Cemitério dos elefantes – Crônica muito porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sempre curti cemitérios. Gosto de passear pelos corredores, admirar a arquitetura de alguns túmulos, observar as datas de nascimento/falecimento. Quanto mais antigas as datas, tanto melhor.

Em Curuçá/PA, a casa da minha família era bem próxima ao cemitério. Eu tinha uns quatro anos e ia muito lá. Deve ter vindo daí minha predileção por cemitérios e um senso de humor que, vez por outra, tem muito de mórbido. Depois, na adolescência, já morando em Belém, sempre que passava férias em Curuçá, o cemitério era um de meus locais preferidos de passeio.

Em Belém, frequentava o cemitério da Soledade, que tinha/tem um ar de abandono, cenário para filmes góticos, e o de Santa Isabel, o último lar de figuras como Eneida de Moraes, escritora e militante política. Sempre à frente de seu tempo, Eneida desafiou os padrões de sua época, liderando greves e atuando no jornalismo das décadas de 1920/30, quando esta atividade era considerada exclusivamente masculina.

No cemitério de Santa Isabel, encontramos também túmulos que são recordistas de visitação em dias como os de hoje, 2 de novembro. Alguns mortos dali são considerados santos pela tradição popular, como o cirurgião Camilo Salgado, que fez muita filantropia em vida; Severa Romana, uma moça de 19 anos assassinada grávida, em 1900, a quem muitos atribuem milagres; e Josephina Conte, morta em 1931, que se transformou numa lenda urbana da cidade das mangueiras: a Moça do Táxi.

Se e quando for a Paris, minha primeira visita não será à Torre Eiffel nem ao Arco do Triunfo. Será ao cemitério do Père Lachaise, o mais famoso do mundo, pela sua beleza arquitetônica e pela lista de hóspedes. Veja apenas alguns: Delacroix, Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust, La Fontaine, Allan Kardec, Modigliani, Isadora Duncan, Albert Camus, Molière, Chopin, Maria Callas, Edith Piaf e Jim Morrison.

Aqui em Macapá, minhas visitas aos cemitérios se fizeram mais raras, mas ainda dou minhas voltas pelo cemitério de Nossa Senhora da Conceição, o mais antigo da cidade.

Enquanto não me transformo em morador de um lugar desses, vou curtindo sua tranquilidade e suas histórias, sempre com muito respeito pelos que ali estão. Até que eu morra e vá descobrir, finalmente, onde fica o tal cemitério dos elefantes.

Não joga pedra na Geni – Conto de Ronaldo Rodrigues

 


“De tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto / ela já foi namorada”. Eu era um perdido no caos do porto da vida e ela me amava assim mesmo. Desconsiderava minhas feridas e lambia meu corpo inteiro. Me colocava pra dormir em sua cama de papelão, sob a marquise de alguma loja. Ou no chão de um banheiro imundo. Ela acolhia a todos os famintos e dava de comer. Os que tinham frio, ela aquecia entre seus seios. Eu era mais um em sua teia, mas cada um sabia que era único.

Ela nos fazia amados e preparados pra amar. Nos fazia crer que era possível continuar a sugar da vida tudo o que ela trazia de bom. O que era ruim já se conhecia tanto. Não devíamos desperdiçar energia em ofícios vãos, preocupações metafísicas, o segredo dos astros, a fofoca da esquina. Que vivêssemos! Vivêssemos! Vivêssemos! Só isso!

Ela não fraquejou nem quando a carruagem parou na entrada do beco. O Dono do Mundo desceu reclamando suas carícias. Ele desejava ter aquela mulher que tantos tinham. Ele começou oferecendo dinheiro, joias, roupas, viagens ao exterior. Ela disse não a um homem que não estava acostumado a ouvir essa palavra tão pequena na forma e tão grande em sua significação. Ele ofereceu toda a sua fortuna e ouviu outro não.

Por fim, ofereceu apenas o seu amor. Quando ela duvidou disso, ele passou à chantagem. Colocou todos nós, os mendigos, como reféns. Ele só queria uma noite de amor, senão mandaria nos matar. Ela olhou o Dono do Mundo por longo tempo. A limpeza de suas ricas roupas a enojava. Seu perfume caro causava náuseas. Seu sorriso com todos os dentes lhe dava repugnância. Ela nos olhou e sorriu. Aceitaria aquela tortura por nós. E nós, covardes, não fizemos um gesto de impedimento. Também podíamos tão pouco. Ele apenas anteciparia a matança.

“Ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira” e foi embora, nos deixando vivos. Ela nos abraçou e abençoou nosso cheiro azedo, nosso hálito de cachaça, tabaco e fome. Aquele homem que era dono de tudo não era nada perto de nós. E se a cidade toda quiser, um dia, apedrejá-la vai encontrá-la subindo aos seus céus, como uma santa, levando pelas mãos todos os perdidos.

Ronaldo Rodrigues

*Geni e o Zepelim – Letícia Sabatella (Chico Buarque):

As que se chamam Flávia… – Conto muito porreta de Ronaldo Rodrigues sobre a chegada de outubro (republicada todo outubro)

Conto de Ronaldo Rodrigues

– Outubro é muito perigoso!

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

É preciso segui-la. Sinto isso logo que a vejo na livraria. Está folheando uma revista, sem muita atenção, fixando-se apenas nas fotografias. Parece estar ali com o mesmo propósito que eu, matando o tempo até voltar ao trabalho.

*** *** *** *** *** *** *** *** ***
– Outubro é muito, muito perigoso!

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Ficamos lado a lado, embora a mulher permaneça como se só ela existisse. Tenho a visão no livro que folheio sem qualquer interesse e a atenção totalmente voltada para a mulher. Ela fecha a revista decididamente, olha para o relógio e o percebe parado:

– Sabe as horas, moço? – Pergunta, altivamente.

– Nã… Não! Não… sei… – Gaguejo, respondendo.

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Quem sempre me dizia isso era o Capitão Nemo:

– Tenha muito cuidado, menino! Outubro é muito perigoso!

 

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Ela deixa a revista na estante e dirige-se à portaria. Confere a hora e acerta o relógio. Sai da livraria e eu continuo olhando aquela mulher, agora através do vidro da vitrine. Ou será que não existe vidro algum? Meu olhar é que fez a parede tornar-se transparente?

Pergunto o motivo do perigo de outubro e ele responde, depois de longo silêncio, os olhos em transe, na direção do mar:

– É em outubro que começamos a enlouquecer! É em outubro que costumam surgir as sereias!

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Ela atravessa a rua. Saio da livraria, disposto a segui-la, e paro na esquina. Contemplo, então, o espetáculo da rua silenciar-se para a passagem daquela mulher. A paisagem urbana torna-se repentinamente quieta, mas com uma acelerada pulsação interior que começa no asfalto e termina/continua no meu peito.

Ela entra num edifício e eu continuo seguindo seus passos. Ainda não me percebeu e acho que isso não acontecerá nunca. Ela aguarda a chegada do elevador junto a mais três pessoas. Incorporo-me ao grupo e passo a esperar também.

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Todos dizem que não devo dar atenção às palavras do Capitão Nemo. Dizem ser louco tanto o Capitão Nemo quanto quem o escuta. Mas eu digo que não. É preciso buscar o sentido das palavras, principalmente das que nos parecem mais delirantes.

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

O elevador chega, nos recolhe e inicia sua lenta subida. As pessoas vão ficando em seus respectivos andares até restar apenas eu e a mulher. Como música de fundo, meus batimentos cardíacos ecoam nas paredes do elevador confundindo-se com a palavra outubro.

*** *** *** *** *** *** *** *** ***

Outubro. Agora compreendo claramente seu perigo. O Capitão Nemo ficou aprisionado em sua louca lucidez, nos destroços do seu navio, enfeitiçado por uma sereia. Eu estou preso neste elevador atraído por uma sereia. Aqui ficarei para sempre, aguardando todos os dias aquela mulher maravilhosamente perturbadora cujo nome conheço apenas a letra inicial (F), que vi uma vez em que ela abriu rapidamente a agenda.

Todos os dias, quando ela sai do elevador, ainda sem notar minha presença, recordo as palavras do Capitão Nemo, que todos acreditavam serem palavras de um louco:

– É preciso ter muito cuidado com as sereias de outubro. Elas são cruéis e nos enfeitiçam com desejos intocáveis. Principalmente, meu filho, as que se chamam Flávia…

* Este conto foi publicado em 1995, na coletânea Novos Contistas da Amazônia, em Belém, resultado de um concurso promovido pela Universidade Federal do Pará. Tempos depois, o conto inspirou a HQ Outubro, do cartunista Paulo Emmanuel, premiada em dois salões de humor. Isso mostra o quanto este conto é quente.

Macapá já se anunciava para mim, pois o livro trazia contistas que só fui descobrir aqui, como Archibaldo Antunes e Ray Cunha, e apresentação do grande Fernando Canto.

Gosto muito deste texto, creio que seja um ponto alto da minha carreira de contista, que ofereço agora como homenagem, digamos assim, ao mês de outubro.

 

Criança diz cada uma…- Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

“Criança diz cada uma” era uma seção da revista Pais & Filhos que eu gostava de ler, no começo dos anos 1980. A página, assinada por Pedro Bloch, jornalista e médico foniatra, pioneiro na área de fonoaudiologia, era um painel humorístico que explorava muito bem a lógica que só criança tem. Ele anotava tudo o que as crianças consultadas por ele diziam/faziam. Eu também tinha essa mania, anotar coisas que meus sobrinhos diziam/faziam, e sabia que um dia iria publicar. Acrescentando tiradas dos meus filhos, filhos e sobrinhos de amigos, apresento aqui e agora esses flagrantes de inteligência infantil.
——————————————————————————
Meu sobrinho Rodrigo, após longa reflexão:
– Tio! Dinheiro custa caro, né?
——————————————————————————
Meu filho Pedro: Pai, droga não é proibida?
Eu: Sim, filho. É proibida.
Pedro: E por que tem tanta drogaria na cidade?
——————————————————————————
De novo o Pedro. Era período de horário eleitoral gratuito na televisão, o Pedro trocando de canal e vendo sempre a mesma programação: o candidato falando das suas propostas. Aí, vendo que só tinha aquilo em todos os canais, me saiu com esta:
– Pai, estamos cercados!
——————————————————————————
Meu filho Artur, naquela fase de imitação de bichos.
– Como é que o cachorro faz, Artur?
– Au! Au!
– E o gato?
– Miaaau!
– E a vaquinha?
– Muuuuuuu!
– E o pintinho?
– Tá ati! Falou o Artur, apontando para o próprio.
——————————————————————————
Esta foi com o Lucas, sobrinho do Manoel. Cheguei à casa dos dois quando o Manoel tinha saído pra tirar cópia da chave:
– E aí, Lucas? Cadê teu tio?
– Foi tirar xerox da chave!
——————————————————————————
O Arthur, filho da Telmah, vendo os garis recolhendo o lixo:
– Mãe! Tão roubando todo o nosso lixo!
——————————————————————————
Diálogos entre a mãe Karen e a filha Clarice.
Clarice: Voxê vai tabalhar de novo?
Karen: Vou sim!
Clarice: Eu quero tabalhar também… como pinxesa!

Karen: Clarice, você tá com sono?
Clarice: Não! Tô feliz!

Karen: Clarice, que música é essa que estás cantando?
Clarice: A música da tua vida!
——————————————————————————
Gabriel, filho da Tânia e do Marcelo.
Gabriel chegou da escola descabelado, com a roupa suja e amassada.
Tânia: Gabriel, eu vou à tua escola ver como andas.
Gabriel: Precisa ir à escola pra ver como eu ando? Eu ando assim, mãe, ó…
Deu uns quatro passos e disse:
– Mãe, a senhora fala cada besteira…

Tânia estava dirigindo e ouvindo Legião Urbana. No carro, estavam a mãe e a tia da Tânia, duas senhoras muito recatadas, e o Gabriel. Eis que entra a parte em que o Renato Russo diz “Se não for masturbação, use camisinha”. Gabriel virou para a avó:
– Vó, o que é masturbação? A senhora pode me ensinar com detalhes?

Tânia e Gabriel entram num ônibus lotado e uma senhora, muito solícita, se oferece para que Gabriel prossiga a viagem sentado em seu colo. A senhora puxa conversa com Gabriel:
– E você gosta de fazer o quê?
– Gosto de ouvir música.
– Que bom! Eu também adoro música! Gosto do Calipso, gosto do Luan Santana, gosto da…
Gabriel, com a franqueza brutal das crianças, interveio:
– Poxa! A senhora só gosta de música ruim!
E a cara da Tânia ficou onde?
——————————————————————————
Vem história da Espanha, onde vivem a mãe Ana Cláudia e a filha Ana Belén.
Ana Belén estava com um pouco de tosse e ouviu Ana Cláudia dizer que, dependendo de como passasse aquela noite, iria ou não pro colégio no dia seguinte. Quando amanheceu, ela começou a tossir (forçando a tosse) e a mãe Ana reclamou:
– Ana Belén, você não tossiu a noite toda! Como começou a tossir só agora, justo na hora de ir pro colégio?
– Claro, mamãe! Eu estava dormindo, como ia tossir?
——————————————————————————
Andréa falando sobre o sobrinho Leonardo.
Eu estava vestida com uma daquelas roupas velhinhas e confortáveis que gostamos de vestir em casa. Ele me olhou seriamente e disse:
– Coitadinha da titia, tão pobrezinha! Usando um vestido toooodo furado!

Uma criança reconhece a inocência de um animal. A Amanda, enquanto brincava com o Aslam:
– Tia Andréa, às vezes eu esqueço que o Aslam é um cachorro. Ele parece uma gente criança.
——————————————————————————
Cleia contando histórias da Laura.
Laura havia se afastado da gente na praia e ficamos 20 minutos procurando por ela. A encontramos brincando com areia debaixo de uma mesa, distante de nós.
Depois de termos falado sobre isso por uma semana, voltamos à praia e, num momento em que Laura estava novamente brincando na areia, alguém vai até ela e pergunta:
– Está bem, Laura?
Ela olha pro alto e, com toda a inocência, pergunta:
– Tô perdida?

Outra da Laura.
Mãe e filha passeando pela cidade.
– Mãe, bora comprar sorvete?
– Não temos dinheiro!
– Então, bora comprar dinheiro?

Cleia e o sobrinho Herbert.
Em visita ao filho da Cleia, que tinha acabado de nascer, Herbert olha o bebê no berço e logo pergunta:
– Quanto custou?
——————————————————————————
Quem vai querer refrigerante? E a Luana responde:
– Eu quero uma Santa Uva!
——————————————————————————
O Enzo, após dar um arroto daqueles:
– Ops! Amarrotei!
——————————————————————————
– Mãe, me dá um irmãozinho?
– Mas como vou te dar um irmãozinho?
– A gente compra! Passa no cartão e depois a gente recebe na portaria!
——————————————————————————
E os dialetos que as crianças inventam? O Rauan quando queria tomar água:
– Gapiaga!
E quando queria jogar videogame:
– Gapiogôgo!
Bom, a família tinha que se esforçar um pouco, mas acabava entendendo.
——————————————————————————
Mateus falando para o pai Marcelo:
– Pai, tô com uma África na boca!
Era afta, mas ele não deixa de ter razão. A África está mesmo por toda parte de nós.
——————————————————————————
Meu grande amigo e agora vovô, Euclides foi interpelado pela Maria Eduarda, de 4 anos:
– Vô, por que você não arruma sua mesa de trabalho como pede pra eu fazer com as minhas coisas?
Euclides se recolheu a um silêncio envergonhado, mas sorridente, e tratou de arrumar a mesa.
——————————————————————————
– Tio, o senhor vai brincar comigo ou ficar bêbido com o meu pai?
Perguntou a Maitê, sobrinha do Elton. O meu amigo, claro, preferiu brincar com a menina. Sábia escolha.
——————————————————————————
Nesta história, personagens reais, nomes fictícios. Vai que a criança, hoje adulta, fique constrangida.
José Nilson levou seu filho Eduardo para o trabalho. Ficaram os dois na sala, José Nilson trabalhando e o filho lendo uns gibis. O menino ficou tão distraído que não notou a moça da limpeza entrar. De repente, ele fala para o José Nilson:
– Pai, eu quero pei…
Antes de terminar a frase, ele nota a presença da moça, fica envergonhado e sai correndo da sala. Até hoje permanece esse mistério: o que será que ele queria fazer?
——————————————————————————
É isto. Vou recolher mais histórias e, quem sabe, não sai uma continuação desta crônica? Mandem aí.

Um mergulho nesse rio de gente – Crônica de Ronaldo Rodrigues e ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues e ilustração de Ronaldo Rony

Há algum tempo, deixei de ver o Círio passar e passei a mergulhar nesse rio de gente. Creio que há uns cinco anos, no segundo domingo de outubro, quando saio de casa para ir ao encontro dessa multidão, vou também ao encontro da memória da minha mãe, da lembrança de Belém, do cheiro do tucupi.

Também vou ao encontro de mim mesmo e, se você acha que estou usando demais a palavra ‘encontro’, saiba que é proposital. Encontro é o que o Círio, não só a procissão, mas tudo o que envolve esta época do ano, representa para mim. Penso nas pessoas que moram fora, em outras cidades, outros estados e mesmo em outros países, que viajam a Belém para se encontrar com a família, rever os amigos, respirar a cidade.

Mas nem sempre foi assim. No meu ateísmo juvenil, cheguei a renegar o Círio e tudo o que fosse ligado à religião. Com isso, feri muitas pessoas, inclusive minha mãe. Achava o máximo provocar, chocar, marcar minha rebeldia, desfiar minhas opiniões contra Deus, Jesus, Igreja, santos, cristãos, papa etc.

Ainda bem que o tempo vai nos ensinando e eu, tentando aprender com ele, sei que exagerei na dose, provoquei mágoas e, como advogado de minha própria causa, invoco a meu favor, como atenuante, os arroubos da juventude. Hoje penso com mais leveza sobre o conceito de Deus, mantenho minhas críticas ao que afronta o que entendo como religiosidade, mas o Círio está acima disso tudo, porque compreendi a tempo, minha mãe (saiba disso onde estiver), que Nossa Senhora de Nazaré é a síntese do amor de todas as mães, que o Círio inspira, irmana, reúne e congrega os mais diversos pensamentos e sentimentos referentes à força que desafia a lógica. Essa força é a fé.

Domingo estarei novamente entre os caminhantes nas ruas de Macapá, estarei com minha mãe e minha família, amigos daqui e de Belém, presencialmente ou na lembrança, na vontade de bem-querer. Nestes dias de extremos, radicalismos e intolerância, vou me juntar às orações por um Brasil e um mundo justos, fraternos e que façam valer a nossa vocação para a felicidade.

Feliz Círio de Nazaré!

*Crônica de 2018, republicada.

No Círio da Naza com o Anjo Galahell – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Foto: Márcia do Carmo

Crônica de Ronaldo Rodrigues

“Quando eu for morrer / Vou pedir pra ser outubro / No meio daqueles anjos / Do Círio de Nazaré” (Edyr Proença / Emanuel Mattos)

Pois bem. Belém caminhou pelas ruas de Macapá de mãos dadas comigo e com o domingo. Era o Círio de Nazaré, santa protetora dos paraenses, macapaenses, marambaienses, laguinenses, gregos, troianos, baianos e tupis. Todos os peregrinos agarrados à tradição/contradição, desgarrados pelo mundo em cotidiana diáspora.

Foto: Márcia do Carmo

Belém estava tão aqui em Macapá que até choveu. Um pouquinho só, mas que choveu, choveu! E foi na companhia do Anjo Galahell que Maria de Nazaré me abrigou em sua linda berlinda.

Depois da procissão propriamente dita/bendita, uma outra procissão se fez, em busca do pato que (paciência. Alguém tem que ser sacrificado…) deveria estar boiando num oceano de tucupi, exalando aquele cheiro que… Bem. Quem sabe, sabe…

Foto: belem1000.blogspot.com

E quantas surpresas nos fizeram presas do imponderável, do milagre, da graça da Naza. O pato no tucupi não foi encontrado, estava enfeitando outras mesas. Mas ele não fez falta, já que em seu lugar (milagre da Naza) apareceu uma galinha caipira servida pelas mãos generosas da Zozó, tia do Galahell (sim! Anjos também têm família!) e agora para sempre já incorporada à minha árvore genealógica, é lógico! A galinha de quintal matou nossa fome de justiça e a sabedoria do coração da Zozó é o que a própria Naza teria me ensinado.

Belém, de hoje e de outrora, Belém da minha infância aportou definitivamente quando eu e o pastor alemão do rock caminhávamos pelas ruas de Macapá em busca novamente de comida, bebida (caramba! Será que a gente nunca se farta?) e, se não fosse pedir demais, atenção e carinho. Pois foi o que conseguimos, na figura de um astro do passado, o ex-jogador de futebol Mareco, que reconheceu Galahell, elogiou sua verve jornalística e montou a banca para que eu e o anjo nos servíssemos de geladíssima cerveja, o café da manhã dos campeões.

Fiquei emocionado ao conhecer pessoalmente Mareco, depois de tanto tempo, depois de tê-lo visto em Belém, no final da década de 1970 e começo da década de 1980, nos gramados futebolísticos, eu como espectador, ele como integrante de uma geração que fez a Cidade das Mangueiras ouvir maravilhada o rugido do glorioso Leão Azul, o Clube do Remo.

Uma geração brilhante de jogadores azulinos, como Dico, Edson Cimento, Marinho, Dutra, Darinta, Cuca, Aderson e seu irmão Mêgo (autor dos dois gols inaugurais do Mangueirão), Elias, Mesquita, Bira, Júlio César, o gigante Alcino… E por aí vai. E para ninguém dizer que estou puxando a brasa só pra minha sardinha, já que eu torcia pelo Remo, relembro alguns nomes da galeria de grandes craques que o rival Paysandu também ostentou naquela época: Aldo (irmão do Bira, ambos macapaenses), Patrulheiro, Lupercínio, Heider, Paulo Robson, Careca, Wilfredo, Evandro, Roberto Bacuri, Nilson Diabo, Tuíca, Edésio, Leônidas, Chico Spina e até o Dario – Dadá Maravilha…

Foto: Márcia do Carmo

Égua! Belém da minha infância entrou em campo de novo e o mais legal disso foi constatar que Mareco não tem nem sombra da arrogância que se vê hoje em alguns jogadores. O cara veste a camisa da humildade, o verdadeiro manto dos vencedores.

E para encerrar esta crônica ciriana nazarena, o fim da tarde e o começo da noite foram embalados pelo ritmo irmão do marabaixo, o carimbó. Pinduca, Verequete e outros mestres baixaram no terreiro e deram show, me transportando novamente para Belém e Curuçá, banhando minha alma de açaí.

Então diga aí: Belém estava ou não presente no domingo do Círio da Naza, aqui em Macapá? Milagres da Naza e do Anjo Galahell!

Naza / Nazarézinha / Nazaré Rainha / Nazaré Mãe da terra / Mãezinha / Me ajuda a cuidar” (Almirzinho Gabriel).

*Contribuição de 2013, republicada.

Curiosidades de primeiro de setembro – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Primeiro de setembro. Andei reparando que esta data tem muito a ver com a minha trajetória. Olha só:

• Primeiro de setembro de mil novecentos e noventa e sete: cheguei a Macapá do Meio do Mundo, vindo de Santa Maria das Mangueiras de Belém, mais precisamente da República Livre da Marambaia. Uma tempestade havia se abatido sobre a minha pobre figura, mas deixa isso pra lá. Macapá apareceu como se fosse o sol raiando o dia. Há vinte e seis anos me tornei um amaparaense.

• Primeiro de setembro de mil novecentos e noventa e três: tive registrada na carteira de trabalho, pela primeira vez, a função de redator publicitário, profissão que exerço até hoje. Creio que seja a única coisa que sei fazer na vida (também sou o cartunista Ronaldo Rony, mas esse é outro papo). Caramba! São trinta anos já nessa labuta. Ou eu entendo mesmo disso que faço ou estou enganando bem. Deixa quieto.

• Primeiro de setembro de dois mil e dezessete: por falar em carreira profissional, hoje também é dia de contar seis anos na agência em que trabalho atualmente. Quando achei que as tecnológicas portas da publicidade já estavam fechadas para este ser analógico que sou, eis que a Nagib Comunicação chega e me diz que ainda tem prorrogação no meu jogo da vida.

Ainda vou fazer muitas coisas antes da aposentadoria, mas a coluna cervical já está sucumbindo ao peso de três décadas de jobs, demandas, pedidos, mudanças, ajustes, alterações e muitos perrengues, com alguns momentos de glória. O jeito é dar um tempo pra cabeça voltar pro lugar e sair pela noite à procura de uma festa (ou três) que celebre esta data. Que venham muitos primeiros de setembro pra gente comemorar!

O poder do palavrão – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Quem já deu uma topada daquelas, de arrancar a cabeça do dedão do pé, sabe do que vou falar. Se você não soltar um palavrão, também daqueles bem cabeludos (pra usar uma expressão do milênio passado), duvido que a dor passe logo. O palavrão tem esse poder curativo. Como num passe de mágica, você solta um CARAAAAAAAAAAALHO! e a dor não desaparece imediatamente, claro, mas vai dando um torpor, um anestesiamento e – abracadabra! – a dor sumiu, como diz o slogan de um certo remédio.

O que acho mais estranho nesse negócio de palavrão é denominarem de palavrão uma palavra com uma sílaba e duas letras: cu. Mesmo com muita gente devassando o cu com o acento agudo (o que deixa o pobre do cu assim: cú) a palavra não cresce um milímetro sequer, o que não justifica ser chamada de palavrão.

Com o advento do politicamente correto, que vai deixando tudo sem graça, fico a imaginar o banimento do palavrão, para salvar a honra das digníssimas famílias da nossa sociedade. Quando o seu dedão do pé encontrar uma pedra no caminho e a necessidade de um palavrão se fizer, o cidadão vai respirar fundo e deixar de gritar: PUTA QUE PARIU, CARALHOOOOOOO!, substituindo por um outro palavrão que, nesse caso, será apenas uma palavra grande, mais afeita aos novos tempos. Algo como: PINDAMONHANGAAAAABA! Ou AERODINÂMICA! Ou ainda: DESMAFAGAFIZADOR! Se a dor for algo insuportável, o único remédio será falar a maior palavra da Língua Portuguesa, um verdadeiro palavrão: INCONSTITUCIONALISSIMAMENTE!

Hoje se tem muito cuidado para não se falar palavrão na frente das crianças. Se bem que aqui em Macapá fala-se FODA-SE! em qualquer faixa etária. No meu tempo de criança, meu pai não poupava ninguém. Quem não quisesse ouvir que saísse de perto. E meu pai era um emérito falador de palavrão. Em cada frase, eram dois CARAAAAAALHO! a cada três POOOOOOORRA!

Já li em alguma postagem no Facebook que quem fala palavrão é mais feliz. Se assim for, já renovei o meu estoque de palavrão para sair por aí esbanjando felicidade. E para fechar esta crônica, que eu queria que fosse FODA!, mas acabou ficando ESCROTA!, um desabafo através de um palavrão que deve ocorrer a todos os que usam a web hoje em dia: Ô INTERNET FILHA DUMA PUUUUUTA! MEEEEERDAAAAAA!

Um gol inesquecível (crônica de Ronaldo Rodrigues)

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Começo parafraseando Paulinho da Viola: tinha eu 12 anos de idade (e não 14, como no samba) quando meu pai me chamou para assistir, pela TV, a um jogo sem interesse para a torcida brasileira, que só admite disputa pelo primeiro lugar. A data: 24 de junho de 1978. O local: Estádio Monumental de Nuñez, Buenos Aires. O evento: decisão do terceiro lugar da Copa do Mundo, entre Brasil e Itália.

A conquista da Argentina foi embalada por muitas polêmicas. Sua classificação para a final veio através de uma suspeitíssima goleada de 6 a 0 sobre o Peru.

A seleção argentina, bastante forte, contava com craques como Fillol, Passarella, Ardilles e o artilheiro Kempes. A força da equipe ganhou um reforço de fora das quatro linhas: a pressão do governo argentino. O título mundial cairia como uma luva para a glorificação do regime do general Videla. E foi o que ocorreu.

Mas voltando ao jogo: a Itália abre o marcador com Causio, no primeiro tempo. O próximo gol da partida é uma obra-prima que ficará marcada para sempre na minha memória de torcedor.

Aos 19 minutos do segundo tempo, o lateral direito Nelinho pega uma bola pela direita, próxima ao bico da grande área, e chuta com sua potência característica. A bola descreve uma curva muito acentuada, sai do alcance do goleiro Zoff e estufa o canto direito da rede. Depois, com o gol de Dirceu aos 25 minutos, o Brasil conquistava o terceiro lugar daquela Copa do Mundo.

A minha revolta de garoto recusou o título de “campeão moral”, expressão cunhada pelo técnico Cláudio Coutinho e aceita por muita gente, mas o gol de Nelinho fez meu jovem coração vibrar como o de um campeão.

Quer ver o gol? Assistam o vídeo abaixo:

Rock doido de bom – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Estive mais uma vez reunido com a galera do rock. Roqueiros de várias gerações vieram falar comigo. Uns lembraram o som do rock que ouviram em discos de vinil e outros me falaram de novidades tecnológicas, as mil possibilidades de se fazer som em novas plataformas (é assim que se diz, né?).

Ao contrário do que muita gente preconceituosa acha, show de rock é um momento de paz e papo com os amigos. Um grande encontro que, muitas vezes, pelo menos pra mim, o que menos importa é o show que rola no palco. O meu show, o nosso show, fazemos nós.

Confraternização é o nome certo desse encontro, com acordes gritantes das guitarras. É certo que, na roda punk, o caboco pode muito bem levar uma porrada valendo, mas ele desconta em outro, o outro desconta em outro e assim vai até o fim, sem que ninguém seja derrotado ou que a brincadeira acabe num porradal.

Celebração de memórias afetivas, contação de histórias do tempo de a gente largado, sem compromisso, sem ter que acordar cedo, enchendo a cara de vinho barato pelas madrugadas insones, entre conversas piradas.

No Dia Mundial do Rock, que, curiosamente, só acontece no Brasil, fui ao encontro desse universo, acompanhado de meus filhos, Pedro, Artur e o Capitão Açaí, que a todo momento era lembrado por alguém. E, claro, uma multidão de amigos que me fizeram parecer o grande astro, o superstar da minha noite.

Vida longa aos roqueiros que empunham a bandeira do rock, o escudo da amizade e são capazes de a tudo vencer, até pandemias e guerras e fome e governos criminosos e desastrosos.

E tome brejas, cigarros e outras cositas que fazem florescer a mente e alegrar o coração, já sambado de tantas revoluções.

Rock sim! Rock sempre! Rock na veia do mundo!

Poesia de agora: Coleção de vinil – Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Coleção de vinil

podem me chamar
de arcaico antiquado
ultrapassado inatual

podem achar que faço média
ou que vivo na idade média

podem me chamar de avô
do homem de neanderthal

que sou o cara mais mala
que já se viu

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

podem me tachar de antigo
digam que estou no passado

que sou o cara mais quadrado
deste mundo

mas nessa onda eu vou fundo
e grito pra quem ainda não ouviu

eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

também tenho coleção de cd
podem crer

eu tô ligado plugado conectado
sei lá mais o quê

mas me deixem ouvir abafado
chiado riscado o meu lp

eu prefiro mudar de planeta
fugir do Brasil

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

ATENÇÃO, PASSAGEIRO DESTA SEGUNDA-FEIRA – Por Ronaldo Rodrigues

Estamos voando em velocidade de cruzeiro.

O tempo é bom, se consideras, como eu, que chuva é tempo bom.

A visibilidade é boa. Acabei de pingar um colírio de novo horizonte.

Estamos sobrevoando Macapá, que promete se comportar bem este dia.

Estamos sujeitos a turbulências, mas, caso haja alguma emergência, daquelas bem foda mesmo, serás inundado por sentimentos de amizade e esperança.

Este avião – a segunda-feira – promete – e cumpre! – que atravessará o tempo e o espaço e pousará no aeroporto do paraíso. Mas aí tu terás que embarcar no próximo avião – a terça-feira – , onde a viagem já será outra.

Bom voo para nós.

Ronaldo Rodrigues

A Moça do Tempo – Crônica de Ronaldo Rodrigues (com ilustração de Ronaldo Rony)

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Aos 19 anos, Mariana completou 30.

Sempre à frente de seu tempo, Mariana menstruou aos 70 e perdeu a virgindade aos três.

O tempo era seu passatempo. Seus banhos demoravam duas semanas, mas para comer cinco pizzas e três refrigerantes, dois segundos e meio bastavam.

Mariana se casou com seu avô, este com sete anos. Seu filho mais velho nasceu depois dos trigêmeos, que vieram ao mundo separadamente, em Estocolmo, Kingston e Bruxelas.

Seus netos a conheceram na festa de seu 15º aniversário, quando ela, já completamente senil, ainda não havia nascido.

Sempre que perguntada pelas horas, Mariana respondia que faltavam quinze dias para dois minutos, tempo em que viriam o calor infernal do inverno, as flores no outono, a primavera hostil e o verão glacial.

Mariana começou a escrever suas memórias antes dos 150 anos e as concluiu com apenas dois dias de nascida.

Seus pais começaram a namorar 20 anos antes de se conhecerem.

Depois do mestrado e doutorado, Mariana ingressou na alfabetização, onde aprendeu a ler todos os livros que ainda não haviam sido escritos. Foi quando Mariana pediu um tempo ao tempo……………………………………………………………

Então, todos os relógios do mundo marcaram a mesma hora. Quando seu primeiro ancestral iniciou sua proliferação, bem no começo de toda a existência, o tempo fechou para Mariana. As ampulhetas explodiram e os relógios, com seus ponteiros apontados para ela, gritaram numa só voz:

– Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou!

Verônica, a submersa (conto firmeza de Ronaldo Rodrigues, ilustrado por Ronaldo Rony)

Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.

Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.

Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.

O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.

Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.

Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.

Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.

Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.

E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.

E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.

Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.

Ronaldo Rodrigues