PREFÁCIO DO LIVRO “ENTÃO, FOI ASSIM?” – Os Bastidores da Música Amapaense

 

Texto de Fernando Canto

Creio que neste livro Ruy Godinho está mesmo é deixando um registro histórico que se abre para novos capítulos da música amapaense. É mais um desafio vencido por quem vem pesquisando há anos o que há de melhor na história das canções brasileiras, desmitificando fatos que surgem a cada música gravada e divulgada ao público. É um trabalho de fôlego que ultrapassa o mero registro contextual das narrativas dos autores, suas linhas de influência reconhecidas e da gênese de cada canção.

Godinho dá-se ao trabalho de aproveitar os testemunhos autorais da confecção de cada música, decifrando-as internamente, sem desprezar as peculiaridades da linguagem cancional e seus sotaques regionais, fazendo valer suas constituições técnicas e a relação dialógica entre parceiros e outros autores.

Há sempre um processo identitário, assim como um rio amazônico, no qual os compositores encenam grandes lutas, na esperança do mundo ficar melhor, sem esquecer que eles são protagonistas de suas próprias vidas ao ofertarem o público a sua arte, pelo livre sentimento, pelo amor à terra, às lendas e mitos, à família, às pessoas e aos acontecimentos reais, coisas que instigam e movem suas criações e lhe trazem retorno.

Se alguns compositores e poetas passaram incólumes fisicamente sob a longa noite da ditadura militar, certamente ficou a ferida psicológica da opressão, fato que estimulava a criação de canções de protesto. Depois disso surgiu um conjunto de obras incontestavelmente nascidas da crença do amor, por meio de aliterações, rebuscados jogos de palavras, rimas e outros recursos semânticos, que fazem a obra musical nascer sob a égide discutível da inspiração e da transpiração, que é o profícuo trabalho conclusivo experimentado por todos.

A música também é um discurso: tem elasticidade e características próprias na sua confecção técnica e poética. Ela traz imagens e metáforas e até expressões populares que espelham os desejos e sentimentos de públicos diferenciados.

O trabalho de Ruy Godinho sobre “Os bastidores da criação musical brasileira” agora se estende à música popular amapaense como uma contribuição lúdica, crítica e por que não dizer, acadêmica. Seu caráter inovador de reunir essas histórias conduzem ao debate de saber sobre as canções escolhidas e a vida de seus autores, além de estimular a escuta e à nostalgia inerentes ao gosto de cada ouvinte. Na realidade esses autores são personagens que criam outros personagens – às vezes eles próprios em circunstâncias diferentes – e seus desejos e propósitos, que Ruy Godinho, com soberba maestria arranca dos relatos, fazendo que eles se revelem não apenas como artistas, mas como seres retratados sujeitos a emoções diversas no seu histórico particular.

O leitor menos desavisado deste gênero musical, revigora-se ao entender o pensamento e o histórico dos autores, visto a dimensão que envolve o processo criativo de cada um deles, pois a música tem um poder de envolvência que ultrapassa os atributos práticos e aplicáveis. Ela chega impactante até deixar o ouvinte sem defesa, Instala-se e se conecta com as sensações dela emanada com o intuito de nos dar prazer.

Entretanto, também penso sobre a música como uma arte universal que pode ser compreendida em qualquer parte e por todos que a ela tenham acesso. É uma cultura comum a todos os povos, assim como a comunicação e os ritos. A exemplo da literatura e seus movimentos que ora na Amazônia os intelectuais vem revendo e debatendo de forma sistemática, é muito reducionista chamar uma literatura ou música amapaense, como se fôssemos menores e que nunca pudéssemos fazer parte de um contexto maior, mais brasileiro, como se os artistas amapaenses não pertencessem ao Brasil e ao planeta, mas que estivessem cativos numa área geográfica reduzida e cercada de peculiaridades que não pudessem ser vistas e ouvidas por outras pessoas do resto do mundo.

Nossa música é muito grande para ser ouvida e analisada somente como música amapaense. Nossos artistas – compositores, músicos, maestros, letristas, cantores – certamente interpretam nossa vida, entre belezas e dores, entre amores e esperanças e por isso mesmo se orgulham de pertencer a este torrão amapaense, onde moram, vivem, e provavelmente morrerão.

Há algum tempo setores culturais promoveram um tipo de música que se associava na valorização das coisas amapaenses. Desde essa época alguns artistas ficaram conhecidos como “minhocas”. O termo se popularizou e ganhou inúmeros adeptos, pois o trabalho por eles realizado era de excelente qualidade musical. Incluíram os ritmos locais de origem africana como o Marabaixo e o Batuque em suas belas composições, fizeram excursões internacionais, mas quando deram conta estavam esbarrando numa cerca de aço chamada mercado fonográfico. Não é fácil pertencer ao mundo pop star sem prévio reconhecimento, beleza, ineditismo e investimento pesado. É lógico que os setores que cuidam da cultura têm mais que investir no talento dos artistas locais e promovê-los sempre. E alguns até chegaram a fazê-lo, tanto que hoje o povo reconhece o trabalho desses valorosos músicos e intérpretes amapaenses – condição básica para o aumento da autoestima e para o desenvolvimento de áreas como o turismo, onde se inserem a hospitalidade a valorização de nossas potencialidades e culturas.

Como praticamente não há mais povo isolado (a Internet está aí para dizer que não estou mentindo), há muitas saídas para sonhar com o reconhecimento do que se faz em qualquer lugar deste país tão múltiplo.

Hoje, graças a um trabalho constante e a união dos músicos, a Prefeitura Municipal de Macapá vem investindo nessa divulgação tão importante para que a música aqui produzida seja reconhecida e para que apreciem nossos fazeres culturais e as riquezas cênicas nelas contidas, que nos faz ímpar no Brasil, aqui na Amazônia e no meio do mundo.
O presente projeto escrito e produzido por Ruy Godinho, neste livro, traz à tona a nossa vertente da apaixonante e rica música brasileira. Mas tudo não para aí. O autor também é um conhecido radialista que exporta programas radiofônicos para além-fronteiras, contribuindo para a divulgação das criações musicais do nosso país. Nesse caso o Amapá se insere graças à ousadia, à sensibilidade e à determinação política presentes nesta decisão amorosa pela música local. Assim, ultrapassando a realidade que se recolhe no tempo como uma bela partitura ou um poema que me convence a crer, afirmo que o presente que me faz sonhar é o sonho que se faz presente.

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