Talvez seja Macondo
Talvez seja Macondo
Quando a chuva
Vence o dia
Nos últimos ramos de abril
Talvez sejam fortalezas
As borboletas
Que se dissolvem
Nas asas do céu
Talvez esses incêndios
Estejam há séculos
Perdidos e roucos
Na fila do SUS
Talvez seja o equinócio
Aquecendo o cio da cidade,
Separando o amor da ressaca
Separando a fome da dor
Talvez o ano tenha pernas
Mais afobadas que o sol
E talvez não tenhamos roupas
Para todos os dias do mês
Talvez seja Macondo
O ombro deslocado
Dançando desgraçadamente
Nas noites de maio
E talvez a chuva
Vença o dia
Nos últimos ramos de abril
Por dois incêndios
Inacabados,
Dois peixes embriagados
De Gabos e Benedettis
Que talvez sejas tu e talvez seja eu
E talvez tu e eu nos sejamos
Perdidos, entre pretéritos
Intransitáveis, nas praias
Dos dias assim…
O quarto clareou timidamente, enquanto o ar condicionado soprava um vento frio nos pés, a única parte descoberta pelo edredom. Levantou nadando contra o rio de preguiça nos ossos, na pele e nos pelos, tropeçando em meias, pornografia, latas de cerveja e canções de Mercedes Sosa.
Tomou um banho frio com sabonete Phebo, para exorcizar o álcool que exalava do corpo. Preparou o café e bebeu sem açúcar, ouvindo um programa evangélico no rádio. Em nada pensava e olhava para o nada como se o nada nada fosse. Apenas existia, de cueca, sentado na única cadeira da cozinha.
Arrumou-se uma vez mais como um robô, vestindo-se, colocando o notebook na mochila, o celular no bolso e esquecendo religiosamente o boleto da conta de luz.
Ao abrir a porta para a rua, ouviu um som crescente como um assobio rasgar o barulho do trânsito e uma luz intensa e ardente a tomar conta de tudo, até tudo se calar e desaparecer.
Júlio Miragaia