A COISA
Eu vejo o ponteiro girar pra trás
E sinto um bafejo com cheiro de ontem,
Os sons os conheço de um rádio antigo,
Meus mortos cantando asfixiados.
Os cantos são roucos, as línguas, tortas;
Preces choradas em vozes cativas:
Que a dura frialdade das coisas mortas
Não gele as essências das coisas vivas.
O medo nas mentes, botas nas ruas,
Botas nas portas e botas nas caras,
Os caras com ódio, as caras de ódio,
O sangue nos olhos, olhos no sangue.
Palavra presa na boca fechada,
Palavra abortada na boca aberta:
Que a raiva contida na coisa errada
Não mate a poesia da coisa certa.
Os corpos sem rosto, os rostos sem corpo
Fertilizando as lágrimas das mães,
Corroídos no mofo do retrato,
Digeridos no estômago da terra.
A terra que nutre a semente amiga
É a terra que a dor a transforma em cova:
Que a bruta tortura da coisa antiga
Não sopre a narina da coisa nova.
Prostrado, aterrado no caos do hoje,
Eu vejo a loucura abraçar as gentes;
Pretérito tempo já dado morto
Rangendo correntes nos corredores
De mortos matados nas galerias,
De gritos gemidos por entre os dentes:
Que o sangue parado das coisas frias
Não pare no sangue das coisas quentes.
Ori Fonseca