VINGANÇA DE REI


Neymar não pode ser Pelé.

Pelé não morreu para reencarnar em outro.

É incrível raciocinar que Pelé é Pelé, o maior atleta da história, e ainda está vivo. Diferente de Garrincha, que faleceu em 1983, há trinta anos, e desfruta da unanimidade do túmulo.

A morte já reluziu o anjo de pernas tortas tudo o que podia, mas ainda não tocou no rei do futebol.

Pelé não morreu e parece completo, o Livro dos Recordes em pessoa. É eterno sem precisar da eternidade. Dispensa o fiador da cova, o bônus de Morfeu.

Quando falecer, é bem capaz de ser beatificado, virar santo, produzir curas em Três Corações.  

Não só porque marcou 1281 gols em 1363 partidas, não só porque ganhou três Copas do Mundo, parou uma Guerra na África, e todos os recordes que bateu como maior artilheiro do Santos e mais jovem jogador a encantar na Seleção Brasileira.

Pelé tinha uma monumental capacidade de se superar. Driblava, cabeceava, chutava, defendia com igual maestria. Um acrobata com a bola nos pés, um trapezista do impulso, um estrategista circense do time inteiro.

Há o costume de diminuir seus feitos comentando que as partidas eram mais fáceis no seu tempo, não havia tanto patrulhamento, disciplina e preparação física como hoje. Mentira. Pelé gostava de chamar a marcação para perto, não ter espaço e criar brechas imaginárias e impossíveis no campo. Um MacGyver das chuteiras. Podia-se amarrar Pelé na trave e ele arrumaria um jeito de converter a dificuldade em vantagem. 

Em confronto com Juventus, em 1959, deu quatro chapéus consecutivos nos defensores e goleiro, para concluir de cabeça, livre e sossegado. Em disputa com o Fluminense, em 1961, arrastou seis adversários com seus dribles e inventou o gol de placa. 

O espectador que contou com a sorte de assisti-lo tornou-se seu apóstolo. Pelé não jogou futebol, evangelizou o futebol.

Num clássico contra o Grêmio, nos anos 60, em Olímpico lotado, Pelé enfrentou o zagueiro Aírton Ferreira da Silva, conhecido como Pavilhão (seu passe valeu um Pavilhão de arquibancadas dado ao Força e Luz). Aquilo que poderia ser uma humilhação acabou em redenção desaforada.

Aírton se antecipou à corrida de Pelé e meteu um lençol no atacante santista, para vibração apoteótica da Geral. Quem estava no estádio diz que foi comemoração de título mais do que de gol. O primeiro lençol – e único – sofrido pelo mito acontecia naquela tarde ensolarada em Porto Alegre. Os torcedores gritavam e riam, escarneciam o cetro, a coroa e o trono.

No segundo tempo, Pelé se aproximou novamente de Aírton. Fingiu que recuava e desistia do ataque para girar com violência o corpo de volta.

Veio rilhando para cima de Aírton, que não imaginava o ataque surpresa. Airton teve o troco, chapelado de inopino. Só que o zagueiro tricolor tentou se recompor, diminuir o prejuízo com a testa, mas levou outro chapéu de Pelé. Tonto e desequilibrado, Aírton procurou segurar Pelé pela camisa e levou um terceiro e humilhante chapéu. Uma chapelaria havia sido aberta na Azenha.

Daí Pelé encarou a torcida e tocou a bola para lateral com indiferença. Dispensou o ataque de propósito. Por honra. Para provar que não se brinca com a realeza.

Ninguém pode ser mais Pelé. Nem o próprio Pelé. 

Fabrício Carpinejar

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