Pássaro de guardanapo – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Poeta Isnard Brandão (e outra pessoa que não sei que é)

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Lembrando de Isnard. Quando me perguntavam uma definição sobre ele eu dizia: com medo de viver o presente, vive a adivinhar o futuro. Quando eu ia a Macapá com mais frequência, sempre ia encontrá-lo ali no salão de barbeiro do Seu Aprígio, duas ruas adiante da Praça Veiga Cabral, lendo o jornal do dia, de costas para a porta para não ser incomodado pela brisa que soprava do rio – e levantava uma fina poeira amarela vinda da rua ainda mal amanhecida – em direção a seus olhos.

Poeta Isnard Brandão

Falava do zodíaco, curtia muito falar dos desgostos de agosto na política da confluência de Marte e Vênus. E quando me encontrava, me abraçava, tomava minha mão e lia a linha da vida, alertando-me sobre os perigos do coração. E sobre sentimentos, dizia: “O que eu não gosto em você – apontando o indicador contra meu peito – é esta mania de pássaro migrante, sempre de volta; recordar é sofrer várias vezes. É esta mania tola de querer amar todas as mulheres que cruzam seu caminho. Amor é uma arte, é um sorteio.” Recitava Camões, e dizia um trecho de Drummond. Cantava Edith Piaf, até que eu fingisse dançar, e ele engasgasse de rir.

Poeta Isnard Brandão

Da última vez que com ele estive, caminhamos juntos algumas quadras, e atiramos pedras a esmo em alguns cachorros que dormiam a sesta. Entramos praça adentro marchando como o exército de Brancaleone, chutamos restos de lanches, sacos de pipocas e algumas formigas saúva. Isnard apontou o rio, descreveu sua importância para a vida naquela região, criou algumas teorias como a da criação de um futuro deserto na Amazônia, e a inundação do Saara. Brincou com a ideia de pescar tilápias em Jerusalém. Esclareceu como faria para caminhar sobre os Oceanos, e voar entre os Andes para espantar algum condor distraído.

Antigo Fórum de Macapá, hoje sede da OAB (Wagner Ribeiro/2009) – Imagem encontrada no blog “Amapá, minha terra amada”.

Quando passamos próximo ao fórum que fica à beira do rio, bateu palmas, para despertar os dois leões de mármore esculpidos e postados ao lado da entrada do fórum. Gritou impropérios em alemão – que eu descobri serem trechos da fala de um herói nórdico de um Gibi muito conhecido entre os moleques macapaenses.

Descemos pela margem toda murada, sobre a calçada entre as bicicletas pra lá e pra cá, ele descrevendo o enigma da influência do zodíaco sobre os corações. Eu escutando atento, evitando olhar em direção ao vento que trazia poeira tão ardida para os olhos. Lá fora, na baía, os botos brincavam às dúzias.

Poeta Isnard Brandão

Isnard caminhava falante e lento, atento como se falasse para dentro e se admirasse com sua própria voz anasalada. Andava em zig-zag como a retraçar a margem esquerda do Amazonas e descrevia a abóbada celeste e o posicionamento das constelações. Vez por outra apontava para o meu coração como a convencer-me que era algo supérfluo. Nesta ânsia de me convencer, quase fez com que eu jogasse por terra o sorvete de abacate.

De repente passou por nós um amigo comum, que nos viu e veio nos abraçar. Isnard não conhecia muito ele e foi embora. Foi a última vez que o vi. Antes de se despedir, pediu-me que lhe dissesse alguma coisa nova: conto, poesia, coisas que houvesse feito e que ele ainda não havia escutado. Contei-lhe Caim e Abel. Ficou em silêncio dobrando entre os dedos da mão um guardanapo.

O outro amigo bateu palmas quando terminei. Nem havia necessidade. Todos dois conheciam o meu trabalho. Sabiam coisas que eu mesmo já havia esquecido.

Isnard deu-me um pássaro feito com o guardanapo, e se foi. O outro amigo presenteou-me com um CD de Taiguara e a fotografia de um pôr-do-sol ali na frente do hotel, com o flagrante de duas araras voando rasantes sobre a amurada do trapiche, talvez vindas de Marajó. Eu viajei de volta para São Paulo e guardei o CD, a foto e o pássaro de guardanapo em uma gaveta usada por mim para colocar meus objetos mais importantes.

Hoje, sabendo de sua morte, pego-me pensando sobre tudo isso. Levanto e vou até a gaveta. Acho a chave, destranco e procuro entre as coisas espalhadas os objetos que citei. Encontro o CD, que tantas vezes ouvi. Encontro a fotografia, mas não encontro o guardanapo. Chamo a mulher, chamo a empregada, chamo os meninos. Em vão. Ninguém viu, ninguém mexeu. Acredito. Todos evitam aquela gaveta, tão importante para mim.

Passo um bom tempo da noite escrevendo. De manhã saio sonado para o hospital. Passo o dia mal-humorado. Ligo para Tadeu, o outro amigo presente naquele encontro, e dou-lhe a notícia. “Morreu? Tinha instantes de Mágico, de Bruxo. Puta cara… Mas quando ele começava com este negócio de mistérios, Luiz, então era um incrível.”

A linha caiu, fico em silêncio, riscando com a caneta uns papéis. O telefone toca. Penso que é Tadeu, para dizer-me do outro dia, mas é minha mulher. “Luiz, encontrei o pássaro que você procurava. Está ficando velho, hein, meu caro? Você deu-nos a entender que era um pássaro de guardanapo que havia perdido. Olhando agora de manhã sua gaveta e na fotografia, eu encontrei. Só olhando bem a gente percebe. É branco, com as asas imitando o movimento do voo, perto da amurada, entre as duas araras. Que lindos os três, e o contraste do pôr do sol em suas asas. Por que você não disse logo que era um pássaro feito de guardanapo, mas que estava dentro da fotografia?

E o que você havia perdido era a foto. A gente não tinha procurado tanto…”

*Do Livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial (2018) – São Paulo – II Edição.

  • Cada poeta tem a memória e a concepção do seu voo. Este é, sem duvida, um texto ternural, como dizia o Mestre Alcy Araújo.

  • Ô meu caríssimo Dr Pinguim. Meu coração congelou. É de lá encontrei conservado um passado bem presente. Senti o cheiro do cigarro desenhando “balões ” dos quadrinhos e em” giff “.com a fumaça que soltava fazendo formas. Entre um gole e uma tragada uma previsão astrológica e um poema que reforça a “teoria ” da ciência dos versos. Isnard era una figura impecável para desarrumar as convenções. Você me fez reencontrar este poeta. Pena que não bebo mais alcool para brindar com a porção que te ofereço. Valeu,doutor .

  • O pássaro guardado no guardanapo agora voa livre rumo ao infinito. Belo conto do poeta Luiz Jorge Ferreira

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *