Tecendo a memória – Sobre o livro “Tecituras de Helena”, da autora Helena Bermerguy – Por @luizadejobim

Aos 80 anos, Helena Bemerguy reconta sua infância em livro bordado – Foto: Arquivo Helena Bemerguy.

Por Luíza Nobre

Faltando 15 minutos para o horário marcado para o início das fotos, eu ainda procurava no quarteirão o “excelentíssimo jardim” indicado no convite. Noto movimento e portas abertas em uma casa com muros de vidro onde funciona um escritório de advocacia e desço ali. Ainda molhadas, as plantas pareciam cabisbaixas por conta da chuva que tinha acabado de cair. Olho para o chão e vejo uma paleta de tinta gigante, na qual se encaixam vasos de flores. Tive a certeza de que estava no jardim certo.

O final do corredor estreito abria para um quintal aconchegante e coberto, onde se distribuíam cadeiras para os convidados se acomodarem. Uma lona comprida com ilustração de estante de livros prevenia que as cadeiras fossem molhadas. Os guarda-chuvas abertos, no entanto, em nada protegiam da água, mas cumpriam seus papéis decorativos pendurados no teto.

À direita, uma mesa com doces e chocolate quente foi disposta ao lado dos bordados emoldurados da autora, organizados em uma escada com flores. Os bastidores formavam um varal de bordados que balançava com o vento ou com a curiosidade de quem queria ver de perto as obras. Uma boneca de pano escorava-se na garrafa quente e ao fundo dela, via-se um baú aberto repleto de exemplares do livro.

Procurei um lugar para me sentar e montar a câmera, enquanto observava dona Helena, que socializava em uma rodinha de senhoras. Percebi que não via Helena há uns 15 anos, desde a época dos os aniversários de Maíra, sua neta e também minha amiga. Sorri e me apresentei como a moça que faria as fotos do lançamento. Ela sorriu de volta e perguntou meu nome, enquanto sentava em uma poltrona vermelha que combinava com o vestido azul e o tênis moderninho cheio de brilhos e amarrações, para fazer os primeiros registros.

Já com um volume considerável de pessoas, Amélia, a filha caçula da anfitriã, pediu licença para iniciar a apresentação do “Tecituras de Helena”. Ela, a Helena a quem o título do livro se refere, comentava o processo de criação junto dos desenhos de Bárbara Damas, que foram adaptados em linhas de costura e depois impressos em papel.

Abria-se o momento de perguntas e eu, que até então estava com os olhos na câmera tentando me camuflar atrás do móbile de sapatos, levantei a mão. “Queria saber como foi o processo de ressignificação das suas memórias”, ela me olha e diz “Olha, minha filha, acho que ainda está sendo. Quer dizer, eu sento e bordo, tendo motivo ou não. Esse livro eu fiz para deixar de herança para os meus netos, junto das muitas histórias que eu quero contar no livro e fora dele”, assenti com a cabeça e um “muito obrigada” e voltei para o meu lugar de espectadora.

Mais tarde, enquanto ela autografava os livros e eu registrava tudo bem de frente para a mesa, tentando não enquadrar o copo que ela escondeu atrás das flores, dona Helena me olha e pergunta se minha dúvida foi sanada. “Profunda a sua pergunta, menina, eu preciso pensar melhor sobre ela”. E eu, uma jornalista que nutria imensa curiosidade para além das histórias contadas, pedi timidamente para entrevistá-la no dia seguinte. Tempo suficiente para que ela processasse o que perguntei.

Na minha época

Nascida em Belém, capital do estado do Pará, no ano de 1937, Helena Aben Athar Bermerguy teve uma infância movimentada, mas sempre tranquila. Irmã mais velha entre os seis filhos, era ela quem comandava as brincadeiras e, quando necessário, ajudava a mãe em casa. “Eu vivi o século XX, minha infância não teve internet e televisão, precisávamos ser criativos”, comenta olhando para o meu celular que fazia papel de gravador no momento.

Das tecnologias da época que a menina gostava, o rádio era a predileta. Conta que passava tardes sentadas na mesa do pai ouvindo as canções e novelas, e só aprendia músicas se copiasse a letra. Um apreço que foi da palavra falada para a palavra escrita e a fez criar afinidade com as narrativas textuais.

“Na minha época, a menina que não tinha diário não estava por dentro da moda, e tinha que manter ele bem escondido. Eu escondia debaixo do colchão para a mãe não ver. Tive uma adolescência inteira, logo que entrei no ginásio”. Ela dividia com o caderno os sentimentos do dia e os sonhos juvenis. Mas engana-se quem pensa que confidenciar segredos fosse um ato movido pela timidez. Helena gostava mesmo de ter um motivo para contar histórias.

Ainda no início do livro a escritora descreve Belém como uma cidade única, e para ela, o melhor lugar. As comidas, os sabores, os igarapés e as mangueiras que subia para apanhar fruta da janela de casa. Pontualmente fala do pai, que ia à feira e trazia o paneiro carregado de frutas, depois reunia todos os filhos em volta da mesa para que provassem e aprendessem os sabores de cada uma.

”Como disse, meus primeiros pontos foram praticados nos enxovais dos meus irmãos mais novos”, dona Helena fazia dos bordados mais uma de suas brincadeiras em uma rotina em que boa parte do tempo era dentro de casa. De família tradicional judaica, ela sempre foi uma moça reservada pelas questões religiosas, mas o suficiente para não deixar de se destacar.

“É que no meu tempo as coisas eram mais diferentes, a juventude era outra”. E percebo que ela repete essa frase muitas vezes enquanto fala. Mas sem saudosismo. Sem o desejo de retornar ao passado. Fala com apreço às memórias afetivas que ainda são vivas na lembrança, e agora eternizadas em um livro que eu tenho em minhas mãos.

Vou te contar

Os bordados que antes eram passatempo ganharam outro significado na vida da jovem. Aos 17 anos, Helena foi “deportada” para Macapá, para que se afastasse de um namorado cristão. “Eu vim morar aqui muito cedo e sentia muita saudade dos meus pais, então comecei a bordar minhas histórias e alinhavar algumas coisas no meu texto”.

Na expectativa de seguir vivendo um amor impossível, o rapaz veio atrás dela na nova cidade, e lhe propôs um casamento onde ela não precisaria se preocupar em trabalhar e como diz Vinícius de Moraes: ser só perdão. Tudo o que ela não esperava da vida. “Eu sempre sonhei com minha independência financeira, porque eu acho que a mulher tem que ser dona da vida dela”, e preferiu seguir a vida sozinha e focada nos novos interesses.

Mas como diz a expressão popular: casamento e mortalha no céu se talha. E fugindo ou não da orientação do pai, o destino amoroso dela foi com um judeu. “Eu era a única judia em Macapá e só havia um judeu aqui, que era noivo na época. Quando me conheceu, desmanchou o noivado e nos juntamos, casamos e tivemos quatro filhos.” E mesmo trabalhando fora e tendo autonomia, Helena dedicou-se à construção de uma família sólida.

Mair Naftali Bemerguy e Helena Aben-Athar formaram juntos uma das famílias tradicionais de Macapá quando a mesma ainda estava em processo de deixar de ser território do Pará e se tornar uma cidade. “A família é como uma célula, minha filha, quando ela é boa na sua base, aqui embaixo, ela tende a seguir próspera”. Apesar de ter se casado cedo, ela se tornou viúva ainda jovem, quando completou 52 anos.

“Depois dos meus sessenta anos, quando comecei uma nova fase na minha vida, época em que meus filhos foram morar em Brasília, passei a fazer muitos cursos de crochê, frivolité, macramê e outros. Foi nesse movimento entre armarinhos que comecei a pensar na possibilidade de bordar minha história”, diz ela sobre a descoberta dos livros bordados. Por algum motivo, lembrei-me do poema “O Menino Que Guardava Água na Peneira” de Manoel de Barros que fala da infância e pergunto se ela conhece, recitando o primeiro verso para facilitar a lembrança. Ela balança a cabeça positivamente e diz que foi o primeiro livro bordado que leu e a inspirou. Ri da coincidência e tira da mala cópias dos desenhos originais que Bárbara Damas fez para o Tecituras de Helena.

O desejo de dar continuidade a um trabalho que se propôs a fazer na construção da família não lhe permitiu criar interesse em buscar outro casamento, e assim, o foco de sua vida voltou-se para a educação dos filhos. “A Bossa Nova passou em minha vida e não vi”. E nesse momento eu, que a ouvia sentada no chão aos pés da poltrona onde ela deitava esticando as pernas e permaneço observando os olhos dela.

Os olhos de Helena são de um acinzentado límpido, mas sem suavidade. Um olhar que não têm nada de tranquilo e que me atravessaram como a agulha atravessa o tecido para abrir uma nova casa em um ponto corrido. Penetram e constrangem, mas não um constrangimento ruim, e sim de quem se perde na transparente da expressividade deles. E penso que o maior baú de histórias dela talvez esteja guardado no olhar.

Livro Tecituras de Helena.

Das memórias que não soube tornar possíveis

“O meu neto de quinze anos sempre diz: vovó você foi professora, hoje você não é mais. E realmente, o ensino mudou muito, a maneira de ensinar. Confesso que pelo pouco que vejo meus netos estudarem, percebo uma evolução na forma de estudar, tem a internet, a leitura dinâmica”. Aposentada como professora de ciências e matemática, Helena não acredita que existam outros caminhos para o sucesso que não sejam construídos através da educação.

E entender a educação como fator modificador a faz se aproximar da realidade dos netos. Viver e se adaptar ao tempo presente sem grandes esforços e dialogar com diferentes gerações. “Eu sou um ser político, gosto de acompanhar o movimento do mundo. E sempre pugnou pelo social, não admito preconceito racial, de gênero… sou a favor das cotas, políticas públicas para as minorias”. E me mostra em seu celular os contatos do WhatsApp dos netos, com quem ela fala diariamente.

Quando lhe perguntei sobre a rotina, recebi um “eu faço qualquer coisa diariamente” como resposta e achei graça da objetividade dela. Mas compreendi que, para uma senhora de 80 anos com uma mente pensante e inquieta “qualquer coisa” sempre há de ser algo construtivo e interessante. Hoje ela nutre o desejo de ensinar a arte do bordado para quem tiver disposto a aprender e até me oferece uma vaga na possível primeira turma.

Decidir bordar a própria história, literalmente, foi uma forma que ela encontrou de dividir com os filhos os momentos que não teve a oportunidade de contar. Criar memórias a partir das memórias narradas, mesmo que tardiamente e agora, com mais uma geração para ouvir e carregar junto toda essa bagagem. Unir a família em uma única tessitura atemporal.

E deitada em uma poltrona rosa, uma espécie de divã, eu presenciei o que para mim tinha sido uma das maiores manifestações não governamentais do que seja a

memória. Tão espontaneamente que preenchia o espaço e tudo era motivo de um gancho ou explicação para existir naquele cômodo, na casa do filho de Helena. Tão pueril como o próprio livro. E com um convite final para um bolo no pátio, e mais conversa. Enquanto ela se adianta passos à frente, eu abro o prefácio do livro e releio “Quando terminei este livro fiquei pensando se meu pai ao lê-lo não diria: Abu, Helena, Abu*!”

*Abu significa “mentira” em hebraico.

Fonte: Café com Notícias.
* Luíza Nobre é jornalista, fotógrafa e produtora do programa de rádio Café com Notícia na 90,9FM, além de pesquisadora na área de memória e narrativa. Artista e curadora de memes.

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