VIVIDA – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Parem de jogar coisas sobre meu túmulo. Parem, parem, parem. Parem de escrever palavras vãs em cima dessa pedra de mármore tão quente do sol do meio do mundo. Parem de chorar, parem de lamúrias sobre o túmulo deste ex-pobre sofredor, chorão até à alma: que chorou por mulheres, chorou por amor, chorou por seus amigos e por causas perdidas, chorou por falta de dinheiro, mas nunca chorou de fome porque não tinha fome ao ver criancinhas raquíticas passarem fome na periferia da cidade quando foi candidato a um cargo público. Só chorou por elas. Por Deus.

Parem. É uma ordem. Parem de chorar sobre meu túmulo porque nele só estará o lugar da alma presa e um velho corpo que se diluirá em gotas destinadas a um poço artesiano no Japão.

Ainda é tempo de parar. Morte, ó morte!

Não me irritem. Este corpo aqui embaixo foi feliz. Apesar de sua cara às vezes brava, às vezes rabugenta, cantou, tocou, gozou, ironizou e riu de ouvir e de contar piadas. Parem de falar em morte e tragam-me uma vitória do meu time no campeonato nacional, debaixo de um sol alegre de domingo e com o sabor de uma cerveja impecavelmente gelada.

*Do livro EquinoCIO – Textuário do meio do mundo, Paka-Tatu, Belém, 2004.

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