Verdade seja dita – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sim, eu não sou o dono da verdade, pois a pessoa que me vendeu a verdade, em suaves prestações, mentiu pra mim. A verdade, na verdade, pertence a todo mundo que quiser ostentar o título de dono da verdade. A verdade tá pouco se lixando pra quem ainda a leva a sério, pra quem ainda dá importância a esse conceito volátil e volúvel.

No fim da negociação, antes que a pessoa que me vendeu a verdade partisse para suas férias num paraíso fiscal qualquer (deve ter vendido a mesma verdade pra muita gente e enriqueceu), compreendi que as prestações, que eu achava tão suaves, de suaves nada tinham. Eram massacrantes. Fui eu, euzinho, que fiquei inebriado pela ideia de ser o detentor da verdade, e agora tenho que pagar por isso infinitamente. Fui eu que me iludi achando o preço razoável. Eu me machuquei de verdade com aquela miragem que se dizia verdade. Depois, apareceu outro sujeito querendo me vender uma verdade de segunda mão, arranhada, meia-boca, mas ainda ostentando fumaças de grandeza, restos de um esplendor do fim do século XIX, quando ainda tinha algum valor no mercado, nem precisava de tantos documentos para que fosse comprovada. Aí eu disse não! Eu não precisava de ninguém para ter a verdade, eu mesmo invento a minha verdade, que, para existir, basta apenas que eu acredite.

O conceito atual da verdade foi caindo tanto que agora cada um tem a sua, é dono da sua verdade, como se fosse um pet, e dane-se se essa verdade tem a ver com qualquer resquício de coerência. Pode ser contrária a qualquer lógica, mas, se o sujeito quer acreditar mesmo, é capaz de criar todo um contexto em que sua verdade se encaixe e ganhe ares oficiais.

Outro dia vi um leilão online em que várias verdades estavam expostas. Nestes tempos em que a eleições se aproximam, como um círculo de tubarões cercando o náufrago à deriva no oceano, milhares de verdades estão à venda. Pode-se até alugar uma verdade pra usar em alguns momentos. Uma verdade – quase – absoluta é ótima para algumas situações.

Encontrei uma verdade perdida na rua e levei pra casa. Estou alimentando essa verdade com muitas mentiras e adestrando na base do ódio. Quando estiver bem grande e robusta, vou soltar a minha verdade em cima de qualquer um que venha com uma verdade que se pretenda mais verdadeira que a minha. Quando estiver cansado e insatisfeito, vou passar a verdade adiante ou sacrificá-la. Já estou de olho em outra verdade, uma bem tecnológica, o lançamento mais recente do mercado. Vou comprar pela internet direto da China. Os fabricantes me garantiram que nessa verdade eu posso acreditar, mas é bom ter um estoque de verdades de menor calibre para usar no dia a dia.

Vejo autoridades corruptas reivindicando sua verdade. Vejo pastores vendendo sua verdade. Vejo grupos armados defendendo sua verdade. Vejo marqueteiros maquiando sua verdade. Vejo candidatos espalhando sua verdade. Até sou capaz de ver a verdade, sim, a própria, a legítima, a única. Ela está deitada, dormindo tranquila, ao lado da minha cama.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *