Poesia de agora: Contas a pagar – Luiz Jorge Ferreira

CONTAS A PAGAR

Eu diria,
entre, seja bem-vinda,
não atropele as lembranças jogadas pela sala.
Tudo continua como antes, cada coisa fora de seu lugar.
Por arrumar.
Os meninos rasgando papel, uma lua esquecida no quintal,
um violão sobre o sofá, afinado em Lá, desafinado em Sol.

Tudo continua igual.
Eu continuo sentado pelos cantos.
Escrevendo versos de desencanto, procurando o JR e o jornal,
lembrando algo que esqueci, sem importância,
e dando importância a coisas banais.

Eu diria, sente, pode ligar a televisão.
Ouvir meus discos independentes,
perguntar por alguém que a gente conhece
e nunca mais viu.
Tem café, tem vinho branco, tem cachaça,
têm uns livros novos dos mesmos
que você às vezes não conhece num retrato desfocado,
e outras vezes reconhece quando entram em casa com ares de sensatos,
e se desfazem do rosto.

Pode tirar seus sapatos e pô-los por aí.
Eu fico olhando distraído do horizonte para o teu umbigo,
pode ser sábado, pode ser domingo.
E se der na telha beijo os meninos e vou dormir.
E se for outubro, ligo para Belém e pergunto pelo círio,
pela fé, pelo pato no tucupi.
E se eu deixar você sorrir você não chora
e conta estórias do arco-da-velha,
faz-me acreditar que vai chover de madrugada.
Faz dengos sociais, pergunta se comi bem,
se deitei cedo, se fui feliz com o enredo do poema nestes últimos dois meses.
Eu digo que fui, e que sou, entre um espirro e outro,
se for setembro, falamos de aniversário.
E se toca o telefone você atende, se for engano você desliga.

Se for para mim, eu atendo sentado,
um ouvido no papo,
e olho, do teu umbigo, para o quarto.

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro “Beco das Araras” (1990).

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