Poema de agora: Talvez seja Macondo – @juliomiragaia

Talvez seja Macondo

Talvez seja Macondo
Quando a chuva
Vence o dia
Nos últimos ramos de abril

Talvez sejam fortalezas
As borboletas
Que se dissolvem
Nas asas do céu

Talvez esses incêndios
Estejam há séculos
Perdidos e roucos
Na fila do SUS

Talvez seja o equinócio
Aquecendo o cio da cidade,
Separando o amor da ressaca
Separando a fome da dor

Talvez o ano tenha pernas
Mais afobadas que o sol
E talvez não tenhamos roupas
Para todos os dias do mês

Talvez seja Macondo
O ombro deslocado
Dançando desgraçadamente
Nas noites de maio

E talvez a chuva
Vença o dia
Nos últimos ramos de abril
Por dois incêndios

Inacabados,
Dois peixes embriagados
De Gabos e Benedettis
Que talvez sejas tu e talvez seja eu

E talvez tu e eu nos sejamos
Perdidos, entre pretéritos
Intransitáveis, nas praias
Dos dias assim…

O quarto clareou timidamente, enquanto o ar condicionado soprava um vento frio nos pés, a única parte descoberta pelo edredom. Levantou nadando contra o rio de preguiça nos ossos, na pele e nos pelos, tropeçando em meias, pornografia, latas de cerveja e canções de Mercedes Sosa.

Tomou um banho frio com sabonete Phebo, para exorcizar o álcool que exalava do corpo. Preparou o café e bebeu sem açúcar, ouvindo um programa evangélico no rádio. Em nada pensava e olhava para o nada como se o nada nada fosse. Apenas existia, de cueca, sentado na única cadeira da cozinha.

Arrumou-se uma vez mais como um robô, vestindo-se, colocando o notebook na mochila, o celular no bolso e esquecendo religiosamente o boleto da conta de luz.

Ao abrir a porta para a rua, ouviu um som crescente como um assobio rasgar o barulho do trânsito e uma luz intensa e ardente a tomar conta de tudo, até tudo se calar e desaparecer.

Júlio Miragaia

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *