Quarta-feira (que já foi) de cinzas – Crônica de um estranho Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de um estranho Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Nesta quarta-feira (que já foi) de cinzas, abro a janela para o dia e não estou cansado de ter sambado na Banda. Este ano a Banda não passou e deixou meu coração folião ressacado de saudade. E olha que nem sou um folião fanático. Apenas, de vez em quando, deixo meu espírito se fantasiar e saio a bailar ao som de qualquer batucada ou mesmo embalado pela tradição de grandes sambas que o Brasil ostenta. Isto me tira um pouco do trauma que é não saber sambar sendo do País do Carnaval. Desculpa aí, gente! Já me basta a carga de ser do País do Futebol e não ter a mínima intimidade com a redonda. E antes que me perguntem você samba de que lado, de que lado você samba, você samba de que lado, de que lado você samba, de que lado, de que lado, de que lado você vai sambar, já adianto que o samba está em mim de todo lado, pois meus domingos infantis e juvenis tiveram a trilha sonora de Paulinho da Viola, João Nogueira, Clara Nunes, Alcione. Como ficar imune ao feitiço desse gingado e dessas letras que vão fundo no que é mais profundo?

Porque é Carnaval e não é Carnaval, o samba vem à tona. Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro. O samba é revolucionário e rebelde, porque ouço samba no som de Sérgio Sampaio e Tom Zé (e se for além, em Raul também). Então o samba me leva, me eleva e, a quem pergunta onde estou, diz que fui por aí. E desde que o samba é samba é assim.

Mesmo sendo um cara um tanto do rock, minha alma batuca numa caixinha de fósforos, onde cabe toda uma bateria de escola de samba. Alcanço até os acordes de um tamborim que me arrebatam os sentidos. O pandeiro estica no couro a malemolência de quem me diz para não deixar o samba morrer, não deixar o samba acabar. O samba pulsando no asfalto, nos vozeirões dos Jamelões, intérpretes de samba-enredo das escolas de samba deste meu Brasil, que me faz tirar o chapéu para Cartola e abraçar a Vila de Martinho e Noel.

O Carnaval não deixou de rolar, pois é possível celebrar a vida em qualquer situação, ainda mais nesta onda de pandemia que decretou o nosso não encontro com o Rei Momo. A caixa de som do celular me acompanhou por todo o período que seria do Carnaval e ainda agora, nesta quarta-feira (que já foi) de cinzas, ela dispara os ritmos carnavalescos que não devem silenciar até o fim da semana, porque nessas horas sou meio de Salvador, meio de Olinda e levo o folguedo até as últimas consequências.

Vamos segurando a onda este ano para que tenhamos Carnavais com mais saúde e com mais futuro, com mais encontros etílicos ou somente na base da sagrada água, a bebida mais forte, que nutre e abençoa. Porque é hoje o dia da alegria (todos os dias) e a tristeza nem pode pensar em chegar.

Para compor esta crônica, me vali de várias citações: Samba de lado (Chico Science) / Diz que fui por aí (Hortêncio Rocha e Zé Keti) / Desde que o samba é samba (Caetano Veloso) / Não deixe o samba morrer (Edson Conceição e Aloísio Silva) / É hoje – Samba-enredo da escola de samba União da Ilha (RJ), 1982, (Didi e Mestrinho).

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