Poema de agora: Pequeno instante de retorno a um lugar chamado passado – Luiz Jorge Ferreira

Pequeno instante de retorno a um lugar chamado passado

O som vem lá do Pecó. (*)
É a voz de Carlos Gonzaga cantando Diana.
Eu deitado, imberbe, na rede que fede a mim.
Balanceio entre o Trópico de Câncer e o de Capricórnio.
Em vão, procuro criar uma linguagem nova para conversar com as estrelas.
Cybelle, sob o sol tropical picha muros, ou apenas anda zigzagueando entre pedregulhos grávidos.
Atropelados por um pneu Firestone.
Portinari… Picasso… Dali… R. Peixe… Ray Cunha.
Estão por ali entre sombras da noite e fantasmas magros.
Todos gêmeos das paredes de madeira ruídas de cupins.
Copulam cores. Dentro do sol.
Dentro de mim a Babilônia se arrasta pela Ernestino Borges.
Vem da casa de Seu Paulino, Maiambuco, com Marabaixo, e Coló.
Eu em silencio, decorando a música de Carlos Gonzaga, vinda do Pecó.
Deitado na rede que tatua minha costa com listas e calombos.
Espreguiço entre a Fortaleza cicatrizada de tempo, e o tempo cicatrizado na Fortaleza.
Farto de azedos, gaguejo uma língua nova para a surda lua anciã.
Da alma ao ânus. Lavado de suor. Olho as unhas dos pés crescerem.
Sujas do chão do Pacoval.
Elas desnorteadas com o Norte mapeado aos seus pés.
Arranham em Si, o terceiro compasso.
Sou um homem negro. Pardo com duas orelhas. Páginas demais em branco.
Apaixonado por sereias. Versos de Drumonnd. Lendas do Isnard.
Refém do som do Pecó. Olhando as telhas.Dialogando com estrelas sujas de céu.
Xingo os tímpanos. Incomodado com o barulho da massa do pão lá na Padaria do Seu Osvaldo, ainda cru sendo esmagado na mesa.
Sobre bactérias indefesas. Gritando em Morse.
Vittorio Gassman. Zorro. Chaplin. Bardot.
Estimulam o diálogo das pulgas com o cão, em Braille.
Isto impede que eu decore a segunda parte da letra da música de Carlos Gonzaga, que vem do Pecó.
Que vem só. Respirando entre ruas e becos, lá do Igarapé das Mulheres, entre cheiros de peixe, e odores vaginais.
Quase amanhece debaixo do assoalho em que a música se esconde. Ernestino Borges. Odilardo Silva. Odilardo. Fernando Canto.
Nikita Kruschchev. Chefe Humberto. Cabralzinho.
Bongos… Uníssonos solfejam a semínima com que a música termina.
O barulho das tábuas estalando.
Impede que eu decore o resto.
Cuspo frases inteiras da música no saco de roupa, onde a camisa de ontem encharcada com um resto de chuva, não cabe mais em mim.
Mil e Novecentos. Outubro de 62.

Luiz Jorge Ferreira

(*) Pecó = prostíbulo em Macapá, cujo som emitido por vários alto-falantes inundava o silêncio das suas madrugadas na década de sessenta.
(**) O poeta Luiz Jorge Ferreira é amapaense, médico que reside em São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

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