Três contos negros para um cara pálido – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Replantar árvores de noite. Na calada da noite, quando os cães principiam a adormecer imersos em sonhos repletos de ossos enterrados. Cães sonham. Neste mesmo instantes estão os gatos pelos telhados, barulhentos e sedentos de pecado.

A silhueta da lua jaz em uma lata de sardinha abandonada, aberta e atirada ao acaso no quintal, só a metade acimentado. Ele desce de chinelos surrados, arrastando o lado esquerdo do corpo semiparalisado. Enxerga pouco, próximo e só para adiante. Mas sonha também como os cães em replantar árvores e enterrar ossos.

Ninguém desconfia que é ele quem quebra o cimento do quintal pacientemente, noite após noite.

E que é ele que se masturba incompletamente na rua íntima dependurada de Alice.

Para depois lavar a mão no balde cheio de água aparada da bica, onde às vezes a lua também mija.

Ela abre a casa. Escancara a janela e enxota as formigas com uma vassoura tão velha quanto ela. Atira pedras nos sapos e arranca as trepadeiras que se agarram na janela traseira do barraco em que mora com o marido semiparalítico, ex-madeireiro que durante três décadas quase desmatou toda a região Sul do Pará.

Enquanto ela repete esse ritual de abrir escandalosamente portas e janelas, ele deixa-se ficar na cama ao lado de sua perna mecânica, presa entre duas cadeiras e a mesinha com o rádio de pilha, sua companhia mais íntima.

Ela é quem encontra a roupa suja e amarelada com vestígios de sangue.

É ela quem encontra o balde com a água suja e atribui aos gatos.

Uma noite ela se sentindo infeliz e solitária vai até a sua cama.

Ele não estava.

Havia colocado sua perna mecânica e saíra pela porta da cozinha.

Ficou em dúvida se fora ele que saíra ou fora Alice.

Que saindo, como de costume, nua, para estender seu vestido de chita colorida e deixá-lo secar ao sabor da brisa morna da madrugada, a esquecera aberta.

Ela sentou- se a mesa da cozinha, e nem lembrou de procurar Alice.

Ficou riscando com uma faca quase sem fio um desenho bizarro com as sobras de pão, figuras de galos, bois, pássaros, e meninos miúdos de curtas asas.

Sem notar que entravam formigas, percevejos, grilos e cupins.

E começavam a importuná-la.

Nem viu quando ele entrou.

Havia replantado almas de árvores, as mesmas que ele tinha cortado há trinta anos, sujado de sêmen o Vestido de Alice, e amarrado os cães aos gatos em cima do telhado no silêncio das brisas magras.

Entrara pulando. A perna mecânica ficara abandonada no córrego extasiada… olhando Alice que se banhava.

Ele entrou, nu, negro de fuligem em uma perna só.

Pouco tempo depois, Alice – chateada com a briga do casal em uma tarde, quase véspera de Natal – viajou para o Paraná, onde vendeu seus olhos de vidro e com o dinheiro alugou uma casa para cuidar de gatos, sapos e um casal de morcegos que vieram com ela dentro da sacola de transporte de dinheiro do Banco do Brasil.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (SP) – 2020

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