Poema de agora: Retrovisor – Ori Fonseca

Ilustração: René Magritte – Os amantes (1928)
RETROVISOR
A mim me basta a tua paixão sem hálito,
Os teus olhos vagando no planalto,
O teu corpo rarefeito.
Eu posso te entender na temperatura da sala,
Nas manchetes que te assustam nos sites
(Que há muito chamei de sítios),
Nas páginas das revistas sem páginas,
Na intimidade com quem não conheces.
Eu te perdi sem nunca ter te achado,
Sem nunca ter me livrado de ti.
Vejo-te no retrovisor,
Subindo as escadas rolantes,
Atravessando a rua estressada,
Com a cara cheia de razão.
E te sinto entrar no meu quarto por debaixo da porta
(Teu cheiro não me abandonou como tu),
E me amar nos meus pesadelos à tarde,
E, no abismo, soltar minha mão sem dizer palavra.
Um dia, quando nossas dimensões se tocarem,
Talvez possamos reconhecer que já nos conhecemos
E que andamos juntos,
E que não fomos mútuos estranhos
E que já rimos honestamente da mesma graça
E que nos olhamos nos olhos
E pudemos morar na alma do outro,
E sentindo efemeramente
Algo que se pode confundir
Com amor.
Ori Fonseca

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