Sei que se movia

Por Ronaldo Rodrigues

Sei que se movia numa região pantanosa.

Entre a muralha do castelo da realidade e seu coração, havia uma ponte elevadiça há séculos emperrada.

Setenta anos se passaram sem notícias dele. A cidade não dormia. Ele tinha levado não só o sonho, mas o sono de toda a gente. E somente aos domingos, embaixo da árvore da dúvida, era permitido falar nisso.

Sua família amealhou posses. Seus irmãos enriquecidos ostentavam poses. E sua amada chorava entre a espada cega da verdade e a colcha de retalhos de tristeza que tecia na beira do cais desde que ele sumiu no mundo, submundo, imundo, mundano. Sua casa foi comida pela hera. Era após era. Após hora.

Quando ele retornou, numa quarta-feira de cinzas, comandando a nau do esquecimento, sua barba o escondeu tão bem que nem seu cachorro Madrugada, grande devorador de sábados, o reconheceu. E seu irmão gêmeo jurou nunca ter visto aquele rosto.

Quando ele pousou o pé descalço sangrando gotas de azul e pisou o território selvagem de sua infância, a sombra da torre da igreja, muito antiga e já desprovida de sinos, soou do meio-dia às seis da tarde. O pássaro do dia, que há muito não voava pelo firmamento da imaginação, abriu suas asas e fez o silêncio despertar as nuvens, que partiram céleres levando uma notícia muito boa para um país muito longe.

No outono, veio a revelação. Quando sua barba caiu por completo, seu melhor amigo de infância, que se tornara próspero comerciante, lhe cobrou aquela dívida de jogo, motivo de sua fuga.

Então, a cidade inteira o reconheceu, o cercou junto ao poço da solidão e passou a devorá-lo como antigamente. Só as árvores o reverenciaram, tangendo no deserto da noite um rebanho de estrelas cadentes.

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