incluindo a do Marajó, agora um estado federativo importante da região.

E.E. Spíndola tomou seu lugar à mesa e foi apresentado pelo mestre de cerimônia aos presentes como grande referência nacional sobre o assunto daquele importante colóquio científico. Na sua conferência lembrou os dias difíceis como estudante vindo do interior do estado e de sua luta para conseguir se formar e crescer como médico e pesquisador. Muitos amapaenses se emocionaram ao ouvir a triste narrativa.

Abordou o assunto com competência, inclusive referindo-se à história local,  Citando o caso de um surto de varíola ocorrido na década de 1750, quando da fundação da vila que originaria a atual capital do estado. Propôs soluções socioambientais e imunológicas que mais tarde seriam consideradas incoerentes e megalomaníacas pelos mesmos colegas que o ovacionaram de pé quando terminou de falar. Lançou seu novo livro digital sobre o assunto em cerimônia previamente preparada pela editora com quem possuía exclusividade nas vendas e foi cumprimentado pelas autoridades presentes.

Almoçou com o senador Zéfiro Libório, pai do atual governador e seu herdeiro político, após lutas e lutas inglórias contra as oligarquias dos Capiberibe e Góes que se alternavam no poder havia gerações. À noite pegou um superbarco e foi jantar na Ilha dos Caititus, do outro lado do Amazonas. Comeu um prato estranho, mas muito delicioso e, sobretudo muito caro: filhorada ao molho de cupuaçu, uma mistura genética dos peixes filhote e dourada, criada em cativeiro. O prato era preparado com ervas aromáticas, marinado ao vinho e servido com a raríssima polpa de cupuaçu.

E. E. Spíndola foi apresentado a magistrados e juristas da terra que eram clientes contumazes e chiques do restaurante. Estavam acompanhados de lindas e exuberantes mulheres, porém de vez em quando se levantavam para rubricar em I Pad’s processos digitais que os subalternos oficiais de justiça levavam a eles de helicópteros. Pastores, deputados e padres gordos se refestelavam nos pratos principais e nas sobremesas. As elites riam a cada gole de um escocês e entre as baforadas de cubanos. Spíndola chegou a ver uma tentativa de protesto de dezenas de canoeiros ribeirinhos doentes remando e gritando, empunhando lampiões e faixas na escuridão, ato imediatamente dissolvido à bala pelos seguranças locais. A arrogância e o deboche das autoridades presentes causou repugnância no médico. Naquele momento ele percebeu o clima hostil das autoridades e se despediu. Entrou no superbarco, já cancelando pelo celular a visita que faria no dia seguinte às vilas ribeirinhas afetadas pela doença. Decidiu viajar o mais rápido possível para a Europa.

No trajeto veloz observou as luzes de Macapá crescendo ao longe, imaginando o quanto seria bom se as comunidades amazônicas tivessem lugares como aquele restaurante luxuoso que parecia uma redoma protegida do contágio da peste ribeirinha. Pensou em soluções definitivas para a epidemia e devaneou por uns dois minutos.

Próximo ao porto da cidade foi surpreendido por um vergalhão da pororoca que emergiu de repente no meio do rio. Ela veio sutilmente se formando por baixo do canal como uma cobra traiçoeira. Havia migrado nos últimos anos da foz do Araguari devido às alterações geográficas e ecológicas causadas pela instalação de quatro usinas hidrelétricas ao longo do outrora rio do vale dos papagaios.

A onda de arrebentação rompeu como um ser criado pelos deuses, dançarina louca bailando à música do vento, carregando lama e espuma e sedimentos no seu percurso de destruição, sem esquecer de levar em sua primeira vaga o superbarco de passageiros. O médico sanitarista ainda teve calma de espírito ao ver, pela primeira e última vez, antes de se afogar, os jovens surfistas luminosos, de lâmpadas de LED coladas aos corpos, saltarem do nada com suas pranchas de raios coloridos sobre o dorso da grande onda da noite.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Eram anjos montados no macaréu, indo ao encontro das ruínas do forte, um antigo símbolo da cidade.

*Republicado por hoje ser o Dia do Sanitarista.

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