A HORA DA DANAÇÃO – Conto porreta de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Depois de vencer sete eleições consecutivas para deputado estadual, o escamoso líder do Partido da Estrela Negra, Maciel Fallabuonna enfim perdeu a disputa eleitoral naquele ano, possivelmente por causa dos inúmeros escândalos de corrupção envolvendo o seu nome.

Maciel tinha uma carreira impressionante pelo carisma que emanava até dos poros, desde que fora eleito como vereador pelo partido do governo nos tempos da ditadura militar. Seguia sempre os princípios de não ser nem oposição nem absolutamente situação, apesar de constantemente mudar de partido, de acordo com suas conveniências e as oportunidades históricas que se avistavam. Exerceu cargos mandantes na mesa diretora, sem se envolver diretamente com as decisões da presidência. Sempre tinha poder. Seus assessores chagavam a quase duzentas pessoas, porque sabia dividir a verba parlamentar de modo que todos ficavam satisfeitos. Somados os cargos de apadrinhados e familiares nos governos o número disparava e o colocava em vantagemimages (2) contra seus pares. Vencia sempre. Assim podia indicar quem quisesse nos governos que se aliava, principalmente na época das eleições ou depois que as águas da política baixavam, quando o poder executivo precisava do seu apoio, por meio de alianças venais veladas, dessas que a imprensa democrática jamais teria condições de descobrir. Sua assessoria era tão eficiente que até o presidente da Assembleia tentou comprar o passe do jornalista responsável pela divulgação das atividades de Maciel. Só tentou, porque Maciel segurou o seu passe com vantagens que só eles sabiam.

Maciel, contudo, tinha uma frustração. Nunca pôde ter filhos. Por ser muito ocupado também não se preocupara em adotar algucpi-pelicanoém ou mesmo pular o muro atrás de mulheres fáceis, que cercavam os poderosos e que notadamente usavam de truques sujos para engravidar de incautos e com isso garantir pensão em troca de silêncio. Nunca, porém Maciel se envolveu em orgias e escândalos sexuais. Mexeu com o jogo do bicho e outras contravenções penais; com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, mas com mulheres, jamais. Era até respeitado no high society por causa disso. E sua mulher achava o máximo. Mal sabiam as pessoas que fora do Estado ele se metia com travestis em uma época que nem se falava em GLBT e políticas de diversidade de gêneros.

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Foi aí que começou a derrocada do deputado. Boatos começaram a circular e especuladores oposicionistas deflagraram um processo de degradação moral do deputado. Tudo começou mesmo quando um travesti do estado vizinho que migrara para Macapá o reconheceu no noticiário de TV. Foi só um pulo para a boataria deslanchar. Entretanto, a assessoria do deputado conseguiu desmentir tudo e levá-lo novamente à vitória para exercer seu sétimo mandato.

Embora tivesse vencido essa eleição, seria a última que ganharia, pois a dúvida, o preconceito e o machismo da população permaneceriam por mais quatro anos lhe espezinhando a moela, falando sobre seu gosto por homens ”montados” de mulheres. E uma vronaldo_com_travestiez no chão, diziam, o caldo não se junta nem com língua de cão sarnento lambendo e fuçando. Apelidos, ditados populares jocosos e discursos insinuadores fizeram o inferno do legislador, que mesmo ganhando muito dinheiro nos inúmeros processos por calúnia e difamação, não conseguia se desvencilhar das especulações. Ele sofria uma campanha pesada. Um vídeo em que supostamente ele aparecia em ato sexual com um travesti louríssimo foi disseminado na internet e isso concorreu bastante para que perdesse a eleição pela primeira vez, após quase trinta anos de atividade política.

Mágoas deslizaram ao largo de sua boa vontade de sempre fazer projetos de impacto para a melhimages (3)oria do povo do estado que ele tanto amava. ”Um baque no coração”. “Porrada seca”, dizia. E andava triste, consolado apenas pela compreensiva esposa estéril. Chorava também por não ter filhos para continuar sua descendência política, sua “dinastia”, falava. Se a sorte lhe negara isso, a mente invejava seus pares e adversários que já haviam colocado os filhos nas trilhas aparentemente fáceis da política. Todos eram assim: contra o nepotismo, a corrupção e as injustiças sociais, irreverentes, lutadores e ideólogos. Depois se eximiam dos propósitos iniciais, sucumbiam ao dinheiro e se lançavam aos cães do mando dos mais poderosos.

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Aos ccanstock25890860inquenta e três anos, abatido pelos escândalos de corrupção e envolvimento em outras práticas criminosas, Maciel prostrou-se em uma depressão inédita em sua vida ainda jovem e saudável – produto da prática da musculação diária na academia instalada em sua mansão. Rico, mas sem o poder que lhe acompanhara a vida toda, gastou uma chuva de dinheiro para a cura dessa doença contemporânea.

Conseguiu se sair dela depois de longo tratamento e algumas perspectivas de voltar à política, dado o rol de informes que poucos ex-colaboradores lhe passavam pessoalmente, pois detestava ler jornais: uma fobia adquirida no poder quando sua assessoria só lhe passava clipes diários.

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Com o tempo voltou a ler tudo o que via pela frente, até que um dia viu uma notícia diferente: um concurso de melhor velório, em uma grande capital, promovido por uma revista de circulação nacional. Achou estranho, porque nem sabia que era comum postarem fotos de enterro de famosos na internet, de velórios glamorosos de famílias ricas e de personalidades do mundo da política. Era o culto à morte dos não-heróis. O capitalismo achou um outro nicho para driblar a crise e armazenar chuvas de dinheiro. Virou moda. A indústria de maquiagem para cadáveres se desenvolveu rápida e oportuna, assim como os serviços de decoração, floricultura, buffet e arquitetura moderna para túmulos e santuários, que também chegaram download (5)rápidos em sua cidade. A especulação tomou conta dos cemitérios e os ricos chegavam a comprar os pequenos lotes ao redor dos seus para erguerem capelas, templos e campanários climatizados, que chamavam a atenção e faziam a alegria dos frequentadores mórbidos e da rapaziada gótica. A Prefeitura urbanizou os campos santos, contemplando-os com linhas de micro-ônibus e praças de alimentação. Certos lugares tinham a concessão de cobrar ingressos para visitação, tanto era a sofisticação e a diversidade de atrações desse mercado.

download (6)Visitantes andavam de elevadores pelos subsolos onde jaziam os sarcófagos construídos ao estilo faraônico. Viam-se os corpos intatos das personalidades famosas, muitas das quais haviam sido enterradas em rituais patrióticos. Havia túmulos de diversos estilos. Alguns corpos ficavam em esquifes nos patamares um pouco abaixo do obelisco municipal que tinha em todos os cemitérios públicos, monumento obrigatório por Lei. O público era transportado por elevadores panorâmicos, por isso tinham o ingresso mais caro. Também havia a seção museológica dos mortos em acidentes trágicos que recebia vista de milhares de romeiros de todo o Estado. Eles digitavam em tablets ali mesmo vendidos, os agradecimentos pelas graças alcançadas pelas curas de suas doenças, ao mesmo tempo em que desejavam estar expostos juntos a seus santos.

De acordo com as suas religiões as pessoas também pagavam com peças de ouro um minuto de aconchego com as asas eletrônicas e confortáveis de anjos, querubins, serafins, potestades…. Cada categoria tinha um preço.

A noite era o período de maior visitação. Antigos darks e grupos de heavy metal faziam aARGENTINA-CERATI-DEATH-FUNERAL-GPN1RDJPR.1presentações no anfiteatro cantando uma mistura de gospel e protesto contra a vida. As encenações punham a morte de um longo vestido vermelho brilhante descendo ao palco com uma enorme foice de luz. A figura jogava de repente a foice e emergia no meio do público alucinado disparando um fuzil russo automático. Ninguém se amedrontava, pois se sabia que era a hora da morte, a hora da danação.

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Com o barulho do disparo na mente, Maciel saiu do transe, da concentração, meio tonto ainda. Pediu a um colaborador os detalhes do concurso de túmulos. Nada mais lhe restava, senão a morte e um enterro digno de um ex-parlamentar atuante.images (6)

Como o respeito pelos mortos mudava de configuração nestes tempos, ele apostou consigo mesmo que ganharia o concurso, mesmo que para isso tivesse que morrer. Começou a planejar suas exéquias contratando um arquiteto italiano especialista em cemitérios. Sua fortuna acumulada lhe permitia sonhar com o primeiro lugar em todo o Brasil. Bastava-lhe morrer. Antes, porém, escreveria sua biografia, onde a defesa das coisas a ele imputadas seria o foco principal. Morreria, ora se morreria. A vida não lhe interessava mais. Logo ele que nunca tivera tempo de se converter em uma religião porque fora de todas nas suas conveniências políticas em busca de votos. Por isso sabia os rituais.as_mulheres_choradeiras-E

Ao se preparar para a glória definitiva Maciel inventou uma liturgia que era a mistura de vários ritos de encomendação das almas de religiões diferentes. Mandou imprimi-la para que os presentes recitassem desde a transladação do corpo no carro de bombeiros da Assembleia Legislativa ao cemitério, quando os discursos e a pomposidade explodiriam sobre as suas antigas eleitoras previamente bem trajadas com as cores do seu último partido político, e bem pagas para serem carpideiras e mistificadoras da sua obra.Quando-eu-morrer-por-Sponholz1

O ex-deputado escolheu um modelo de se matar que não viesse a agredir ou mutilar seu rosto e estaria barbeado e maquiado conforme suas instruções. No dia marcado e tudo em segredo, sua mulher estranhou um certo entusiasmo, depois da depressão que o atormentava. Terminou descobrindo o plano mórbido. E ameaçou contar tudo à imprensa. Maciel, no entanto, estava irredutível e decidiu morrer de qualquer maneira. Dominou a frágil esposa e a prendeu num quarto.

Seu plano seguia de acordo como que previra, inclusive com a inscrição do seu túmulo no concurso da revista. Partiu para o ato final. Na sua hora da danação os olhos esbugalhados de um doente depressivo, injetados de problemas e de remédios “tarjas pretas”. Estava o deputado mortinho, obstinado no seu desejo de imortalidade em forma de monumento. Feneceria, cleao-cachorro-tumulo-rio-550_thumbonforme imaginou, congelado dentro de um freezer após se dopar com uma overdose de valium.

Seguiram as instruções deixadas, mas o deputado não ganhou sua última eleição.

Mercedes, encontrada e liberta, achou que seria um gesto desnecessário tanta pomposidade para o morto e resolveu economizar aqui na terra, preferindo um túmulo mais barato para garantir o seu futuro, já que a justiça iniciara o resgate dos bens acumulados do marido em seus últimos mandatos.

  • Muito bom…de forma humorística…o político…que representa o que temos de atualíssimo…
    Controi um império, e se vê no final de volta…a terra sem ouro, nem prata.
    Muito parecido…com hoje… É mentira ?- Terta.

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