Por Fernando Canto
A filósofa espanhola María Zambrano, um dos pilares da luta contra ditadura franquista, dizia que o tempo é o único caminho que se abre ao inacessível absoluto, e que um caminho, porém, não circunda ou atravessa simplesmente um território. Ele é uma realidade mediadora que retém ou evita alguma coisa do lugar onde ele está sendo aberto. Ele cumpre, assim, o seu papel que é conduzir aquilo que, sem ele, não teria a menor possibilidade de existência: um ser que se encontra inelutavelmente em um lugar onde não pode instalar-se.
Eu diria que Hanne foi esse caminho. Porque o caminho também é um certo vazio (como o que fica, como o que foi aberto). E para se fazer um caminho sempre há necessidade de destruir, de arrancar o que se encontra de frente, pois o tempo também passa arrancando o ser, o ser como tal e o ser daquele que passa por ele, que é o homem. Mas se um caminho cumpre a sua função de mediador, se ele é verdadeiramente um caminho, ele terá feito a sua destruição apenas para criar uma relação diferente, uma relação possível e válida, adequada ao ser do homem, para quem o caminho se abre.
Então os caminhos de Hanne foram feitos para os outros em inquestionável lição de amor aos seres humanos que a circundavam. Os caminhos abertos por ela com seus gestos delicados e postura firme (ambigüidade alternada em cenários diferentes), se deram como ácido em terreno de ferro, pois há sempre um resquício de mistério nas atitudes de quem ousa escolher a direção daquilo que se quer construir. E se os caminhos são estradas prestes a se abrirem pela ação de quem assim o deseja, se os caminhos são destinos, tempo, espaço ou poesia, não há dúvida que ela experimentou ser a destinatária privilegiada de uma solene, oculta e bela investidura desenvolvida com o consentimento inelutável das pessoas que vieram a ser tornar suas amigas. Mas a despeito de situações ou problemas políticos oriundos de sua família (inevitável carma de quem detém o poder), Hanne multiplicou sua capacidade de absorção da realidade cartesiana, num tempo sucessivo, para juntar pedaços de seres e fatos em sua caminhada pré-determinada, agindo sobre uma realidade amapaense aparentemente surda, fragmentária e descontínua.
Assim como a via-láctea se torna um caminho em que viajamos sem percebermos, a presença de Hanne no cosmo decerto já sabe a resposta do destino que nos aguarda no mundo astral, nesse plano sem volta que os homens e mulheres mitificam e acreditam. Assim como as águas do Amazonas se misturam às do oceano sem que saibamos do seu limite exato, Hanne já percebeu no seu mergulho ao profundo pélago equatorial que ali a vida surge, explode e renasce quando o sol flutua sobre as mágicas manhãs de nossa terra, espalhando fótons e almas voláteis em busca da vida verdadeira.
Guardarei comigo a túnica cuidadosamente desenhada por ela para o desfile dos Boêmios, pois um desfile se faz por uma passarela, uma via, um caminho, aberto também pelo sonho de sermos seres humanos melhores. Os tambores do marabaixo e do samba repercutirão enquanto soubermos a lição de sua humildade. E não importa que resvalemos na vida, que sonhemos ou não: devemos exigir o despertar, porque o ser pesa e comprime, mas tem que sair do seu recinto original, das túnicas que vestimos para desfilar, para abrir caminhos além daqueles que nos são permitidos. A vida é dádiva para quem vive e nela existe o sonho numa vasta panóplia de representações em que estão os amigos, as raras pessoas como Hanne, que abriu caminhos, portas e portos. E viveu humanamente.
*Canto me enviou este lindo há alguns anos. Não convivi com a jornalista Hanne Capiberibe, mas muitos amigos meus, como Fernando e Gilvana Santos, como 100% da imprensa amapaense, fala que ela foi uma excelente profissional e ser humano. Republiquei em homenagem, já que completam 14 anos que ela partiu (Elton Tavares).
3 Comentários para "Os Caminhos de Hanne – Por Fernando Canto – @fernando__canto (sobre os 14 anos da passagem da jornalista)"
Extremamente importante em nomear essa saudade!
Obrigado, amigo Elton. Toda vez eu me emociono.
Hanne, de fato, foi tudo isso dessa descrição mágica do Fernando Canto. Hanne ainda transcende como uma tocha de amor permanente