Poema de agora: In Miragem – Luiz Jorge Ferreira

In Miragem

Desperto… pés molhados… há muitos anos vive em mim um rio.
Serpenteia, Saculeija, rola seixos… afoga queixas, se espreguiça, nós nús a preamar, vida imita a chuva, ser chuva em mim, se salga, me salga, percorre em mim léguas… e eu do lugar que estou, cá dentro do corpo, não saio.
Hoje ele senta ali, doutro lado da vida, e eu daqui desse lado… colecionando momentos.
Ele arrasta consigo tantas lembranças, tal qual um cardume de peixes translúcidos atravessando minha alma de um jeito íntimo.
Como se outrora houvessem comungado esses instantes em paz.
Como se em mim, suas lembranças fossem minhas e as minhas fossem resíduos de décadas que sobrevivi fugindo de submergir nas noites em que sonho me pôr a nadar infinitamente rumo ao outro lado, que imagino ser do outro lado, que faz sempre de contas que me espera no entanto se afasta…


Como se fosse miragem…
Mas amo não ser parte de nenhum lugar e ser apenas uma ilha de carne, ossos, pelos, pensamentos, diagonais e perpendiculares agrupadas nas mãos com que empilho instantes. E raramente falo, quando falo… grito nas línguas que lembro, as que aprendi na sala de aula olhando a professora de inglês e o professor de francês escreverem os alfabetos em consoantes coloridas.
Lembro que ao lado da sala de aula, no corredor, estava o rio, era apenas um riacho, que se escorava entre um sol que plantava bananeira e uns tralhotos que como meninos apedrejavam a lua pálida que gemia… abafando o clamor de liberdade das vozes dos mortos do Cemitério Municipal, próximo a antiga Escola Normal de Educação do Território Federal do Amapá.
Sabe… ando querendo ser rio… me arrasto cabisbaixo debaixo de recordações ácidas que se avolumam em cirandas sobre minhas expressões de rugas na face.
O rio me olha cabisbaixo, tem inveja de mim, eu tenho dele, lamenta tanto lixo espalhado em seu leito.


Lamento tanto lixo espalhado em meu peito.
Perdeu o viço.
Perdi o senso.
Ambos clamamos por chuva…
Eu com a voz entremeada de porquês e comos.
Ele… reticências anômalas… na forma aleatória de poças secas.

Luiz Jorge Ferreira

*20/03/2021. Osasco – Sp.

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