O barco e o artilheiro do sol (Para Luíza Azevedo)
I
certa vez,
um barco
de pele azul
mergulhou
em pausa
muda
na luz
do pôr do sol,
no chão da Praia
do Areal.
as ondas
e a areia
colhiam impotentes
os pés de um menino-deus
(artilheiro do sol)
II
não por deus,
nem pelo
decreto dos homens
o menino-deus era deus
(do sol, artilheiro)
era deus
pela bola
que mirava
em direção ao sol
de Mosqueiro
III
o garoto,
com a camisa onze,
nas costas e no coração,
mirou no abismo do céu
e chutou
na solidão das águas
(como Messi, Romário ou Ganso)
acertou o nada
como se tudo fosse
e tudo se foi
no coração
do artilheiro
do sol
(o menino-deus)
suas chuteiras de areia
empurravam ao vento
o plástico
amarelo
que nas paredes do vento
morreu
sua força
morreu destro
o chute-anfíbio
que viveu todo um campeonato
naqueles segundos
IV
o barco olhava e
guardava consigo.
V
o barco é
na verdade
um velho
armário de histórias
que, outra vez,
jamais se contarão
VI
o menino abriu seu esqueleto
em direção ao pôr do sol
e celebrou infinito
o gol que se perdia no vento
VII
as fotos
que colheste
daquele
pequeno-longo
fim de tarde
em teu semântico-olhar
gravaram
para sempre
o que o barco
não dirá
VIII
o barco de pele azul
guarda consigo
tantos outros
dias,
bem como
outros barcos
guardam
e guardarão
consigo
a saudade
que arde
no horizonte
e na garganta
do peito
no céu, era possível ver que a mistura do sol com as nuvens formava um pequeno mapa de um país indecifrável. os garotos, artilheiros do sol, jogavam bola entre a areia e as águas da praia, num anfíbio campeonato de luz.
tudo naquele dia se banhava de luz enquanto era possível fugir do cansaço, das tristezas e da solidão.
eram pequenos dias de fim de ano. de ser deus porque não cabia ali sofrer como um homem-cidade que se afoga no trabalho, na rotina e nos amores perdidos e invertebrados que insistem em sobreviver.
fez-se noite, manhã e tarde. porém, o tempo foi domado pela luz da fotografia.
Júlio Miragaia
*do livro O Estrangeiro de Pedras e Ventos (2014)