Os cães do Campus da Unifap – Crônica porreta de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Aproximadamente dez cães moram no campus da Universidade. São vira-latas que dormem durante o dia e à noite se tornam verdadeiros vigias. Rosnam para os desconhecidos que se aventuram por lá de forma suspeita, mas reconhecem os vigilantes pela farda que usam e alguns professores mais antigos, talvez pelo cheiro de livros velhos.

Deitam pelos corredores sem que ninguém lhes incomode, pois descansam após o trabalho de uma noite inteira, em que seus argutos olhares e latidos alarmistas com certeza foram úteis. São cães fortes, uns completamente negros e outros com manchas marrons. Às vezes se levantam com o forte cheiro das queimadas no cerrado do campus, mostrando-se impotentes diante dessas devastações tão próprias dos seres humanos.

No meio do mundo os cães trabalham na noite como se revigorassem a missão permanente do ancestral Cérbero, o demônio do abismo da mitologia grega, com suas três, cinqüenta ou cem cabeças, que vigiava as almas no Inferno. Para amansá-lo, os mortos tinham que oferecer-lhe um bolo de mel, acrescentando o óbolo destinado ao pastor Caronte. Cérbero devorava sem piedade todos aqueles que tentavam forçar a porta do Inferno: atacou Pirito e Teseu que queriam levar Perséfone de volta; foi enfeitiçado pela lira de Orfeu quando o mesmo foi reclamar Eurídice; deixou passar Eneu, que lhe deu o bolo de mel preparado pela Sibila. Mas foi derrotado e acorrentado por Héracles (Hércules), que o levou a Trezena antes de levá-lo de volta ao Inferno.

Não há dúvida, afirmam os mitólogos, que mitologia alguma não tenha associado o cão à morte, aos infernos subterrâneos e aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selênicas. Sua primeira função mítica, universalmente atestada é a do “psicopompo”, guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida. O cão emprestou seu rosto a todos os grandes guias de almas, em todos os escalões de nossa história cultural ocidental.

Ele existe em todo o universo e aparece em todas as culturas, com variantes que enriquecem esse simbolismo fundamental, como os cinocéfalos (macacos de cabeças semelhantes a do cão), da iconografia egípcia, que têm por missão aprisionar ou destruir os inimigos da luz e guardar as Portas dos locais sagrados. Na mitologia Romana a loba que amamentou Rômulo e Remo, bem como outros canídeos, são heróis civilizadores e estão sempre ligados à instauração do ciclo agrário.

Apesar de a sua fidelidade ser louvada pelos muçulmanos, o Islã faz do cão a imagem daquilo que a criação comporta de mais vil. È o símbolo da avidez e da gula. Sua carne é utilizada como remédio contra a esterilidade, a má sorte, etc. Segundo uma tradição do Profeta, este declarou que um recipiente no qual tiver bebido um cão deve ser lavado sete vezes, sendo que a primeira lavagem deverá ser feita com terra. Diz-se que o Profeta proibia matar os cães, salvo os cães negros que tivessem duas manchas brancas por cima dos olhos, pois essa espécie de cão era uma encarnação do diabo. Já os monges dominicanos eram os cães do Senhor, aqueles que protegem a Casa pela voz ou os arautos da palavra de Deus.

Os cães do campus também trazem o seu simbolismo. São alimentados carinhosa e diariamente pela dona Nilza. E como Cérbero protegem a entrada da Universidade daqueles que nele querem entrar sem merecerem. O conhecimento e a luz estão lá, protegidos pelas trevas do desconhecido, envolvidos pela mão de muitos Lucíferes. Aqueles que quiserem o saber terão que dar aos guardiões o bolo de mel e o óbolo de Caronte nessa travessia que não terá retorno.

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