Temos Rei! – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

No ponto seguinte, embarcou o cego. Movia-se com tal desenvoltura que se poderia jurar não se tratar de um cego. Orientava-se com um tosco cajado e trazia na mão direita uma taça:
– Eu me chamo Samuel! Por favor, não tenham medo de mim!

Samuel falava de uma maneira extremamente solene, uma característica marcante, que ganhava maior autenticidade ao entrar em choque com sua pobre indumentária, uma túnica suja e esfarrapada até as últimas fibras:
– Venho das páginas sagradas de um livro muito antigo! Estou aqui para sagrar o Rei!

Eu sabia da existência de Samuel através de algumas pessoas minhas conhecidas que comentavam sobre um mendigo cego e louco visto todos os dias nos ônibus da cidade em busca de um Rei:
– Este povo ingrato, a quem tenho a missão de guiar, resolveu ignorar as palavras daquele que me enviou! Não querem mais o Rei semeador de jardins espirituais! O Rei utópico, o Rei onírico, não querem mais! Querem um Rei que possam tocar com as mãos e beijar os pés! Querem um Rei para lhe pagar tributos e esperar sua proteção, sua misericórdia! Se assim querem, assim terão!

Agora eu estava ali no ônibus constatando pessoalmente a presença de Samuel, ouvindo suas palavras, que me pareciam lúcidas demais.

Num dado momento, Samuel ergueu sua taça e um silêncio arrasador foi sentido no interior do ônibus, como uma presença física:
– Vejam todos! Dentro desta taça, trago o óleo perfumado que irá ungir o Rei, que deve estar entre vocês, passageiros deste ônibus que cruza esta metrópole!

Samuel percorria o ônibus procurando o Rei, olhando detidamente cada passageiro. Ninguém escapava daquele olhar opaco, parado nas órbitas, perdido no caos, mas que tinha uma iluminação diversa de qualquer outra luz.

Eis que seu olhar parou exatamente na minha direção. O meu olhar tentou fugir, por não se considerar digno de um olhar tão sábio. Nesse momento, Samuel ganhou grande vivacidade:
– Encontrei! Encontrei o que tanto procurava!

Fiquei perplexo e isso se estampou em todo o meu ser. Senti que todos os olhares se fixaram em mim. E não só os olhares das pessoas que se encontravam naquele ônibus. Me senti sendo visto por todas as pessoas do mundo.

Samuel ergueu sua taça e derramou todo o seu conteúdo sobre minha cabeça. Um óleo que exalava o mais agradável odor que já pude sentir. A voz de Samuel ganhou proporções acústicas de uma gigantesca trombeta:
– Temos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Imediatamente, o trânsito parou e todas as pessoas que estavam no ônibus se ajoelharam diante de mim, em adoração. Fato esse seguido por todos os que se encontravam nos outros carros e também pelos pedestres que enchiam as ruas, pessoas que estavam nos edifícios, nos comércios, nas casas.

Seguindo essa corrente, percebi que já o bairro inteiro fervilhava em aclamações ao Rei, isto é, eu. E não demorou um segundo até o país e o mundo inteiro se fazerem ouvir numa só voz:
– Temos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Quando eu já havia percebido que não se tratava de um sonho e, investido de toda a responsabilidade e autoridade que aquele cargo me conferia, desci do ônibus, com a temerária tarefa de governar aquela gente instável, desordenada e confusa.

Samuel, designado por sagrada decisão daquele que o enviou, seria meu conselheiro supremo. Ele havia, no momento da revelação do meu destino, retomado sua faculdade de enxergar.

Sentei no meu trono triunfalmente, aclamado pela infinita multidão, apenas uma pequena parcela do povo que eu deveria conduzir sem nunca mais poder olhá-lo novamente, pois, no exato momento em que Samuel recuperava sua visão, eu perdia a minha. Para o resto da vida.

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