SOLIDÃO – Crônica de Evandro Luiz

Crônica de Evandro Luiz

Eu sempre quis ser uma pessoa simples. Despojado até na maneira de vestir. Um sapato esporte, uma calça lee e camisas com estampa de Charles Chaplin, Gandhi , Mercedes Sosa – Che GueVara não podia, mas eu tinha guardada uma em casa. Jovens assim não eram bem vistos pela maioria da população. Principalmente por aqueles que apoiavam quem estava no poder.

E essa maneira de se vestir, era um reflexo do meu interior, de uma chama que eu ainda não conseguia identificar. Ainda não estava claro por que havia esse conflito dentro de mim.

Foi só depois de entrar na faculdade que começou um novo olhar, um novo despertar. Quanto mais lia, mais buscava, mais era a sede do saber.

Foi aí então, que o meu meio mundo desmoronou. Não sabia o que fazer com aquele entulho de informações, que durante muito tempo norteou a minha vida.

O bom do desmoronamento veio à tona. Era como se fazia a manipulação, principalmente com a história oficial, aquela onde o ufanismo era o carro chefe da propaganda oficial. Isso ficou bem claro. E o que restou? Foi a descoberta de que havia um sistema perverso onde a burguesia se mantinha com regalias.

O financiamento de campanhas políticas era uma agressão. Não havia a menor possibilidade de um cidadão comum ganhar uma eleição de um candidato financiado pelas elites – tamanha a diferença orçamentária entre os candidatos.

Levou algum tempo para me refazer e, com o que sobrou da minha colcha de retalhos, fiz uma nova base política e aí pude sentir o calor de novos tempos.

Dos meus olhos, pude retirar as retinas manipuladas que me impediam exercer a minha cidadania. Mas esse exercício da cidadania, estava suspenso por ordem do planalto central. Foi aí então que percebi que agora eu estava no mundo real.

Imagine você ter que comprar livros escondidos. Tomar um chope na calçada do bar era proibido. Reuniões eram uma grave ocorrência; quem fosse preso, estava com o futuro comprometido. Não ter a liberdade de ir e vir.

E foi com essa nova postura politica que fui chamado a participar de reuniões com lideranças estudantis. Lá comecei a perceber como estávamos longe de ser uma democracia. Como conscientizar uma população carente de tudo? Só no corpo a corpo nas comunidades, se via algum resultado. No período da noite, as pichações; faixas eram estendidas em pontos estratégicos, além das barricadas nas favelas. Em uma madrugada, onde parecia tudo calmo, a nossa equipe estava com a responsabilidade de fazer uma ação na Beira Mar. Mas de repente, nos vimos cercado por militares. Lá mesmo passamos pela primeira sessão de tortura: foi muita porrada; chutes, tapas, joelhadas, murros. Fomos levados para um quartel do Exercito. Foram três meses sem poder falar com ninguém. Mas as torturas não falhavam, eu perdi 25 quilos. Fiquei irreconhecível. Mas foram os choques elétricos que deixaram sequelas irreversíveis.

Só fomos liberados depois de uma negociação que envolveu uma autoridade americana.

Já aparentando cansaço Paulo Wernek, 75 anos, perguntou: com esse material dá para você publicar em um jornal ? respondi que sim. Tinha um bom material.

Desliguei o gravador e ele, com certa dificuldade em se levantar, se apoiou em mim e disse: vou dormir um pouco. Fiz então uma ultima pergunta; Por que você resolveu contar essa história pra mim? Ele olhou para horizonte, como se estivesse buscando uma resposta para mim. Então ele falou: fui diagnosticado com Alzheimer. Daqui a pouco não lembrarei de nada. Serei apenas um numero para as estatísticas. Agora, com esse depoimento publicado, fica o meu legado.

Com passos lentos, saiu em direção ao quarto 44. O ex-militante das Diretas Já, dos movimentos estudantis, das grandes passeatas em favor da democracia se recolhia à solidão de quem vive em abrigo para idosos.

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