Resenha do livro “O som e a fúria”, de William Faulkner – (Por Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena)

Resenha literária de Lorena Queiroz

O som e a fúria é uma obra de William Faulkner publicada em 1929, e que, sem dúvidas, foi o maior e mais recompensador quebra-cabeças que já desvendei.

Antes de falarmos da obra é importante entender quem foi Faulkner para compreender este mundo criado e assinado por ele. William Faulkner ganhou o Nobel de literatura em 1949. Trabalhou em Hollywood escrevendo roteiros durante 1930 até 1940. E a respeito desta experiência ele disse em 1947 – ‘’Compreendi recentemente o quanto escrever lixo e textos ordinários para o cinema corrompeu minha escrita”. Mas o detalhe mais importante sobre Faulkner é o local e o período de seu nascimento. Nosso querido nasceu em 1897, em New Albany, no Mississipi. Vinha de uma família aristocrática tradicional e financeiramente decadente. O período de seu nascimento, a virada do século que carrega as mudanças. O sul dos EUA, o racismo, aquela atmosfera sulista pós guerra de secessão, o contraste entre norte e sul, tudo serviu como base para ambientação do mundo criado por Faulkner. É importante frisar que a influência para construção deste livro é o modernismo, que quebrou paradigmas e inovou a forma de ser fazer literatura, como também podemos observar nas obras de Virginia Woolf, Proust entre outros.

Este livro está entre os cem livros mais importantes pelo Le Monde, e em 1998, a Modern Library o classificou em sexta colocação entre os cem melhores romances da literatura inglesa do século XX.

O enredo da obra é bem simples, trata-se da história da decadência financeira e moral de uma família, os Compson. Uma família aristocrática que vivia no sul dos EUA, na fictícia Yoknapatawpha Country. Essa família é composta pelo Pai Jason, a mãe Caroline, uma mulher fraca que passa a maior parte do tempo acamada, seus quatro filhos; Benji, Quentin, Caddy e Jason. A escravidão já era abolida à época, mas era comum que as famílias conservassem seus antigos escravos na casa como empregados, assim, temos também nesta casa Dilsey, a empregada preta que é a pessoa mais sensata de toda a trama. Dilsey tem três filhos, T.P, Froney e Luster, que a ajudam nos cuidados com a casa.

O que tem de mais difícil na leitura e compreensão deste livro não é o enredo e sim a estrutura narrativa escolhida pelo autor. O livro é narrado em quatro partes e por quatro narradores diferentes, e adianto que o único spoiler dado aqui será a identidade destes quatro narradores, e com isso já facilitarei bastante a sua vida. O mais desafiador neste livro é conseguir passar do primeiro narrador, que é Benji. Benji nasceu com uma deficiência mental, ou como eles mesmos o descrevem: “nasceu bobo’. Benji, que antes era Maury, nome de um tio, foi rebatizado Benjamim com intuito de que a mudança do nome lhe mudasse a sorte. É importante ressaltar que há uma grande influência bíblica nesta obra. Assim, a mudança do nome da personagem conversa com Gênesis 35.18, que diz que o nome Benjamim foi dado pelo seu pai Jacó, pois antes de morrer no parto, Raquel, sua mãe, tinha lhe dado o nome de Benoni (filho da minha aflição). Entretanto, Jacó lhe renomeou como Benjamin, o filho próspero.

O livro se inicia em 1928 sendo narrado por Benji, um homem de 33 (trinta e três) anos, com deficiência mental que ama três coisas na vida: o pasto, a luz do fogo e sua irmã, Caddy. Benji tem alguns sentidos bem aguçados, como um som ou cheiros, que lhe remetem a lembranças que se misturam em uma narrativa que se dá através de fluxo de consciência. Ou seja, além da narrativa não ser linear, ainda encontramos fatos que estão soltos dentro de uma história que o leitor ainda não conhece, e que está inicialmente sendo narrada por uma personagem que não   compreende a própria história que narra. Então, neste momento nos deparamos com a influência da peça Macbeth, de Shakespeare. Na 5 cena do 5 ato de Macbeth, encontramos o seguinte trecho: ‘’ …. A vida é um conto narrado por um idiota cheio de som e fúria e sem nenhum significado”.

A segunda parte do livro é um pouco mais inteligível que a primeira, aqui encontramos o sensível e atormentado Quentin como narrador. Temos um retrocesso no tempo, pois Quentin narra acontecimentos que se passam em 1910, como já mencionei, a narrativa não é linear. Ainda encontramos bastante fluxo de consciência que se intercalam com a narrativa do presente. O importante sobre Quentin, ainda sob a influência de Macbeth, é o trecho: ‘’ A vida é uma sombra errante; um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não ser mais ouvido”.

Outra coisa muito cara a Quentin, devido a influência do pai, é o tempo. Como fica claro em um dos meus trechos favoritos do livro, quando Quentin ganha de seu pai o relógio que foi de seu avô; “Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.’’

A terceira parte deste livro volta para 1928 e é narrado por Jason, um homem mesquinho, racista, ganancioso, misógino e amargurado, pois acredita que teve seu futuro prejudicado por decisões e caminhos seguidos por sua família. Apesar de ser um sujeito odioso Jason é muito direto, o que facilita bastante a compressão do que já foi lido através dos dois narradores anteriores. Aqui já não temos mais o fluxo de consciência, e sim, um monólogo interior. Aqui sabemos mais sobre Caddy. Pois essa personagem não tem voz na trama. Todos os traços de personalidade de Caddy chega até o leitor através dos dois primeiros narradores que amam a irmã, como também através de Jason que a odeia.

É importante advertir que o leitor encontrará bastante a repetição de nomes como: Jason ( pai ou filho?) O Quentin, A Quentin. Mas isso tudo será esclarecido conforme a leitura avançar, então, vá até o fim.

A quarta e última parte deste livro é a mais esclarecedora e a única narrada em terceira pessoa. Aqui o narrador se concentra mais em Dilsey, a empregada preta que cuidava da família incansavelmente. Aqui conhecemos mais sobre a fibra moral de Dilsey e demais questões sobre racismo que não podem passar despercebidas, como no trecho; ‘’…Os brancos morrem também. Tua vó morreu como qualquer negro’’.  Em uma entrevista na Univesp, a professora Munira Mutran, esclareceu que com os primeiros narradores o leitor poderia ter a dúvida sobre se eles são confiáveis, mentem? Então Faulkner usa um narrador onisciente para contar o fim de uma forma mais precisa.

Em 1946 o autor inseriu um apêndice no livro que esclarece a linhagem e o destino dos Compson. Além disso, na edição mais recente encontramos um ensaio de Jean-Paul Sartre, intitulado A temporalidade na obra de Faulkner, que é bem interessante.

Para finalizar destaco um trecho do discurso de Faulkner durante a recepção do Nobel de 1950; ‘’Nossa tragédia, hoje, é um geral e universal temor físico suportado há tanto tempo que podemos mesmo tocá-lo. Não há mais problemas do espírito. Há somente uma questão: quando irão me explodir? Por causa disto, o jovem ou a jovem que hoje escreve tem esquecido os problemas do coração humano em conflito consigo mesmo, os quais por si só fazem a boa literatura, uma vez que apenas sobre isso vale a pena escrever, apenas isso vale a angústia e o sofrimento’’.

* Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site.

  • Lorena arrasando como sempre. E olha que esses escritores americanos da década de 1920 eram muito difíceis de ler. Havia muita experimentação literária e eles pareciam buscar uma ordem para fugir das narrativas universais que influenciaram a geração de escritores anteriores a deles. Sorte que as inovações foram aceitas e houve muita ampliação das temáticas. Parabéns, Lorena. Vc está cada vez melhor.

  • Lorena…esmiuçadora dos posicionamentos conflitivos destes autores atemporais que pinçavam por sua vez outras partes de textos de um outro autor em uma avalanche de belezura literária… logo esse embasamento configura a crítica literária sensata e que se sustenta pelo conhecimento e amor pelo que leu e lê a nossa inteligente critica…
    Como Fernando disse…arrasou mais uma vez.

  • Caramba. Já havia lido outras resenhas sobre esse livro. Mas essa é incrível. Direta e minuciosa. Parabéns ao blog e à colaboradora.

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