PEIXE-ANTÔNIO – Conto de Fernando Canto Para Aimoré Nunes Batista e seu Martins

Chovia para cima em nosso sítio ao pé do monte Galalau.

Nem eu nem meus irmãos entendíamos aquele prodígio. Era como se a água do poço evaporasse da terra, formasse nuvens baixinhas e fosse embora, deixando tudo seco por dias seguidos. Assim mesmo a gente não passava necessidade nem sede. Meu irmão caçula, que tinha frequentado a escola da cidade enquanto a gente trabalhava na roça e na criação de peixe em cativeiro, dizia que era uma tal de ilusão. Ilusão de ótica. Como era sabido esse meu mano…, mas eu mesmo não me convencia. Perguntava para o meu pai, ele nem… Só fazia dizer: – Arre égua, menino, vai trabalhar que é melhor. Deixa de perguntar besteira. Isso é assim mesmo desde que eu me entendo por gente.

Quando a gente descia a serra até a cidadezinha próxima para vender a produção e comprar mantimentos, o seu Toco do Armazém, que também era meu padrinho de batismo, perguntava pelo pai. – Está sem poder se levantar, com um tal de ácido úrico e dores no peito, eu dizia. – Leva esse remédio aqui pra ele, menino. Dizem que é muito bom. É um unguento feito do leite de uma árvore chamada amapazeiro, lá do Norte.

Aí ele perguntava: – Quêde os peixe-antônio? Ele mandou pra mim? Claro, eu dizia. Mandou essa cambada fresca aí. E lhe entregava uns vinte piaus, retirados do criadouro, enfiados numa penca de sisal. – Mas por que meu padrinho chama esses peixes de peixe-antônio? Ele ria e não dizia nada. Eu achava que era uma brincadeira dos dois velhos amigos.

Seu Toco era baixinho, mas me disseram que era muito valente. Já tinha posto uns jagunços para correr, com um sabre que ganhara de um cangaceiro verdadeiro dos tempos de Lampião. E tinha muitas qualidades: tocava uma sanfona melhor que o Luiz Gonzaga, diziam. Eu nunca o tinha visto tocar, mas como gostava dele, só fazia espalhar a história. Eu cheguei a perguntá-lo: – Quêde a sanfona, seu Toco? O São João este ano vai ser bom… Já está meio frio lá na serra.

Ele dizia: – O fole tá furado, vou mandar consertar ou comprar outro assim que Deus e o Padim Ciço me permitir. Era mais uma conversa mole de quem fica enrolando e mascando tabaco. Quando não tinha sacos plásticos o seu Toco nos aviava compras a varejo com papel de embrulho. Eu ficava besta de ver a agilidade dele enrolando os dedos no papel até a mercadoria ficar fechada e não abrir tão fácil.

Enquanto eu tirava uma prosa com ele, meus irmãos ficavam brincando e passeando pela praça. Certa vez o caçula veio chorando porque um rapazote chamou todo mundo da minha família de mentiroso. Era um molecão invejoso que só. Fui tomar satisfação e acabei brigando. ]

A gente se feriu todo rolando pelo chão até nos apartarem. Já em casa minha mãe lavou minhas feridas com água e tintura de jucá, que dói que só uma peste. Mas nada disse a meu pai, senão ele ia se enfezar.

Ficou latejando na minha cabeça as palavras do rapazote brigão. Na semana seguinte fui novamente à cidade e perguntei ao meu padrinho por que ele tinha chamado a gente de mentiroso. Seu Toco me chamou num canto, pediu para eu sentar em um saco de milho e disse para eu não ligar. É que corria a lenda que no nosso sítio tudo era muito maluco. E por cima ainda tinha essa história de chover para cima e outras conversas de mentiroso.

– Mas não é mentira, seu Toco. Eu mesmo vi muitas vezes esse fenômeno, disse-lhe. Ele me olhou, me olhou, me olhou no fundo dos olhos e eu sustentei olhar. – Bom, então tu sabes dos peixe-antônio, hem macho?Sei não. Só ouço o senhor falar, respondi. – Então pergunta pro teu pai, diz pra ele que já é hora de tu saber. Levantou-se, deu três tapinhas nas minhas costas e mandou eu ir embora.

Subi a serra com a fubica gritando e esfumaçando de óleo queimado. Meu pai parecia adivinhar, pois estava me esperando a cavalo na porteira do sítio. Antes que eu falasse, ele fez um sinal e disse: – Vamos lá em cima do monte Galalau.

Montei na garupa do cavalo e fui com ele pela estrada íngreme, passando dos limites que até então conhecia. Ficamos sentados até o pôr-do-sol. Ele não falava nada. Fez uma fogueira para amenizar o frio e disse para eu ficar em silêncio. Eu obedeci. Não dormimos. O céu tinha tantas estrelas que pareciam mosquitos brilhosos rondando em nossas cabeças.

Eu já estava agoniado com o silêncio do meu velho pai, aquele homem forte que falava sempre o que e quando queria, barulhento e alegre com os filhos. Eu era o terceiro. Os dois antes de mim já tinham, como se diz, batido as botas há tempos. Agora eu era o varão e a alegria dos meus pais, e responsável pela criação de mais cinco, quatro homens e uma mulher, já que ele só vivia doente e só melhorava com os remédios que o seu compadre Toco dava para ele. Minha mãe até hoje chora por essa perda, do tempo em que moravam na caatinga, nos cafundós do sertão de meu Deus.

A noite fria custava a passar e só se ouvia o crepitar da lenha no fogo e os silvos das estrelas cadentes. De repente começou a ventar e a chover para cima uma água vaporosa, como a formar um rio de nuvens escuras bem em cima das nossas cabeças, onde as estrelas desapareciam. Meu pai ficou de joelhos e disse: – Obrigado, meu Santo Antônio. Então começaram a cair piaus sobre nós, se debatendo no chão e uns já se assando na fogueira, que resistia à fina chuva. Eu confesso que fiquei maravilhado com aquilo. Meu pai ria e me dizia: – Tu tá vendo, meu filho. Isso é a realidade do nosso sítio. Eu fiz uma promessa pro Santo salvar tu e o compadre Toco da peste da fome que matou teus irmãos e todos os filhos dele lá no agreste. Antônio me fez casar com esta terra prodigiosa onde reconstruímos nossa vida. Fiz uma capela pra ele com o suor do meu trabalho e do meu compadre, que também é meu primo, e o Santo ainda me recompensou com isso que tu estás vendo. Meu pai ria, dançando um xaxado inexistente, arrastando as sandálias como se estivesse em uma festa. – Ah, a sanfona do compadre Toco agora, dizia, se esbaldando de rir. Nem parecia que tinha gota.

Comemos uns peixes-antônio assados e guardamos a maior parte em uma saca que ele levava no cavalo. A noite passava e o meu pai não parava de me contar fatos de sua história. O segredo dele acabou ali, no monte. Agora era todo meu. Mas ele me disse que estava esperando uma coisa. Ficou em silêncio como antes. E o tempo passou.

Antes de amanhecer choveu para cima novamente. Ficamos molhados na madrugada e a fogueira se apagou. Ouvi o estrondo de um trovão, o cavalo relinchou de medo e uma avalanche de peixes piaus rolou morro abaixo. Consegui puxar o cavalo, mas meu pai ficou soterrado para sempre naquela terra que há tempos lhe dera o sustento e alimentara sua alma generosa.

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