Roteiro de Leitura de “Os Sertões” (Euclides da Cunha) – 1º Capítulo: A Terra – Por @yurgelcaldas

Por Yurgel Caldas

“Canudos é o Cosmos. Euclides, um grego”. Assim começa a apresentação de Ricardo Oiticica para a edição de Os Sertões (1ª edição de 1902) publicada pela editora Record do Rio de Janeiro, em 1998. Nessa apresentação, o referido crítico trata a obra de Euclides da Cunha como uma tragédia clássica, pois o que a narrativa oferece ao público “é do domínio da catarse”, e tem como efeito o terror e a piedade por conta do que oferece o “narrador sincero”.

Se é possível, assim, tratar Os Sertões como uma tragédia e, ainda por cima, “clássica”, não é fácil estabelecer o gênero literário que prevalece nesta obra de Euclides da Cunha (1866-1909). Os Sertões, originalmente, são o produto de uma série de reportagens feitas in loco por Euclides para o jornal O Estado de São Paulo, para cobrir a guerra de Canudos, ocorrida entre os anos de 1896 e 1897. O mesmo livro pode também ser lido como um tratado de antropologia ou sociologia, mas, antes de tudo, serve para explicar o Brasil na transição entre a Monarquia e a República, o arcaico e o moderno, o atraso e o progresso, a barbárie e a civilização, dentre outros pares de oposição que sugerem um mundo maniqueísta e o esforço para acessar a modernidade, cujo modelo é europeu.

Na “Nota Preliminar” a Os Sertões, publicada pelo próprio autor em São Paulo, no ano de 1901, a intenção inicial seria falar sobre “os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”. Entretanto, o próprio narrador da obra (nada mais nada menos do que Euclides da Cunha) eleva o sertanejo a uma condição de herói do Brasil esquecido. Tanto é assim que o sertanejo “é, antes de tudo, um forte” e tantos outros epítetos heroicos aplicados ao homem do sertão, que é, no final das contas, o herói dessa tragédia finissecular do Brasil distante demais das capitais e, portanto, da própria modernidade.

Canudos – Foto: Maurício Hora

A Terra

Nas “PRELIMINARES”, o autor descreve o espaço onde se dará a guerra de Canudos. Lá pelas tantas, um parágrafo se inicia da seguinte maneira: “Verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral” – essa passagem pode ser uma imagem que resgata o desejo de unificação (“aplainamento”) da Nação (“geral”) não mais monarquista, mas agora presidencialista e moderna. Mais adiante: “É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes – grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros”. Aqui já aparecem os que habitam os campos (vaqueiros organizados em sociedades rudes), mas que precisam ser civilizados, posto que são bárbaros. Tratando da cachoeira de Paulo Afonso, o narrador informa: “Ali reina a drenagem caótica das torrentes, imprimindo naquele recanto da Bahia facies excepcional e selvagem”. Podemos entender que aqui a Terra é o Homem; assim, caótico, excepcional e selvagem é também o sertanejo. A região de Juazeiro é uma “paragem sinistra e desolada”. Trata-se de um espaço onde até os “verdadeiros oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre. Assim, os “mandacarus [apresentam-se] despidos e tristes”, lembrando “monumentos de uma sociedade obscura”.

Euclides da Cunha. Caricatura de Raul Pederneiras (1903)

Um aspecto sempre interessante em se verificar é o tempo, ou como ele é percebido pelo narrador em suas andanças pelos sertões. É uma categoria, assim como na Amazônia estereotipada pela História e pela Literatura, que não evoca o progresso. Para Euclides, mesmo “avançando célere […] o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade”, porque palmilha “um horizonte invariável que se afasta à medida que ele [o viajante] avança”. No povoado da Cansanção, “despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras; agravando todas no aspecto paupérrimo, o traço melancólico das paisagens…”

Guerra de Canudos – Obra que retrata batalha enfrentada em Canudos e que faz parte da exposição em Ribeirão Preto Imagem UOL.

Tratando especificamente do sertão de Canudos, o narrador menciona a seca como “o terror máximo dos rudes patrícios que por ali se agitam”. A seca, “esta fatalidade inexorável”. Em tal espaço e situação, “a luta pela vida […] é mais obscura, é mais original, é mais comovedora”.

*Contribuição do amigo Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.

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