Resenha do livro “QUARUP” – Antonio Callado. (Por Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena)

Por Lorena Queiroz

Ainda criança em um bairro do subúrbio paraense, eu ficava intrigada com um documento que se estampava na TV a cada programação. Para mim, era algo que não permanecia sob minha vista tempo bastante para que meus olhos recém-alfabetizados tivessem tempo de ler e entender. Hoje eu sei que tratava-se de censura; mais uma das liberdades suprimidas pelo regime da época. Eu estou na casa dos quarenta e, mesmo assim, lembranças – que para alguns parecem tão efêmeras – voltaram a mim através de Quarup.

O livro se inicia na década de 50 e conta a estória de Nando, um jovem padre pernambucano que sonha em dar continuidade ao trabalho dos jesuítas no Xingu, mas não apenas pela catequização e sim por acreditar na pureza indígena e que deles é proveniente a essência do Brasil. E Nando embarca para o Xingu banhado deste sonho. Mas não antes de se deparar com temores carnais que são da essência do homem, potencializados em Nando pelo sacerdócio.

Chegando ao Xingu, Nando se vê em uma realidade longe da teoria que conhecia e através de Fontoura – um funcionário do SPI (Serviço de proteção ao índio) que conhece e vive com a alma entre eles – reformula e esclarece sua visão a respeito daquele povo, seus costumes, sua nudez desprovida de malícias, a simbologia que carrega o uluri, a tanga que cobre as índias e só por elas podem ser retiradas para que alguma coisa aconteça. O índio não ousa tocá-lo. Se uma índia joga seu uluri pra cima o índio se esquiva, pois só a índia detém o poder de seu manuseio. E muita gente achando que civilizado mesmo é o homem branco.

Existe ainda uma comitiva que embarca para o Xingu; entre eles existem outras personagens que mostram em seus diálogos, variadas visões de mundo. Ainda no Xingu, Nando se depara com os entraves burocráticos e políticos que são ainda mais inviabilizados pela corrupção. Em meio a tudo isso, a influência dos acontecimentos políticos da época, como a morte de Getúlio Vargas, que refletiria diretamente na expedição. Nando ainda tem a difícil tarefa de guardar para si o amor por Francisca, noiva do idealista Levindo.

Ao retornar do Xingu, Nando deixa o sacerdócio e posteriormente a ditadura militar se instala no país. Nando deixa de ser padre, mas o coração de sacerdote continua com ele, mesmo já tendo abandonado a liturgia e conhecendo prazeres do sexo e das drogas, ele preserva em si a caridade e o olhar para a dor do outro. As dores não só dos índios que morriam doentes e de fome, mas dos camponeses explorados, das feias, das prostitutas.

Nando faz uma peregrinação dentro de si mesmo. E cada personagem do livro lhe abre um caminho para vislumbrar, como Lídia, que lhe relata que Otávio, seu noivo, teria criado uma única rixa com Lênin, após ler Clara Zetkin, onde Lênin não teria aceitado a teoria do copo d’água. Outras personagens com graciosidade e força expõem suas personalidades em diálogos que trabalham todas as mudanças que se operam em Nando.

Quarup é um ritual indígena de Mawutzinin, o primeiro homem do mundo na cultura indígena. E seu Quarup é o ritual que leva os mortos para uma outra vida. E assim como os índios se encaminham para uma nova vida, Nando também tem seu Quarup.

Esta é uma obra-prima que saiu das mãos, mente, coração e sangue de Callado. Você se depara com o Brasil de uma forma genuína. Os índios, o Nordeste da década de 50/60, a história política e os horrores nos porões da ditadura. É um livro que desperta uma trilha sonora em sua cabeça. Você pode ouvir Belchior cantando ao fim de cada página. E creio que nada que escrevi fará elogios que bastem a esta obra. Pois é uma obra densa e com personagens que com tristeza deixei de mencionar para evitar spoiller. Ontem à noite, ao fechar a última página do livro e ainda olhando para o número 573, lembrei de a quantas andam nossas mazelas diárias nestas terras onde cantam os sabiás que de nada sabem, e pensei: Que nosso Quarup nos levem a tribos mais gentis.

* Lorena Queiroz é advogada, amante de Literatura e devoradora compulsiva de livros.

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