A Moça do Tempo – Crônica de Ronaldo Rodrigues (com ilustração de Ronaldo Rony)

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Aos 19 anos, Mariana completou 30.

Sempre à frente de seu tempo, Mariana menstruou aos 70 e perdeu a virgindade aos três.

O tempo era seu passatempo. Seus banhos demoravam duas semanas, mas para comer cinco pizzas e três refrigerantes, dois segundos e meio bastavam.

Mariana se casou com seu avô, este com sete anos. Seu filho mais velho nasceu depois dos trigêmeos, que vieram ao mundo separadamente, em Estocolmo, Kingston e Bruxelas.

Seus netos a conheceram na festa de seu 15º aniversário, quando ela, já completamente senil, ainda não havia nascido.

Sempre que perguntada pelas horas, Mariana respondia que faltavam quinze dias para dois minutos, tempo em que viriam o calor infernal do inverno, as flores no outono, a primavera hostil e o verão glacial.

Mariana começou a escrever suas memórias antes dos 150 anos e as concluiu com apenas dois dias de nascida.

Seus pais começaram a namorar 20 anos antes de se conhecerem.

Depois do mestrado e doutorado, Mariana ingressou na alfabetização, onde aprendeu a ler todos os livros que ainda não haviam sido escritos. Foi quando Mariana pediu um tempo ao tempo……………………………………………………………

Então, todos os relógios do mundo marcaram a mesma hora. Quando seu primeiro ancestral iniciou sua proliferação, bem no começo de toda a existência, o tempo fechou para Mariana. As ampulhetas explodiram e os relógios, com seus ponteiros apontados para ela, gritaram numa só voz:

– Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou!

A fonte da velhice – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Como? Cinquenta e oito anos? Nem parece!
Ele ouvia sempre isso quando o assunto idade vinha à baila.
– Tem cara de 42, por aí.
Quando tinha 15 anos, achavam que ele tinha 9. Aos dois anos de idade:
– Nossa! Parece recém-nascido!
Era barrado constantemente em festas. Nem mostrando a carteira de identidade se livrava do estigma:
– Você não pode entrar! Essa carteira deve ser falsa! Vá embora já, senão vão te prender! Falsificação de documento é crime!
Quando tinha 25 anos quis namorar uma menina de 18. Ela foi categórica:
– Não namoro com garotos de 14 anos. Não insista!
Aquilo já estava se tornando paranoico. Aos 58 anos, sem rugas, sem um fio de cabelo branco e com muita disposição, ninguém poderia supor que ele já ultrapassou a marca de meio século. Nem a barba, que deixava crescer de vez em quando, conseguia conferir à sua aparência um pouco mais de idade.
Foi então que, ao contrário de Ponce de León, navegador espanhol que partiu pelo mundo à procura da Fonte da Juventude, ele começou uma jornada a fim de encontrar um meio de aparentar a idade madura que tinha, o que ele achava que poderia atrair mais respeito para a sua pessoa.
Eis que, passados alguns meses longe dos amigos, ele apareceu com um visual bem diferente do que o havia marcado até então, com muitas rugas ao redor dos olhos, na testa e nas mãos, e os cabelos completamente brancos. E foi logo explicando, diante dos olhares de espanto:
– Algumas vezes, na história e na literatura, pessoas reais ou personagens da ficção fizeram pacto para manter eternamente a juventude. Eu fiz um pacto ao contrário, para me tornar mais velho, ou, pelo menos, que minha aparência faça jus à idade que tenho. Procurei um cirurgião plástico. A princípio, ele estranhou alguém no mundo recorrendo a um cirurgião plástico com a intenção de envelhecer. A maioria, na verdade a totalidade das pessoas, quer rejuvenescer. Ele relutou em fazer a cirurgia e eu mostrei todos os argumentos e o principal deles era:
– Doutor! Eu estou de saco cheio de ouvir as pessoas falando que pareço ter menos idade do que realmente tenho!
Ele falou isso com as mãos agarradas ao colarinho do médico, que foi convencido a fazer a cirurgia graças a um bem-vindo reforço de capital, alguns reais acima do valor que ele costumava cobrar.
Foi então que o nosso personagem concebeu mais um mito em torno da questão do passar inexorável do tempo. Ele criou a Fonte da Velhice, uma fonte da qual ninguém quer chegar perto, mas todo mundo se encaminha para ela e há de encontrá-la um dia.

Iara – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

A madrugada toda foi de chuva. As ruas ficaram alagadas. Quase toda a cidade ficou paralisada, esperando as águas baixarem. Eu acordei cedo, como todas as manhãs, para ir ao trabalho, mas tive que esperar até 10 horas para poder sair. Quando abri a porta, vi um peixe enorme estirado no pátio. Revirando aquele peixe, vi que ele ainda estava vivo, se debatendo levemente. Examinando melhor, constatei que não se tratava de um peixe. Era uma sereia.

Levei a sereia para dentro, agasalhei-a, esquentei uma sopa e dei para ela que, muito debilitada, talvez pelo esforço de nadar entre a maresia que o temporal tinha provocado, sorveu bem devagar.

Ela foi, aos poucos, recobrando a consciência e perguntou onde se encontrava. Eu disse que ela estava numa cidade à beira de um grande rio, que ficou maior ainda por causa da chuva forte. Falei que eu precisava ir ao trabalho e que ela poderia ficar em casa, descansando. Na volta, nós pensaríamos numa maneira de devolvê-la ao rio.

Quando voltei, encontrei a sereia no sofá da sala, assistindo a uma novela na TV. Ela tinha varrido, espanado e arrumado a casa toda, que estava brilhando, muito diferente de quando eu saí. Ela disse que aquilo era um agradecimento pela forma como eu a tinha tratado.

E a sereia foi ficando, ficando. Depois de três dias, já dormíamos juntos, ela tomava conta da casa, fazia comida, tudo com muito esmero. Até que senti ameaçada a minha resolução de eterna solteirice. A convenci a voltar para a sua casa, fosse lá onde fosse, imagino que nos recônditos do imenso rio.

Ela compreendeu, se despediu, muito educadamente, e partiu. Mas, sempre que o temporal e a saudade vêm mais forte, ela me faz uma visita.

A ARCA DE NÃO É – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Depois do temporal fiquei olhando aquele mar sem fim que a chuvarada tinha plantado.

Eu tinha ficado só no mundo, depois do dilúvio.

Minha preguiça não me permitiu concluir o grande barco que a voz tinha dito para eu construir.

Era um sonho louco que eu tinha toda vez que chovia muito.

Uma voz me dizia para eu construir um barco imenso, onde coubessem muitas espécies de animais.

Uma dessas chuvas poderia demorar muito a passar, alagar e afogar todos os que não estivessem no barco.

Até comecei.

Pedi a um amigo construtor de barcos para desenhar um esquema que eu pudesse executar.

Ele esboçou uma arquitetura naval impressionante, bem mais avançada que as loucuras de Da Vinci e sem aquelas frescuras que Niemeyer adorava inventar.

Julio Verne não teria conseguido imaginar algo tão engenhoso.

Desenhou um barco que, se estivéssemos num filme, poderíamos batizá-lo de Titanic, tal sua imponência e capacidade de navegação.

Eu fiquei de comprar o material e construir o bruto do barco, do jeito que a voz mandou.

Mas dava uma preguiça danada pensar naquilo, aliada ao fato de que a inflação crescia e o dinheiro diminuía.

Sei que se tivesse me empenhado teria conseguido juntar a grana.
E não estaria agora só, no meio do mar.

Vou dormir e tentar sonhar com a voz. Quem sabe ela me diz o que fazer.

Uma crônica baseada em baseados reais – Crônica de Ronaldo Rodrigues

GinoflexForever

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Mais uma história verídica quase ficção do meu amigossauro Ginoflex Vinil.

Tocou o celular, eu atendi:

– Alô.
– Fala, Ronaldo!
– Fala, Gino. Qual é o papo?
– Tá rolando uma festinha aí na tua casa?
– Não é bem uma festa, só uns amigos reunidos. Fizemos aquela coleta básica e compramos umas latinhas.
– Eu posso ir praí?
– É… Pode! Mas olha lá, hein! Tu vais trazer algum amigo contigo?
– Vou. O senhor sabe que eu sempre levo alguém.
– Mas quantos tu vais trazer?
– Calma, Gabiru! Relaxa! Vou levar dois.
– Dois? Tá legal. Pode vir.

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Desliguei o celular e me reuni aos três amigos que conversavam e bebiam no pátio de casa, lá no bairro do Trem. Fiquei um pouco apreensivo porque eu sabia que o Ginoflex costumava SE convidar para as reuniões de farra e aproveitava para convidar muita gente. Eu estava pensando nisso quando o Ginoflex apareceu dentro de um carro com mais cinco pessoas. Ao lado, parou outro carro, este com seis pessoas dentro.

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Ginoflex e Ronaldo Rodrigues

O Ginoflex, com aquele jeito todo à vontade, foi logo me apresentando a galera. Na discreta, chamei o Ginoflex para o lado:

– Porra, Gino! Eu falei que não era uma farra grande e tu disseste que só ia trazer dois amigos!
– Calma, Gabiru! Eu falei que ia trazer dois! Dois carros!

Eu compreendi e sorri com mais uma do Gino. Já ia me recolher ao meu canto quando ele, abrindo um pacote de uma erva (que eu não vou dizer aqui), falou com a cara mais sem-vergonha deste meio do mundo:

– Mas eu trouxe outras coisas também, Gabiru!

Aí demos início ao ritual de boas-vindas. Se é que me entendem.

Rompi com o mundo SQN – Croniqueta meia-boca pós-Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Croniqueta meia-boca pós-Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Tentei romper com o mundo, mas parece que foi sem sucesso. Parece, não! FOI sem sucesso! Ser ermitão na Idade Média deve ter sido mais fácil. Agora, com esse monte de recursos, a solidão e o isolamento parecem mais distantes.

Mas o que digo aqui trata-se de uma ruptura simbólica, ou vontade apenas. O fim do Carnaval traz para mim essa coisa de fim/começo de ciclo. Logo, vem a tal da reflexão sobre isso. Foi-se a folia, que virou cinza, e outra urgências se apresentam.

Já que não sinto ressaca (a não ser que sono possa ser chamado de ressaca), para me ocupar com alguma coisa, me restou partir para esta reflexão que ora coloco diante de vossos olhos.

Para muitos, o ano só começa depois do Carnaval. Para mim, é assim também, mas tem uma certa coerência. Vejamos: logo depois das farras de Natal e fim de ano, vêm as celebrações do meu aniversário em janeiro, que faço questão de comemorar, já que sempre pode ser o último (um dia será). Depois, engato no Carnaval, que não deixo escapar de jeito algum.

Pois bem, o Carnaval passou e me deixou esta reflexão que sabe-se lá irá servir para alguma coisa, tipo entender que, se não rompi com o mundo, é porque ele não merece toda essa atenção.

Pelo menos, rendeu esta croniqueta meia-boca. O Carnaval foi ótimo, veremos o resto. Bom ano a todos.

Bloco do Eu Sozinho – Crônica de carnaval de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sigo eu, sozinho, seguindo a mim mesmo, neste bloco de amigos e inimigos invisíveis, alguns inexistentes, sobras de outros carnavais. Pálidas lembranças de confetes e serpentinas. Fantasmas de pierrôs e arlequins. Saudade de colombinas.

Sigo cego, a esmo, sempre o mesmo, sob a chuva. Não a chuva de papel picado. A chuva, essa que vem devagarinho e fica por muito tempo, a desmanchar a maquiagem, a se misturar às lágrimas que caem da máscara, as lágrimas formando outra chuva.

Meu samba atravessa a avenida e eu atravesso o samba. Sou desclassificado, é lógico. A corte marcial do Rei Momo é implacável. Se ano que vem ainda existir carnaval, se houver ano que vem, devo desfilar no segundo grupo. Mas, como sei que não posso deixar o samba morrer, que não posso deixar o samba acabar, o jeito é me acabar no samba.

Sigo esse bloco, sou esse bloco, despido de fantasias, em choque com a realidade, e espero me recuperar da ressaca nas cinzas de outro carnaval. Quarta-feira há de chegar, a me cobrar responsabilidades de quem sobreviveu ao folguedo, e eu estarei preparado (estarei preparado?) para ir ao seu encontro.

Fantasia real – Crônica de carnaval do Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

No Carnaval, saí fantasiado de mim, de eu, de eu mesmo. Ninguém me reconheceu. Andei pelos lugares que frequento, pelo Caos, pelo Formigueiro, pelo Bar do Nego, pelo Underground. Nessa ordem. Eu estava com minha fantasia intitulada “Eu, Eu, Demasiadamente Eu, Absolutamente Eu” e ninguém sacou quem era aquela pessoa ali fantasiada. Quase cheguei ao ponto de gritar para aquela multidão de foliões:
– Ei! Sou eu que estou aqui!

Só não fiz isso porque achei que, mesmo assim, não se levantaria um cristão sequer a me apontar o dedo pra fazer a revelação que eu precisava, gritando no mesmo tom do meu grito:
– Olha só! Descobri quem está por trás dessa fantasia! É ele!

Acompanhei a Banda, na esperança quase desesperada de que alguém me descobrisse, e nada. Quando, finalmente, rasguei a fantasia, me desnudando totalmente, mesmo assim não ouvi o que tanto desejava há tantos Carnavais. Que alguém, se descobrindo, me descobrisse:
– Sou eu! É ele!

Ao fim do Carnaval, que se estendeu pra muito além do calendário, desisti da ideia de que me revelassem. Voltei pra casa, já quase em cinzas, e um cachorro de rua chegou a mim, retornando também de sua quadra carnavalesca. Tirando a fantasia de cachorro e ainda permanecendo cachorro, ele rosnou de uma forma que não sei se foi de raiva, carinho, surpresa ou alerta. Ou todas as respostas anteriores. Esse rosnado eu traduzi assim:
– Ei! Eu sei quem tu és!

Ele se calou, contrariando a minha vontade de que aquele cachorro fizesse um comentário mais longo, mais abrangente. Ficamos em silêncio e o nosso segredo se sagrou, sangrou, se cristalizou. Quem sabe se, no próximo Carnaval, a gente se revela…

Alegria é lei – Crônica de carnaval do Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Noite de Carnaval, uma das Mil e Uma Noites de Carnaval, e eu diante da televisão. Em retiro espiritual? Nem tanto. Estava olhando as bundas rebolativas maravilhosas, reais e artificiais, que desfilavam nos sambódromos e passarelas deste carnavalesco Brasil.

Meu programa de folião se resumia a isso. Mas, depois que a exuberância bundística cansasse meu tarado, porém inofensivo, olhar, eu iria me entregar ao resto do programa: um bom livro e uma xícara de chá, embaixo do meu solitário edredom. O Rei Momo dominava o resto do Brasil e só eu me encontrava enclausurado nesta ilha que é o meu quarto. Que maravilha!

Mas ei que a campainha tocou. Quem estaria a estas horas longe da esbórnia cívica nacional? Abri a porta e me deparei com um pierrô, uma colombina, um arlequim, um pirata do Caribe, um sheik e cinco Fridas Khalo, que este ano estiveram em alta, disparadas na preferência de muitas pessoas. E tinha também um delegado de polícia. O delegado era delegado mesmo, não uma fantasia. E foi ele quem falou pelo grupo:

– Boa noite, cavalheiro! Viemos informar que o senhor está infringindo vários artigos do Código Civil. Onde já se viu uma coisa dessas?

– Mas o que foi que eu fiz?

– A questão não é o que o senhor fez e, sim, o que o senhor não fez!

– E o que foi que eu não fiz?

– O senhor, em pleno período de Carnaval, neste país, que é, nada mais nada menos, que o País do Carnaval, está recolhido aos seus aposentos. Os seus vizinhos, aqui representados por estes cidadãos, que prezam as tradições do lugar em que vivem, exigem que o senhor troque esse pijama por uma fantasia qualquer, o seu chá por uma bebida alcoólica e o seu livro por um adereço de mão. E venha para a rua pular, cantar, festejar a alegria e a liberdade de um país que decreta feriado nacional, universal e intergalático para que seus filhos possam se jogar, sem temor, nos braços da felicidade.

O grupo de foliões aplaudiu o delegado, que estufou o peito em resposta, muito satisfeito de seu discurso. Eu protestei:

– Já que o senhor falou em liberdade, será que uma pessoa não é livre para escolher se quer participar das festas? Assim como as pessoas que aqui estão têm o direito de dançar, eu tenho o direito de não dançar, de ficar no meu canto sossegado e….

O delegado, que procurava algo para me incriminar, me interrompeu:

– Aí é que está, cidadão! O senhor está sossegado no seu canto. Os seus vizinhos afirmam que o seu silêncio está atrapalhando o barulho que eles estão fazendo com tanta dedicação!

Aí foi que eu me confundi mesmo! Já sem força, nem raciocínio, para protestar contra aquele absurdo, me limitei a perguntar, já procurando minha carteira para uma providencial propina:

– E o que devo fazer para reparar esse dano?

– O senhor escolhe: pagar uma multa altíssima, ser recolhido ao xadrez ou cair na folia com seus semelhantes.

Escolhi a última opção. Vocês viram um folião todo desajeitado por aí? Era eu.

ATENÇÃO, PASSAGEIRO DESTA SEGUNDA-FEIRA – Por Ronaldo Rodrigues

Estamos voando em velocidade de cruzeiro.

O tempo é bom, se consideras, como eu, que chuva é tempo bom.

A visibilidade é boa. Acabei de pingar um colírio de novo horizonte.

Estamos sobrevoando Macapá, que promete se comportar bem este dia.

Estamos sujeitos a turbulências, mas, caso haja alguma emergência, daquelas bem foda mesmo, serás inundado por sentimentos de amizade e esperança.

Este avião – a segunda-feira – promete – e cumpre! – que atravessará o tempo e o espaço e pousará no aeroporto do paraíso. Mas aí tu terás que embarcar no próximo avião – a terça-feira – , onde a viagem já será outra.

Bom voo para nós.

Ronaldo Rodrigues

Parabéns para mim nesta data querida – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Autor do meme: Pequeno

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Se algum dia um grupo de extraterrestres chegar, entre amigos, conhecidos e familiares, companheiros de trabalho ou de farra, e perguntar por mim sem dizer meu nome, apenas algumas caraterísticas, quem poderá informar?

O líder dos extraterrestres vai perguntar assim:

– Vocês conhecem esse cara?
• Nasceu em Curuçá, no Pará, em 17 de janeiro de 1966.
• Se criou em Santa Maria das Mangueiras de Belém do Grão-Pará.
• Hoje mora em Macapá do Meio do Mundo, se tornando, assim, um amaparaense.
• Escreve, desenha e lê bastante, não necessariamente nessa ordem.
• Rói unha desde que habitava o útero materno.
• Gosta de estourar plástico-bolha.
• É viciado em palavras cruzadas.
• Perfume? Só usa Leite de Rosas.
• Usa alpercatas frequentemente.
• Usa meias por vezes extravagantes.
• Não gosta de pizza.
• Não curte pets. Aliás, curte, desde que estejam beeeemmm longe.
• Não dirige carro. Nem moto. Só bicicleta, mas não sabe soltar as duas mãos. Bicicleta é seu veículo preferencial.
• Bebe muito, de preferência cerveja.
• Fuma muito. Até cigarro.
• Fala muito palavrão.
• Videogame? Nada! Joga somente paciência. E de um naipe só.
• Não se dá bem em jogo nenhum: futebol, vôlei, natação. Nada disso. Joga um pouco de xadrez e bilhar, mas sua estratégia consiste apenas em dificultar a vitória do adversário.
• Não sabe dar aqueles assovios fortes, como a maioria dos moleques de sua geração.
• É do país do futebol, mas é muito ruim de bola.
• Já brigou algumas vezes, mas só aprendeu a apanhar na vida.
• É cheio de TOCs e manias. Não pode ver sandália emborcada, por exemplo.
• Odeia supermercados e não frequenta shoppings.
• Detesta fazer compras, pois evita ao máximo qualquer relação comercial entre pessoas. As únicas coisas que gosta de comprar: livros e revistas. Antigamente, CDs de música.
• Não vê mais televisão, séries, filmes, novelas, noticiários, futebol, programas de auditório, podcasts. A intenção é retornar ao primitivo. Um dia, lá no futuro, já que hoje ainda não dá, vai abrir mão de toda a tecnologia. Vai largar a internet, a futilidade das redes sociais e o tatibitate do WhatsApp. Vai sair de todos os grupos, já que se acha capaz de ser burro sozinho.
• Já foi cabeludo. E careca. E cabeludo. E careca. E cabeludo…
• É destro, mas adoraria ser canhoto. Acha mais charmoso.
• Usa óculos, mas não escuros.
• É capricorniano, mas não liga pra isso.
• Há mais de 30 anos, exerce a profissão de redator publicitário. Isso mostra que ou ele entende mesmo disso ou está enganando muito bem.
• É filho da dona Darlinda e do seu Rodrigo, irmão do Reginaldo, da Ronilda, Renilda, Socorro e Fátima.
• É pai do Pedro, com Maria Lídia, e do Artur, com Patrícia Andrade.
• Não serve de exemplo pra coisa alguma.
E aí? Alguém pode informar?

Aí imaginei alguém respondendo:
– Rapaz, vi uma pessoa assim um dia desses! Mas o que aconteceu? Por que vocês estão procurando?
– É que hoje é aniversário dele e temos uma surpresa.

Aí mostraram um bolo imenso, no formato de um disco voador. Foi quando saí do meu esconderijo e me revelei aos meus irmãos ETs. A partir daí a festa começou e só vai acabar quando eles retornarem à Terra novamente para me levar de volta ao meu planeta originário. Até lá, vamos de festa:
– Parabéns para mim / Nesta data querida / Muitas felicidades / Muito anos de vida…

E segue o baile!

Meus amigos de Liverpool – Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues – Republicada por hoje ser o Dia Mundial dos Beatles

Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues

Tudo começou em 1963, quando conheci o John. Ele era meio maluco, falava muito e estava sempre a fim de fazer alguma coisa: montar uma banda de rock, formar um grupo de apoio social ou reunir uma galera boa para invadir um pub e roubar toda a cerveja. Pois foi uma banda que nós resolvemos montar.

Ele apareceu uma vez com um cara que tocava muito, o Paul. Depois, o Paul trouxe outro cara que tocava demais, o George. Tínhamos então eu no vocal, John na guitarra base, George na guitarra solo e Paul no baixo. O Pete, que era nosso baterista, não ficou muito tempo e logo apareceu um tal de Ringo, que já desfrutava de um certo sucesso.

Fizemos umas pequenas turnês, já angariávamos algum prestígio e muita gente curtia nossas músicas. A maioria era de minha autoria, mas o John e o Paul brigavam tanto por serem as estrelas principais que abri mão da minha participação e deixei os dois assinando as músicas, mesmo que várias delas fossem minhas.

Gravar um disco ainda era um sonho muito distante, mas entrou em cena outro cara, o Brian, que surgiu atraído pelo sucesso que fazíamos no pequeno circuito em que transitávamos. Ele já tinha todos os macetes e sabia, como se diz hoje, o caminho das pedras. Antes que o Brian tomasse conta do grupo, eu resolvi sair. Era muita correria: compor, ensaiar, gravar, cumprir a exaustiva agenda de shows… Ufa! E, também, a minha timidez não combinava com o estrelato. A vida pacata que levei desde então foi o suficiente para mim.

Voltei para minha pequena cidade e segui minha carreira de ilustre desconhecido, bem mais quieta do que a vida de celebridade. Aquela banda se tornou mesmo um sucesso mundial e eu passei a colecionar recortes de jornais com shows e entrevistas daqueles amigos que eu havia deixado em Liverpool e que logo depois se mudaram para Londres. Jamais revelei a alguém minha ligação com a banda.

Depois que os rapazes conquistaram o mundo, a banda se dissolveu. Os fãs diziam que o fim foi cedo, que ainda havia muita música boa para vir à tona. A maioria dos fãs culpava a nova esposa do John pelo fim. Outros diziam que o Paul queria a liderança a qualquer custo e isso desgastou a relação. A minha opinião, que não foi pedida por ninguém, é que as coisas boas, para terem existência completa, precisam mesmo acabar. Começo, meio e fim: esta é a fórmula.

Meus amigos de Liverpool continuaram fazendo sucesso em suas carreiras solo, o tempo passou e o período em que fiz parte daquela banda ia ficando nos desvãos mais recônditos da memória. Até que, certa manhã, ao abrir o jornal, fui despertado do meu resto de sono pelo barulho ensurdecedor de vários tiros e a manchete que jamais esperei ler algum dia, a notícia crua, a frieza do assassino. As lembranças voltaram dolorosamente: os óculos redondos, o humor sardônico, as passeatas pela paz mundial. E aquela data ficou para sempre sangrando em mim: 8 de dezembro de 1980. Mas quem vai acreditar nisso?

*Republicada por hoje ser o Dia Mundial dos Beatles. 

Inteligência primordial – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sabe esse negócio de Inteligência Artificial? Pois é! Estou a fim de entrar na era da Inteligência Primordial, a primitiva, aquela que dispensa o uso de aplicativos. Funciona assim: vamos nos desligando. No falar deste tempo, nos desapegando desses produtos que nos deixam conectados.

Eu comecei deixando de ver televisão e tudo o que nela tem: noticiário, futebol, novela, reality show, programa de auditório, talk show… Hoje não vejo filmes, séries, podcast, stand-up, esse tipo de coisa. Minha ideia é entrar em total estado de comunhão com a natureza.

Me libertar, ainda que eu nunca tenha sido preso a isso: influencers, coachs, pastores eletrônicos ou outras malandragens, picaretagens desse naipe.

Muitas coisas me interessam, mas não estão na internet. Estão ao meu redor, sem que haja uma tela entre nós.

Pode-se dizer que eu esteja desligando os aparelhos e morrendo aos poucos. Mas pode muito bem acontecer que, daqui a um ano, mais ou menos, eu esteja me comunicando por telepatia. Sim. Retorno às raízes, tudo isso.

Retorno ao primitivo, ao intuitivo. A comunhão com o planeta, dispensando a vulgaridade de parte da população que o habita, deixando apenas a essência das pessoas que valem a tentativa. Os momentos libertados de selfies, lives, likes e essa porra toda.

Inteligência Primordial. Pensem nisso. Vou terminar citando o beatle John: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas eu não sou o único”. Imagine tudo isso!

Quem é o cantor? – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ele gostava de cantar. Era apaixonado pela arte do canto. A arte do canto é que não dava a mínima para ele. A arte do canto o deixava no canto. Não gostava nada daquele aspirante a cantor, cujos únicos talentos eram a persistência e a cara de pau.

Seus amigos o evitavam para não serem obrigados a escutar aquele repertório surrado e pessimamente cantado. Mas ele insistia. Cantava e depois perguntava:

– Vocês acham que essa música foi bem executada?

Como ele não poupava os amigos, estes também não o poupavam:

– Gostamos muitíssimo. Principalmente da parte em que acabou. Achamos que a música foi mesmo executada, sem dó nem piedade. E se não tivesses parado de executá-la, o executado serias tu.
– Tudo bem, pessoal. Não se pode agradar a todo mundo.
– Mas desagradar a todo mundo pode. E tu consegues!

Ele não ligava para as críticas. Na verdade, ligava sim. Achava que as críticas tinham o poder de elevar a sua vontade de se consagrar na música. Pensava que as opiniões, mesmo as menos favoráveis, faziam um cantor amadurecer a sua arte. Novamente, os amigos opinavam:
– A tua arte já está amadurecida, quase para cair. Aliás, já apodreceu!

Fugindo à regra, essa crítica o abalou. Ele resolveu pedir a opinião materna:

– A senhora acha que eu sou um artista chato?
– Claro que não! Tu és só chato, não artista!

Sua mãe se arrependeu de ser tão direta e tentou consolá-lo:

– Fica triste não, filho! Ainda irás fazer muito sucesso. O Oscar Niemeyer começou a carreira assim.
– Oscar Niemeyer? Mas ele era arquiteto!
– Pois é. Ele tentou a música, viu que não tinha nada a ver, foi para a arquitetura e arrebentou!

Mesmo com todo esse incentivo, ele se inscreveu no The Voice Brasil. Assistiu a várias edições anteriores do programa e achou que dava para ganhar no grito:

– Eu só vejo o pessoal gritando lá. Basta gritar que eu levo, pelo menos, o terceiro lugar ou um contrato com alguma gravadora.

Realmente, ele estava certo. A gritaria tomou conta. Ele entrou no ritmo e gritou também. Mas se ele queria levar alguma coisa do programa, levou: muita vaia.

Nas canjas dos bares, ele marcava presença, sempre suportando o sarro dos amigos:

– Leva Chão de Giz?
– Levo!
– Então leva pra bem longe que ninguém aguenta mais!

– Leva Canção da Despedida?
– Levo!
– Mas é a canção da tua despedida!

– Leva Manu Chao?
– Levo!
– Então, mano, tchau!

E as gargalhadas não paravam. Os amigos entoavam trechos de músicas para que ele se tocasse:

– “Apesar de você…”.
– “A noite vai ser boooaa…”.

A gota d’água (não, não me refiro à música Gota d’Água, do Chico Buarque) foi numa noite dessas. Ele subiu ao palco para mais uma canja e disse o que muitos cantores de bar dizem:

– Vocês têm algum pedido a fazer?
Uma voz de bêbado gritou lá do fundo:
– Sim! Coloca um vinil pra rolar!

Desistiu de uma vez por todas. Sacou que já tem muita gente que não canta nada brilhando nas paradas de sucesso e fazendo carreira. Atualmente, ele se dedica a cantar garotas, repetindo o mesmo sucesso que fazia na música.