Uma leitura de A Paixão segundo GH – Contribuição de @yurgelcaldas

Por Yurgel Caldas


Não é possível afirmar com segurança que o romance de Clarice Lispector, A paixão segundo GH, publicado em 1964, seja uma alegoria da ditadura militar no Brasil, cujo golpe de Estado emergiu no mesmo ano do lançamento do referido romance. Mas é possível encontrar algumas referências ou sombras (para falar no contexto obscuro das torturas ocorridas sob o comando dos militares nos “porões” dos quarteis pelo Brasil afora) no discurso perturbado e perturbador da protagonista GH, em diversos momentos do romance de Clarice. Assim, no início do relato, GH prepara desta maneira o que teria a dizer, não por vontade própria de narrar, mas pela necessidade mesmo da mensagem: “Estou adiando […] adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio” (LISPECTOR, 1998, p. 22).

Mais adiante, no parágrafo seguinte da mesma página, a referência à ditadura que oficialmente debutava naquele amanhecer do 1º de abril de 1964 é feita assim pela narradora: “Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele […] terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal”. A impossibilidade do relato, por simples desejo de não contar ou por força maior que o próprio desejo do silêncio, pauta os atos de GH: “então vi como quem nunca vai contar. Vi, com a falta de compromisso de quem não vai contar nem a si mesmo” (p. 106) – tal é a clareza e a verdade do acontecimento visto e experimentado.

Mais adiante, já numa crise de representação de si e do mundo, ou de si para com o mundo – este corpo repleto de múltiplas violências (GH e o próprio mundo – esse universo que é feito de inferno e paraíso [sempre infernal] que a habita), a personagem reposiciona seu leitor no contexto politico da ditadura no Brasil, inventando um interlocutor, que é ao mesmo tempo o amor e a família perdida no passado de GH: “Dá-me a tua mão desconhecida , que a vida está me doendo, e não sei como falar – a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas” (p. 34). Assim como pesados demais seriam os anos de chumbo e faziam natural ao cidadão de bem a violência de viver e estar no mundo.

GH é, no final das contas, uma mulher torturada pela linguagem: a fala e a escrita são insuficientes para retratar o estado da alma “dessa mulher”, “essa mulher que sou” (p. 44) (como a narradora fala de si, sendo ela mesma, que não é completa ao final, pois está numa travessia de auto-conhecimento e percepções vários de uma experiência de viver: “Levantei-me enfim da mesa do café, essa mulher” (p. 33) ). GH é posta a falar, mas não consegue; e não consegue porque não quer, porque não pode e porque não sabe o que falar – condição de todo torturado pelos militares que contavam com uma ampla rede de informações esquizofrênicas contra o avanço do comunismo no mundo e no Brasil. GH, uma mulher independente, escultora por hobby, solteira, sem filho e rica, morando num apartamento na cobertura de um prédio elegante do Rio de Janeiro, também é torturada pela ausência de Janair – empregada negra com “postura” e “traços de rainha” (p. 41), que não mais trabalha para a patroa e, com sua ausência, força a dona a fazer uma faxina no próprio apartamento, começando pela arrumação da dependência de empregada, na intenção de receber a nova serviçal.

Sim, GH é também torturada pelas ausências – a ausência da empregada e a visão que esta construíra da patroa durante o tempo de serviço; GH é torturada pelo quarto vazio da empregada (espaço ausente no cotidiano da dona do apartamento); GH é torturada por uma fotografia antiga na qual ela mesma não se reconhece no presente da narrativa (na verdade um relato mais oral do que escrito para o interlocutor inventado – única forma possível de dizer tais experiências); GH é ainda torturada pelo desenho que ela descobre no quarto da empregada, que remete a um cachorro, um homem e uma mulher na qual se identificaria: “eu sabia que nunca passara daquela mulher na parede, eu era ela” (p. 64); e finalmente GH é torturada pela barata que surge da “porta estreita do guarda-roupa” (p. 46). Não é, pois, uma barata, mas trata-se de “a barata grossa” (p. 47) que se movera para o pavor e a epifania primordiais de GH. Assim GH passa a narrar sua experiência em diversas passagens em que se apresenta como uma mulher aprisionada (e sempre torturada no presente pela promessa de felicidade que não se cumprira até então). GH narra a seu interlocutor amoroso (amante e amado, sujeito e objeto do amor) o que lhe tinha acontecido no dia anterior [o encontro com a barata] – e por uma esperança que se desenhava já falida do momento do relato para o futuro da protagonista. GH narra, enfim, sua falência e exatidão como um sujeito confinado à revelia naquele espaço indesejado do quarto da empregada (“na minha clausura entre a porta do armário e o pé da cama” [p. 51]), mas paralisada por suas memórias e ainda com uma necessidade ímpar de contar essa experiência.

E assim salta aos olhos do leitor a sensação perene do torturado, na passagem: “Em mim um sentimento de grande espera havia crescido, e uma resignação surpreendida” (p. 51). Mas, ao final, é a vitória lenta e justa do não falar que GH aprende com a barata: “Como é luxuoso este silêncio” (p. 66). Este silêncio dourado só é possível porque, para GH, “o que vi não é organizável” (p. 68) e, portanto, não se presta a uma linguagem reconhecível, pois é um “relato impossível” (p. 73) “para construir uma alma possível” (p. 73). A paixão segundo GH é, enfim, sobre as (im)possibilidades de narrar o usual, o neutro, o insosso, o natural que é a violência de ser e estar no mundo pela revelação de si para si. Não há mensagem a ser dita; não há o que relatar, nem a quem fazê-lo; sequer há quem delatar, muito menos isso, já que “Eu abria e fechava a boca para pedir socorro mas não podia nem sabia articular. É que eu não tinha mais o que articular” (p. 74).

Em outro momento da narrativa, chama atenção a forma como GH fala de si no espaço, e lembra o leitor dos tempos perigosamente calmos na ditadura: “o país estava em onze horas da manhã” (p. 80) – momento em que os ponteiros do relógio desenham a imagem parecida com a letra V, que pode significar tanto “Vitória” quanto “Vazio”. A descrição segue na mesma página: “Superficialmente como um quintal que é verde, da mais delicada superficialidade […] No resto da casa a sombra está toda inchada […]. São onze horas no Brasil. […] Até que num hino nacional a badalada das onze e meia corte as amarras do balão. E de repente nós todos chegaremos ao meio-dia. Que será verde como agora”. Então, do verde superficial brota GH, que na realidade “estava no deserto” (p. 80) destoando de todo aquele verde esperançoso e superficial e do hino da vitória. GH é sempre um contraponto: “Eu estava tão assustada que ainda mais quieta ficara dentro de mim” (p. 81).

Afinal, o que relata GH senão a relação de amor que é criada a partir da visão odiosa de uma barata que sai de repente da porta do guarda-roupa do quarto da empregada? GH trata de cotidiano, do comum que é a visão da barata, mas também indica o quão inédito é para ela, a dona do apartamento de cobertura, fazer uma faxina começando por um cômodo onde nunca entrara. Ao final, GH delata a si mesma: “e então não suportei mais a tortura e confessei, e estou delatando” (115). O que GH delata senão as formas de acontecimento do amor? “Estou somente amando a barata. E é um amor infernal” (p. 115). GH está no mundo e o experimenta, no gosto da barata, como um contraponto ao sabor que revela a “grandeza infernal da vida” (p. 122).

*Contribuição do amigo Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do  Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *