UMA VIAGEM ÀS ORIGENS – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto

Canhão da Fortaleza Gurjão (Serra da Escama) – Óbidos-PA

Minha proveitosa viagem a Óbidos/PA, em julho de 2009, serviu para despertar mais um pouco em mim o sentimento grande de pertencer à natureza amazônica. O lugar, belíssimo, caracterizado por uma arquitetura colonial ainda conservada, cheio de ladeiras e ruas calçadas com paralelepípedos, lembra as cidades setecentistas das Minas Gerais.

Mas isso não é tudo. A cidade fica à margem da parte mais estreita do maior rio do mundo, que faz com que seu leito estreito se aprofunde e a água corra com uma velocidade incrível. Ela tem uma topografia ondulada, cheia de colinas e serras. E nesta época do ano o povo ribeirinho local sofre com a enchente. No entanto, esse fenômeno da natureza se transforma em condição cultural perfeitamente contornável, já que é esperado. Às vezes ela chega grande, como uma colcha de água a cobrir lentamente a cama. Causa problemas no desembarque dos navios e lanchas, visto que o trapiche praticamente fica submerso e os passageiros são obrigados a descer em balsas de ferro, atravessar o centro do comércio e finalmente subir as ruas enladeiradas. Mas o comércio não pára e, mesmo com a cheia, a população fica abastecida de peixes.

Aspecto da cidade de Óbidos-PA

Do alto de uma roda gigante pude observar a exuberância de uma cidade que cresce obrigatoriamente para o norte, em terras que um dia abrigarão novos aparatos urbanos e certamente pode vir a conurbar com o igarapé Curuçambá, se não houver Lei municipal que preserve sua vocação turística e ambiental.

Sua primeira vocação, aliás, como a das demais cidades coloniais da Amazônia portuguesa, era a de salvaguardar as terras do Reino e de evitar invasões estrangeiras. Tanto que ali há vários prédios militares que marcaram a história da cidade para sempre, como o Forte Pauxis, a Fortaleza Gurjão e o belo trabalho de arquitetura, o Quartel neocolonial, restaurado, que salvo engano completou 100 anos de fundação em 2009. O Forte Pauxis data do século XXVIII e fica em um ponto privilegiado e alto da cidade, parecendo um mirante. Sabe-se lá quantos não tombaram em sua construção e quantos soldados não estenderam seus olhos perscrutadores na vigília constante em busca do inimigo. O mesmo acontece com a Fortaleza Gurjão, um pouco mais nova, localizada no alto da Serra da Escama, aonde três enormes e pesados canhões de fabricação alemã, capazes de girar 180º, ali se encontram, silenciosos e semidestruídos. Quem quiser vê-los terá que atravessar o lago que circunda a montanha e subir por uma trilha estreita e difícil até chegar às casamatas, que também um dia abrigaram os soldados vigilantes, estes que talvez num esforço sobre-humano, aliados a uma tecnologia militar incipiente, plantaram as armas de guerra no local. O Quartel, no centro da cidade é um alívio para os olhos. Possui uma arquitetura que lembra os castelos mouriscos, com suas torres, portais e janelões. Nele está atualmente instalada a Secretaria Municipal de Cultura e a Biblioteca Pública. Além disso, podemos observar as construções religiosas como a Prelazia e a igreja de Santana, a padroeira do lugar.

Canhão da Fortaleza Gurjão (Serra da Escama) – Óbidos-PA

Em julho chegam os estudantes e os exilados involuntários nascidos na cidade. Vêm devolver seus olhos à paisagem por gratidão, rever amigos e familiares e se envolver na festa da padroeira, em devoção constante. Somam-se a isso as manifestações culturais do período.

Apesar de haver completado nove anos de recusa voluntária a comer carne de caça, quelônios e afins, não resisti ao convite de provar, meio desconfiado, uma “mixira”, em plena Barraca da Santa. É uma espécie de conserva feita antigamente de carne de peixe-boi, com o próprio azeite do animal, mas hoje adaptada à carne de boi. Depois acabei comendo um “paxicá”, picadinho feito do fígado e carnes gordurosas do peito da tartaruga, preparados no casco do quelônio. Todos eles fazem parte da culinária milenar do indígena amazônico. Confesso que achei uma delícia.

Fernando Canto em frente ao Quartel Militar, onde hoje funciona a Secretaria Municipal de Cultura de Óbidos/PA.

Como visitante me senti feliz de poder ter observado as práticas culturais dessa gente tão hospitaleira e a beleza arquitetônica da cidade. Como obidense, que deixou sua terra natal aos sete anos de idade, me senti orgulhoso de poder compartilhar com meus parentes e novos amigos, toda a estrutura e a cultura do lugar. Despertei ainda mais para o compromisso e a responsabilidade de fazer parte deste mundo tão bonito, mas ainda cheio de coisas por fazer. Talvez por isso tenha experimentado uma mistura de sentimentos que me tornou mais humano e grato a todos que me permitiram essa aventura antropológica de volta às minhas origens.

*Publicado no jornal “A Gazeta” de domingo, 18/07/10.
**Fotos de Alacid Canto

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