Poema de agora: Bailarina de Louça – Luiz Jorge Ferreira

Bailarina de Louça

Deus te rasgue o peito com a harmonia leve de um Bolero.
O som é de um hino militar.
Dois pés em Amsterdam, dois passos sobre a Babilônia, dois dedos sujos de poeira lilás, e silêncio sobre a bailarina de louça, de voz rouca que segura o ventre proeminente de ais.


No desenho do perfil abstrato, cheiro de sabonete de tartaruga, e duas verrugas azuis sob o pomo de Adão.
Na parede ilustrada, um verão em Salinas, e duas almas gêmeas semi cegas, concubinas, simplesmente, dão as mãos.

Teu coração ainda menina… palpita…do pé entre os chinelos, ao fio mais externo de cabelo…
Teu vestido de chita…tua meia elástica repuxada, tua boca Carmim…teu olhar ensaiado…vais onde eu irei…ou vais onde ficas.

Deus te dê…dois generais para governar o país.
Um cavalo cego para te levar as ribanceiras…e dois valentes crioulos com o chicote de couro, para açoita-los por demais.

Dois violões afinados em lá, e um memorial…terra e lama.
Na calada entranha sob um sol dourado … cheirando a Macapá.

Um amor na gaveta na página de uma revista careta, e duas pílulas de matar bebê.
Uma estampilha de mulher…uma gorda, outra magra, duas escravas de cara branca pó de arroz.
Risonha e farta de seios, Nossa Senhora de Guadalupe, e um lume azul da estrela mais vadia.

O rosto de Guernica, e a foz antiga do Marajó.
Uma chuva fina da Patagônia, e um Bolero saindo de uma vitrola Philips desafinada de um vizinho chileno em um sábado inútil de Janeiro.

Hoje eu te adivinho deitada… curtindo a sombra de teus seios na parede.
Eu te adivinho escrava dos cabelos,
penteando-os com os dedos.

Alisando-os no espelho embaçado do quarto.
Eu te adivinho sonolenta, arfante, subindo e descendo os peitos.
O coração descompassado, a língua em um bailado entredentes, molhada de saliva.

E se eu chegasse, correndo, assustado…
Dançaríamos, um Bolero, ou cantaríamos um Fado.

Luiz Jorge Ferreira

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