SOMBRA

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Olhei para o muro e estranhei. Faltava alguma coisa ali. Quando cheguei em casa também estranhei, olhando para a parede e achando que faltava algo nela. Só percebi o que acontecia quando liguei a TV, bem na hora do noticiário.

Apresentador: a cidade foi tomada por uma onda de roubos. Trata-se de uma modalidade de crime nunca antes registrada pelo código penal. As sombras das pessoas estão sendo roubadas. Várias vítimas deram entrada nas delegacias da cidade registrando a estanha ocorrência. Se você ligou a TV agora verifique se sua sombra continua lhe acompanhando.

Que merda era aquela? Pensei até que era coisa de programa de humor. Roubo de sombras? A ficha caiu. Ficha? Que ficha? Que gíria datada, ultrapassada! Já não se usa mais ficha, se usa cartão. Então, atualizando a gíria: quando caiu a unidade do cartão logo percebi que o que faltava no muro e na parede de casa era a minha sombra.

Olhei bem em minha volta e nem sombra de sombra. Caramba! Roubaram a minha sombra e eu nem me toquei! Tratava-se, então, de um furto. Eu sabia a diferença entre furto e assalto e achava que saber isso seria útil um dia. Furto, o nome já diz, é realizado furtivamente. O ladrão se aproveita de uma distração da vítima. Já o assalto é anunciado, tipo “Isto é um assalto!”. Quer dizer, isso só é falado assim nos filmes. Cá na vida real o negócio é mesmo: “Dançou, mermão! Perdeu, playbou! Vai passando os cobres! Não olha pra trás! Sai fora, otário! Pra quê que otário quer dinheiro?”.

Achei estranha a ideia de dar queixa do roubo da própria sombra, mas me dirigi à delegacia, que estava lotada de dessombrados. Pensei até, brincando, é claro, num momento de descontração que sempre rola comigo em situações tensas, que poderíamos fundar o Movimento dos Sem Sombra. Só que a galera não tava muito a fim de brincadeira, não. Todos preocupados com o sumiço de suas sombras.

A dúvida que pairava em cada cabeça era como se processava o modus operandi dos ladrões. Com quanto tempo eles ligariam para pedir resgate? Venderiam nossas sombras no mercado paralelo? Como estaria a cotação de sombras? Eram coisas que só se saberiam com o tempo. Já tinha gente tentando se conformar e imaginar a vida sem sombra. Impressão minha ou as pessoas que não tiveram suas sombras roubadas ostentavam um arzinho de superioridade? Algumas se mostraram solidárias. Meu irmão colocou sua sombra à minha disposição caso a ciência avançasse a tal ponto que transplante de sombra fosse possível.

Voltei pra casa procurando a sombra. Quem sabe ela não tinha escapado dos ladrões e também me procurasse naquele momento? Não achei mais estranho o muro sem a projeção da minha sombra e quando entrei em casa vi uma carta no sofá que não estava lá antes. A carta era de minha sombra. Ela dizia ter fugido, aproveitando a onda de roubos de sombras, para que eu não ficasse magoado. Na verdade (ela confessou no P. S.), ela não tinha fugido, só foi dar uma volta, espairecer, dar um tempo, sei lá. Epa!

Ouço passos de veludo lá fora se encaminhando pra cá. Seria a sombra que, não suportando a saudade, já estaria de volta? Sem sombra de dúvida. Era ela sim. Abri uma cerveja e fiquei ouvindo suas aventuras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *