A FORTALEZA E A GÊNESE DA OCUPAÇÃO – Crônica/resgate histórico de Fernando Canto

Fortaleza de São José de Macapá – Foto: blog Amapá, minha terra amada.

Crônica de Fernando Canto

Na continuação das nossas observações sobre a Fortaleza de São José de Macapá, temos a considerar que a memória é o deciframento do que somos à luz do que não somos mais (Nora, 1993), ela fixa os sentidos e a identidade, permitindo à sociedade traçar suas origens e reconhecer suas permanências independentemente do tempo. Mas ela também possibilita o reencontro com o sentido de pertencimento e tem a capacidade de viver o hoje, tornando-se princípio e segredo da identidade.

Fortaleza bicentenária – Foto: Floriano Lima

Desta forma, há uma necessidade de se observar o monumento, hoje, sob o olhar de uma memória coletiva, com suas significações que a levaram a ser um ícone da identidade macapaense e não mais exclusivamente como arquitetura militar ou obra de segurança e proteção da região. Faz-se necessário saber como foi construído e modificado o discurso de ocupação da Fortaleza de São José, hoje considerado espaço de preservação. Ela é o único monumento edificado que faz a vinculação com o passado, em que pese a igreja de São José ser mais antiga, mas que sofreu inúmeras descaracterizações. Apesar de ter surgido muito depois da fundação de Macapá ela, a Fortaleza, é a gênese do discurso de ocupação e de formação da cidade. Ao longo de mais de dois séculos o eixo de ocupação e a conotação do discurso artístico e histórico da cidade foi mudando. No presente momento, por exemplo, ela foi eleita uma das maravilhas do Brasil como monumento edificado. Daí sua dinâmica no tempo e no espaço.

Fortaleza de São José de Macapá – Foto aérea de Mateus Brito

A cidade de Macapá, como qualquer cidade de seu porte, por ser um lugar de alternâncias e de condições diversificadas que dão dinamismo ao cotidiano (e onde se situam tempos de transformação e de continuidade) é, também, o lugar das alteridades e transformações da Fortaleza de São José. Isso nos permite e nos possibilita enxergar e decodificar os significados das marcas impressas nesse tempo de quase dois séculos e meio, onde estão presentes inúmeros olhares, rupturas e imbricações.

Fortaleza de São José de Macapá – Foto: Manoel Raimundo Fonseca

A conquista da Amazônia pelos portugueses suscita uma história diversificada e rica de detalhes. As fortificações por eles construídas são marcos dessa luta por expansão de fronteiras. No bojo de tudo está a Fortaleza de São José de Macapá, na qual – repetimos – inúmeros olhares se fixaram e se desvaneceram pela memória quase diluída, pelas deslembranças expurgadas pelo nascimento do novo. Da sua construção até hoje as transformações nela operadas foram significativas (curral, quartel, museu, etc.), mitificadas pela mídia (“lugar bonito”), conflitivas (acordos pecuniários para derrubar os prédios da sua área de entorno, prisão de presos políticos) e espetaculares nas mudanças urbanísticas realizadas ao longo dos anos dentro e fora da sua área original.

Fortaleza de São José de Macapá – Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Há nessa idéia um imbricado processo de análise a ser observado, porque a história da Fortaleza de Macapá traz também uma história não-oficial daqueles que foram supostamente vencidos, a história registrada pelos vencedores e suas estratégias de sobrevivência e hegemonia, onde está expressa a relação do homem com a natureza de forma significativa, pelo que experimentaram na construção daquela obra (Bhabha, 2007).

Fortaleza bicentenária – Foto: Max Renê

E essas estratégias são muito bem produzidas no longo período da sua construção. Não apenas do ponto de vista do colonizador militar como pelas astuciosas fugas e “ausências” que os trabalhadores braçais e escravos usavam para minimizar seus sofrimentos (Castro, 1999). Os papéis ocupados pelos colonizadores de manter a construção, a ordem e o controle eram dialeticamente contrapostos nas adjacências da obra da Fortaleza por negros, índios e soldados desertores, que protagonizaram uma “original aventura para conquistar a liberdade. Com suas próprias ações reinventaram significados e construíram visões sobre escravidão e liberdade” (Gomes, 1999).

Saudades do Quiosque Norte Nordeste, o saudoso “Bar da Floriano” – Crônica de Elton Tavares – Do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”

Fotos: Chico Terra (esquerda) – A poeta Patrícia Andrade no Quiosque – Foto: Aog Rocha (direita)

Crônica de Elton Tavares

Quem vive a boemia de Macapá há mais de 25 anos, certamente frequentou o Quiosque Norte Nordeste da Praça Floriano Peixoto. O “Bar da Floriano” era o ponto de encontro de poetas, artistas, músicos e malucos em geral. Os proprietários do boteco eram dona Neide e seu Alceu. Aliás, duas figuras queridas por todos que por ali curtiram na companhia de amigos.

O seu Alceu era sempre cara carismático e caladão. Quando descobriu que eu era filho do Penha, virei brother na hora, pois meu pai tinha sido seu amigo.

No Bar da Floriano rolou de tudo: Rock (lá, eu e um grupo de amigos inventamos o “Lago do Rock”, em 2004), Reggae, Samba, MPB, MPA, Clube do Vinil, saraus temáticos, declamação de poesia, lançamento de livros (como o Vanguarda), exibição de filmes, lançamento de fanzines (como os do Ronaldo Rony), venda de artesanato, entre outras tantas manifestações culturais.

Era fácil ver por lá figuras como o poeta Dinho Araújo, os músicos Nivito Guedes, Dylan Rocha, Sérgio Salles, Rebecca Braga, Chico Terra, a Patrícia Andrade, o Wedson Castro, o Ronaldo Rodrigues, o saudoso Gino Flex, etc. Enfim, uma porrada de gente legal.

Ilustração de Ronaldo Rony

O Bar foi fechado pela Prefeitura de Macapá em 2011 (acho eu, pois não lembro da data exata) e deixou a galera sem rumo, sem ninho, sem point. Pode soar como nostalgia, mas o boteco de banheiro sujo, goteiras e instalações rústicas deixou saudade numa moçada que conheço bem.

A cereja do bolo era o Antônio, garçom mais folgado e bruto como poucos, sempre com sua camiseta verde. Eu gostava daquele figura.

O comentário do amigo Chico Terra sobre o fechamento do Bar pelo poder público foi perfeito. Eu aqui reproduzo e assino embaixo:

Marlonzinho, eu, Fausto, Patrick e Ronaldo Macarrão – 2004.

“Era lugar de reunião de artistas e que varava madrugadas em paz. Mas o poder público mandou derrubar o quiosque que abrigava a poesia , tudo em nome da intolerância, inclusive religiosa do gestor municipal de plantão (na época)”. É isso!

É, nós, os malucos da cidade politicamente incorretos, contávamos moedas para a coleta da birita no local, pois amávamos a crueza e falta de sofisticação do boteco. Bons tempos aqueles do Bar da Floriano, apesar de, às vezes sórdidos, mas sempre divertidos. Com toda certeza, uma lembrança feliz. É isso.

*Texto do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”, de minha autoria, lançado em 2020.

Guitar Hero – Texto sensacional de Régis Sanches – Republicado por hoje ser o Dia do Guitarrista

Por Régis Sanches

Hoje me preparei para escrever sobre a vida errante dos guitarristas. Pensei nos menestréis, com seus alaúdes, levando alguma alegria para o festim dos lúgubres burgos ao redor dos castelos medievais. E não poderia deixar de reverenciar a memória de Django Reinhardt, o cigano belga que criou o naipe de duas guitarras, tendo seu irmão Joseph empunhando a base e ele próprio no solo. Reinhardt vestia-se a caráter. Em plena segunda guerra mundial, enquanto os foguetes alemães V-1 e V-2 explodiam nos céus de Paris, sua banda animava os sobreviventes do conflito no Clube de France.

Régis Sanches, o “Beck” ou “Galahell”, um dos guitarristas mais fodas que vi e ouvi tocar.

Certa noite, a cidade-luz às escuras, Django retornou para casa, exaurido, após mais um show. Ele deitou-se em sua cama, os fumos do sono o absorveram por completo. Sua mulher havia esquecido uma vela acesa, a tênue chama tremulou e alcançou os lençóis. O guitarrista cigano sobreviveu, mas teve sua mão direita lesionada pelo fogo. Nas raras imagens desse precursor das modernas bandas de rock, podemos vê-lo com as cicatrizes do incêndio. Ele nunca desistiu de retirar das seis cordas o lamento necessário para cicatrizar as feridas da vida.

No início desta manhã, eu estava eletrizado pelo som metálico da minha guitarra. Lembrei de uma frase de Eric Clapton, chamado de Deus em pichações nas paredes do metrô de Londres, no final da década de 1960. “Ninguém consegue tocar blues honestamente de barriga cheia”. Mister Clapton é a alma dos guitarristas, uma espécie de Fênix que sobreviveu a todas as tragédias. Como mestre de George Harrison, roubou a mulher do melhor amigo. Transtornado, mergulhou e emergiu do mundo negro das drogas. Certa ocasião, seu filho caiu da janela do apartamento. Seu coração ficou dilacerado. Mas a resposta veio na forma da sublime “Tears in Heaven”.

O melhor de Eric Clapton pode ser sorvido, ouvindo-o executar a belíssima “White room”, de Robert Johnson. A poesia que descreve a solidão – “um lugar onde o sol nunca brilha/onde as sombras fogem de si mesmas” – só encontra dueto à altura no lirismo poético dos riffs arrancados pela slowhand do velho bluesman.

Poderia citar uma legião de guitarristas: Chuck Berry, B. B. King, Jimi Hendrix, Jimmy Page, Jeff Beck… Seria em vão. Os verdadeiros guitarristas, nós podemos contá-los nos dedos de apenas uma das mãos. Os homens de verdade sabem que há duas coisas no mundo que não se vende, nem se empresta: a mulher e o carro. Incluo no rol a minha guitarra. Pois aqueles que tiveram a sorte de nascer com a alma de guitarrista hão de concordar. Na essência de todo guitarrista, além da sensibilidade, da disciplina e de uma dose exagerada de humildade, existe uma tragédia iminente rondando o destino desses modernos menestréis. Vida longa a Eric Clapton!

Meu comentário: Régis Sanches é o jornalista com um dos melhores textos que conheci na vida e um dos maiores guitarristas que vi tocar (Elton).

*Republicado por hoje ser o Dia do Guitarrista.

The Doors: O filme – Resenha (hoje completam 33 anos do longa)

Há 33 anos, era lançado o filme “The Doors”, dirigido por Oliver Stone. A cinebiografia foca no vocalista Jim Morrison, interpretado por Val Kilmer. Dividiu opiniões em relação aos acontecimentos reais envolvendo o grupo. Leia a resenha abaixo, escrita há mais de 10 anos: 

Gostamos de cinema e rock, quando essas duas coisas estão juntas então, nem se fala. Hoje falaremos um pouco do filme “The Doors”, que contou a história da banda, homônima ao longa-metragem. Tudo bem que a película exalta muito mais a figura doideira do Jim Morrison (Val Kilmer) que dos outros componentes do grupo, ou a intelectualidade do vocalista (que lançou alguns livros nos EUA).

O filme é de 1991. Foi dirigido pelo renomado diretor Oliver Stone, que ganhou o MTV Movie Awards 1992 (EUA). Stone arrebentou, escolheu o ator Val Kilmer para o papel do lendário Jim Morrison, retratou os shows com ótimos efeitos e adicionou cenas reais ao filme.

O ator mais cotado para o papel era John Travolta, mas Kilmer enviou a Oliver um vídeo onde canta músicas da banda. Isso e o fato de ser muito parecido com o “Rei Lagarto” (como Morrison era conhecido) fez com que ele ganhasse o papel. E ele foi foda naquele filme, para mim, sua melhor atuação.

Para aqueles que não sabem (que devem ter vindo de Marte), o The Doors foi, na segunda metade dos anos 60 e início de 70, uma banda de rock norte-americana. O grupo era composto por Jim Morrison (voz), Ray Manzarek (teclados), Robby Krieger (guitarra) e John Densmore (bateria). A banda tinha influências de Blues, Jazz, Flamenco e Bossa Nova. Foi uma das maiores da história do rock mundial.

O filme conta a vida anárquica de Jim, todo tipo de loucura, paixão e sexo. Algumas amigas minhas detestaram a postura de Morrison, que faz muitas cagadas com sua namorada Pamela Courson (Meg Ryan), mas isso não é nenhuma peculiaridade dos rockstars (risos). O que queremos dizer aqui é: poucas películas fazem jus ao jargão “sexo, drogas e rock and roll” como esta obra de Stone.

Ouvimos dizer que Val Kilmer teve problemas para sair do personagem, andou meio doido, por ter vivido Jim. A atuação dele foi extraordinária, até Ray Manzarek e John Densmore elogiaram publicamente o desempenho de Kilmer.

O filme tem cada “liga torta” (mas muito bacana), como a influência xamânica de Morrison (que ele absorveu depois de presenciar um acidente de carro na estrada, onde um índio teria morrido e espírito do figura virou um “encosto” no rockstar (risos). O filme retrata até o envolvimento amoroso de Jim e a jornalista Patricia Kennealy.

Jim Morrison morreu em 1971, foi cedo demais, assim como muitos, antes e depois dele. Jim influenciou, definitivamente, uma geração que, posteriormente, influenciou outras. Por exemplo, Iggy Pop que decidiu fundar sua banda (Stooges) depois de ver Jim Morrison. Apesar de não gostar do som e da poesia dos Doors, Iggy admirava a postura sensual e misteriosa de Morrison.

Assim, juntando a vontade de criar uma nova sonoridade para o rock, a preocupação com o visual da banda nas apresentações ao vivo, os Stooges marcaram o início de um movimento que culminaria com o punk rock. Mas essa é outra história.

Voltando ao filme, Ray Manzarek (tecladista do Doors) lançou, anos depois, um livro falando de algumas “potocas” de Oliver Stone no filme e que a película conta “de forma horrível” a história da banda. Mas o diretor fez vários pedidos para que Manzarek trabalhasse como consultor no filme. Entretanto, Robbie Krieger (guitarrista dos Doors) foi o consultor, então tá valendo.

Enfim, este site aconselha a todos que não assistiram a fazê-lo. Os que já assistiram e gostam muito de rock e cinema, o assistem de vez em quando. Abraços na geral!

Ficha técnica:

Gênero: Biografia, Drama.
Direção: Oliver Stone.
Elenco: Billy Idol; Val Kilmer; Meg Ryan; Kyle MacLachlan, Frank Whaley, Kevin Dillon e Kathleen Quinlan.
Duração: 140 minutos.
Ano de produção: 1991.
Classificação indicativa: 18 anos.

Assista ao trailer do filme:


Elton Tavares e André Mont’Alverne
*Republicado.

Flip não dá outro (crônica) – Por Ruben Bemerguy – Contribuição de Fernando Canto

“TEXTINHO?

Recebi do amigo Ruben Bemerguy o texto abaixo que ele chama modestamente de “Textinho”. Vejam só a riqueza da sua escritura e o desenho de sua memória em relação a pessoas que viveram a velha e romântica Macapá. E o Flip? Quem, como eu, não provou desse refrigerante genuinamente amapaense na década de 1960 e início dos anos 70? Provem, então, desse sabor borbulhante do Ruben” – Fernando Canto.

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa” – Chico Buarque de Hollanda.

Moisés Zagury

Flip não dá outro

Muito embora se possa pensar, e não sem alguma razão, que me decidi por uma literatura lúgubre, digo sempre que não. Também digo não ser essa uma expressão de meu luto. Não. Não escrevo sobre os mortos porque morreram simplesmente. O faço como quem ora, sempre ao nascer e ao pôr-do-sol, em uma sinagoga feita à mão, desenhada n’alma da mais imensa saudade. Escrevo também para que os meus mortos permaneçam vivos em mim. Morreria mais apressadamente sem a memória dos que amei tanto. É só por isso que escrevo. Porque os amei e ainda os amo.

E quando esses meus amores partem e com eles já não posso mais falar, passo, insistentemente, a dialogar comigo. É um diálogo franco e, de fato, inexistente. Sempre que tento assumir a função de meu próprio interlocutor, uma súbita impressão de escárnio de mim mesmo me faz parar, e aí calo. Toco a metade de meu dedo indicador direito, verticalmente fixo, na metade de meus lábios, como a pedir silêncio a minha insensatez. Taciturno, faço vir à memória de um tudo.

É por isso, e tanto mais, que ando sempre atrasado. Demoro a escrever e quando decido o faço tão pausadamente que chego a aprender de cor todo o texto. Por exemplo, se medido o amor que tinha por meu tio Moisés Zagury, há muito me obrigava a ter escrito. Mas minha inércia não é voluntária e, por isso, não a criminalizo. Não há relação entre o tempo da morte e o tempo de escrever. A relação é de amor e é eterna. A morte e a palavra, ao contrário de mim, não se atrasam. Além disso, em minha vida andam juntas, nem que seja só em minha vida. Isso já aprendi, porque as sinto frequentemente, desde criança, tanto a morte quanto a palavra.

E é desde criança que lembro do tio Moisés. Lá, estive muitas vezes no colo. Pensei que adulto isso não mais aconteceria, mas aconteceu até a última vez que o vi. No aeroporto, quieto em uma cadeira de rodas, ele ia. Tinha um olhar paciente, de contemplação, de reverência a Macapá e, sem que ele percebesse, eu em seu colo observava obcecadamente cada movimento dos olhos, queria traduzir e imortalizar aquele momento. Não consegui e até hoje tento imaginar o que o tio Moisés dizia pra cidade. Acho que tudo, menos adeus. Macapá e o tio eram inseparáveis. Essa era a terra dele e ele o homem dela. Isso é inegável. Por baixo das anáguas de Macapá ainda velejam o líquido de ambos: do tio e da cidade.

O tio conheceu a cidade cedo. Ele, moço. Ela, moça. Daí, foi um passo para ser o abre-alas dela. Tinha dom. Rascunhavam-se incessantemente um ao outro. Eu os vi várias vezes passeando, trocando carícias. Ela costumava cantar para ele, enquanto ele fabricava um xarope de guaraná. O Flip. Flip guaraná. Dentro de cada garrafa havia um arco-íris. A fórmula era segredo do tio e da cidade, e até hoje o é. Por isso, só o tio conseguia pôr arco-íris em uma garrafa de guaraná. Acho mesmo que o Flip era feito da seiva da cidade. Eu o Tomava gut gut.

O Flip não foi só o primeiro guaraná produzido aqui. Não foi também só a primeira indústria. O Flip, me conta a memória, foi o cenário auditivo mais preciso de minha lembrança. Era a propaganda que anunciava promoção de prêmios a quem encontrasse no guaraná, além do arco-íris, o desenho de um copo no interior da tampinha da garrafa. O copo, sinceramente, não era minha grande ambição. O sabor estava mesmo na propaganda que vinha pelas ondas das rádios Difusora e Educadora, se bem lembro. Era o som de um copo quebrando, esquadrinhado por uma indagação seguida da solução: “Quebrou?. Flip dá outro”. E dava mesmo.

Não sei se por ingenuidade da infância ou ignorância, o que aquele sorteio me fixou é que tudo era substituível. Se o copo quebra, Flip dá outro. Se a bola fura, Flip dá outra. Se a moda não pega, Flip dá outra. Se o tempo passa, Flip dá outro. Se o ar falta, Flip dá outro. Se o amor acaba, Flip dá outro.

Não me cabe agora eleger um culpado pela singeleza de minha compreensão da vida. Fico cá a suspeitar do arco-íris, e nem por isso me zango. Se me fosse permitido optar entre a idade madura e o arco-íris, escolheria o arco-íris sem piscar. Mas isso não é possível, agora eu sei. A bola fura, a moda pega, o tempo passa, o ar falta e o amor acaba. Tudo, é claro, por falta do Flip.

É um desconforto viver sem Flip. Todas as vezes que a vida me recusa, eu lembro do Flip. Mesmo assim, não digo nada a ninguém. Chamo num canto os arco-íris que conservo desde tanto, faço mimos, beijo os olhos, o rosto, e sossego. Vem sempre uma chuva fina. Eu me molho e a guardo. Guardo muitas chuvas. Quando se guarda bem guardadinha, a chuva não dói. Só dói é saber que Flip não dá outro. Poxa, quanta saudade do meu tio.

Ruben Bemerguy

Uma crônica baseada em baseados reais – Crônica de Ronaldo Rodrigues

GinoflexForever

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Mais uma história verídica quase ficção do meu amigossauro Ginoflex Vinil.

Tocou o celular, eu atendi:

– Alô.
– Fala, Ronaldo!
– Fala, Gino. Qual é o papo?
– Tá rolando uma festinha aí na tua casa?
– Não é bem uma festa, só uns amigos reunidos. Fizemos aquela coleta básica e compramos umas latinhas.
– Eu posso ir praí?
– É… Pode! Mas olha lá, hein! Tu vais trazer algum amigo contigo?
– Vou. O senhor sabe que eu sempre levo alguém.
– Mas quantos tu vais trazer?
– Calma, Gabiru! Relaxa! Vou levar dois.
– Dois? Tá legal. Pode vir.

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Desliguei o celular e me reuni aos três amigos que conversavam e bebiam no pátio de casa, lá no bairro do Trem. Fiquei um pouco apreensivo porque eu sabia que o Ginoflex costumava SE convidar para as reuniões de farra e aproveitava para convidar muita gente. Eu estava pensando nisso quando o Ginoflex apareceu dentro de um carro com mais cinco pessoas. Ao lado, parou outro carro, este com seis pessoas dentro.

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Ginoflex e Ronaldo Rodrigues

O Ginoflex, com aquele jeito todo à vontade, foi logo me apresentando a galera. Na discreta, chamei o Ginoflex para o lado:

– Porra, Gino! Eu falei que não era uma farra grande e tu disseste que só ia trazer dois amigos!
– Calma, Gabiru! Eu falei que ia trazer dois! Dois carros!

Eu compreendi e sorri com mais uma do Gino. Já ia me recolher ao meu canto quando ele, abrindo um pacote de uma erva (que eu não vou dizer aqui), falou com a cara mais sem-vergonha deste meio do mundo:

– Mas eu trouxe outras coisas também, Gabiru!

Aí demos início ao ritual de boas-vindas. Se é que me entendem.

BLEQUEFRAIDA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

No Carnaval deste ano, a Blequefraida, filha do vizinho, pulou a cerca e foi conferir no quartinho de trás de casa se eu era mesmo bom de cama como diziam por aí. Ela ia desfilar no Piratão, uma escola de samba lá do Trem. Estava toda arrumada e linda, era uma das passistas. Iria de tapa-sexo.

Fiquei um tanto abalado com essa história, juro. Eu nunca fui de me gabar e nem tinha as medidas sexuais que rolava na lenda urbana sobre minha distinta pessoa. Hehehe! Mesmo assim eu mandava bala sem grandes esforços. A Bleque que o diga.

Mais tarde eu fui até o sambódromo porque iria sair em outra escola, uma de acesso, lá do meu bairro, o Jacareacanga, convidado pelo presidente Costa Barriga.

Antes de iniciar o desfile fui bisbilhotar as outras escolas para ver a organização das alas. Na frente do portão encontrei com ela, justamente conversando com Laive, uma destaque dessa escola. Essa mulher escultural saía em todas as agremiações carnavalescas.

Eu já tinha passado a rola nela, tinha namorado com ela, ia até em restaurante jantar. Tu é doido, é? Ela me meteu um chifre sem tamanho. Até hoje ando meio corcunda por causa isso. A Laive era muito viva, mano. Se casou com um ex-padre de família tradicional de Macapá, pensando que ia se dar bem, mas se deu mal depois, Pensava que o ex-religioso ia ter uma puta pensão da Santa Madre Igreja. Era uma ninfomaníaca. Malandra que só.

As duas conversavam sambando. Eu me aproximei e elas sorriam com aquelas bocas glamourosas cheias de lindos dentes brancos. Pediram-me uísque. Queriam um “esquenta”. Sabiam que eu trazia um cantil de aço inox tei-tei de Buchanan’s no bolso. Dei a elas e quase que eu fico sem um gole.

Laive pegou o beco e Bleque ficou ali se lembrando da foda da tarde, querendo mais.

Fui embora para o fim da concentração descendo a ladeira da avenida. Falei com muita gente conhecida. As mulheres me puxavam e eu tive que me desvencilhar delas porque senti a barra pesada no olhar dos homens ali perto.

Meu brother Estandibai me avisou que era praeu chamar o pessoal da Harmonia. A escola não demoraria a entrar. Ajudei a organizar as alas. Senti a mão da baixinha Delívere na minha costa. Me avisava que Naice, Vaibe e Loquinalda ainda não haviam chegado.

– Puta merda, Estândi! Reclamei. – E agora, cara? Como é que a gente vai fazer se elas não aparecerem?

– Sei não, chefe. Ele me encarou, com aquela cara de porre permanente.

– Fala com o Émersom Cupu pra ele ligar pressas porras agora, senão o carro vai sem destaques e aí já era.

Ele saiu cunscascos atrás do Cupu. Voltou dizendo que o Cupu falou que as destaques não eram de responsabilidade dele.

Nem pensar em falar com o presidente que a essa altura estava no carro abre-alas mandando beijinhos pra nossa minguada “torcida organizada”, diz-que.

Um pouco antes dos portões se abrirem para a entrada da nossa escola avistei a gostosona da Laive conversando de novo com a não menos gostosona da Bleque. Elas já haviam desfilado na primeira escola. Chamei as duas e disse que elas iriam ser nossos destaques no último carro. Elas toparam, queriam aparecer, mesmo… Eu e Delívere passamos uns brilhos com nossas cores nos corpos delas e em seguida os guindastes as puseram no alto do carro.

Quando, enfim passamos pelo portão e os seguranças não deixaram ninguém entrar, ainda deu pra ouvir os impropérios das destaques e seus braços varando pelas grades num último esforço de querer entrar.

Ao final do desfile encontrei o presidente com câimbra na boca de tanto sorrir e mandar beijinhos para a torcida e para os jurados, Estandibai bêbado que só a porra estirado em cima do carro abre-alas e as três destaques esperando a desocupação do último carro. Continuavam gritando vitupérios para mim e para as duas destaques arranjadas de última hora.

O presidente Costa veio me falar que até perdoava a minha “louvável atitude” de substituir as destaques. As oficiais não desfilaram porque o táxi em que vinham não conseguiu o acesso nas ruas para chegarem a tempo. E porque demoraram para se montar.

– Montar? Como assim? Indaguei, me fazendo de besta.

– Sim, montar. Disse o presidente Costa Barriga. – Elas são gays, são transformistas. Elas se montam. E o nosso enredo, Ó pateta, é sobre as diferenças sexuais. Sobre o sentimento dessas pessoas. Se não desse prelas virem no carro, ele devia vir vazio. Disse, aborrecido, olhando para mim e em volta, no que foi muito aplaudido pelos participantes do desfile.

– Presidente, quero que tu te fodas. Não vou ficar aqui neste palanque de viado. Nem vou mais te apoiar para vereador. Disse a ele bem enfático, com todo o meu orgulho e machismo.

Saí da dispersão com Laive e Blequifraida sob vaias, tapas e ameaças, coberto de lama que nos jogaram. Havia chovido antes do desfile. Felizmente, no meio da turma que nos vaiava, tinha umas pessoas que conheciam minha fama e nos protegeram de levar mais porrada.

Fomos a uma padaria, a pretexto de tomar café e nos limpamos da lama. Depois consegui pegar um taxi e fui com elas beber uísque em casa, transar e dormir, nós três.

Acordei pensando em aceitar o convite da vizinha para sair no Piratão no próximo ano, desde que junto com a Laive, a gata que voltei a me apaixonar para com certeza ser corneado de novo.

 

Cidade Lançante – Crônica de Fernando Canto – @fernando__canto #Macapa266Anos

Foto: Floriano Lima

Por Fernando Canto

Esta baía é uma grande gamela de líquidas contorções, ondas que bailam sob a música do vento.

Esta baía não guarda mais o sangue inglês do comandante Roger Frey que pereceu sob a espada implacável do capitão Ayres Chichorro a 14 de julho de 1632, um dia claro, aliás, de verão amazônico, quando o sol derretia naus e o piche dos tombadilhos. Nem o sol, nem o vento, nem o oceano lá adiante cogitavam que naquela mesma data, dali a 157 anos o povo francês tomaria a Bastilha.

Na margem esquerda deste rio imensurável uma floresta úmida abrigava uns seres esquisitos, cabeludos e cheios de penas coloridas que os portugueses conheciam por Tucuju, Tikuju, Tecoju ou Tecoyen. Segundo ensina a mestra Dominique esse era um povo de origem Aruaque, ocupante da Costa Sul do Amapá que se tornou aliado dos holandeses, dos franceses e dos irlandeses. Por isso foi atacado impiedosamente por uma expedição do desbravador Pedro Teixeira no ano da graça de 1624. Sua história, no contexto da nossa, dá conta que após a façanha do capitão português esse povo procurou abrigo no Cabo do Norte, mas foi reduzido pelos jesuítas a uma missão no baixo Araguari e pelos capuchinhos no baixo Jari. É provável que um pequeno grupo tenha sobrevivido ao sul do município de Mazagão até o início do século XIX. Desse pequenino grupo restaram apenas as cinzas do tempo e um soluço quase imperceptível que morre a cada segundo na agonia de todos os silêncios.

Foto: Max Renê

Esta baía guarda estranhos segredos: uns são contados em língua morta, quando o hálito da madrugada sopra depois que a lua assim determina. Esses são de difícil entendimento. Os outros pairam nos escaninhos dos tabocais ou na boca das pirararas. Dificilmente serão contados.

O estuário deste rio dadivoso acelera a corrente de 2,5 quilômetros por hora para jogar no oceano cerca de 220 mil metros cúbicos de água por segundo. O inacreditável é que apenas o desaguar de 24 horas daria para abastecer de água potável uma cidade superpovoada como São Paulo por quase 30 anos. Números são números, diria o matemático. Nessa foz está a redenção de nossa terra, diz o sonhador sem perder sua utopia. Do barro e dos detritos aluviais se faz a vida. E ela está ali dentro das águas à espera da sustentação das mãos trabalhadoras.

Foto: Juvenal Canto

Esta baía não se faz só de águas e barcos deslizando ao sabor das ondas. Ela abriga uma pequena joia nascida sobre a várzea dos aturiás, velada há dois séculos por uma fortaleza plantada em cima de falésias.

Macapá, velho pomar das macabas, carrega dentro de si a similitude de um éden tropical das narrativas dos antigos viajantes, até por ser banhada por tantos líquidos e cheiros advindos diariamente pela chuva refrescante e pela espuma das lançantes marés.

Foto: Floriano Lima

Macaba, Maca-paba:gordura, óleo, seiva do fruto da palmeira, vida e princípio desta terra, posto que a sombra traz a ternura e contrasta com o benefício da luz que se espraia por glebas de esperança.

Antiga terra da maleita e da febre terçã. Terra do “já teve” já não és. Mas alguns homens ainda jogam em teu traçado xadrez e, silenciosos, manipulam segredos e conspiram contra ti, a degradar-te e degredando teus verdadeiros sonhos e tua vocação para o abrigar da vida que se espera. Mesmo assim a felicidade bem insiste em se hospedar em ti.

Foto: Juvenal Canto

Embora batizada com nome de santo – especialíssimo no panteão católico – teus habitantes não ficam isentos dos perigos: pés se torcem ou se fraturam todos os dias nos buracos das ruas outrora bem cuidadas.

Agora eu fico aqui me perguntando: por que quando te fundaram ergueram um pelourinho? – “Símbolo das franquias municipais”, dirão os doutos e sisudos professores. Ora, quantos homens não castigaram seus escravos até à morte após a partida do governador Francisco, porque estes aproveitaram para fugir durante a solenidade.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Um tralhoto viu e contou ao Mucuim que diz-que o Ouvidor-Geral e Corregedor Paschoal de Abranches Madeira Fernando tomou um porre de excelente vinho do Porto ofertado a ele nesse dia pelo plenipotenciário capitão-general Mendonça Furtado, que daqui zarpou para o rio Negro para demarcar as fronteiras do reino, a mando de Pombal. Foi um dia de festa aquele 04 de fevereiro de 1758, porque nasceu naquele instante a vila de São José de Macapá.

E ela cresceu e se fez linda e amada, pois os caruanas das águas vez por outra rondam em espirais por aí, passeando em livros abertos, nos teclados dos computadores, pelas portas e pelos filtros dos aparelhos de ar condicionado, nos protegendo das agruras naturais e das decisões de homens isentos do compromisso de te amar.

Parabéns, Macapá!

* Texto escrito em 2001.

Minha mais que maravilhosa mãe, Maria Lúcia, gira a roda da vida pela 70ª vez. Feliz aniversário, amor!

Maria Lúcia, minha mais que maravilhosa mãe, gira a roda da vida pela 70ª vez (com rostinho e astral de quem vive a eterna juventude) neste terceiro dia de fevereiro. Sempre escrevo textos de felicitações para meus afetos, mas para mamãe é sempre mais difícil, pois a maior responsabilidade está sempre nos nossos maiores amores… mas vamos lá. Afinal, nunca fui de economizar em declarações de amor.

Mamãe é um exemplo de perseverança, obstinação e amor que moldou sua jornada. Agradeço sempre a Deus a sorte e honra de ser seu filho. Para mim e Emerson, meu irmão, Lucinha sempre deu tudo que há de melhor nela. É difícil contar toda essa história em um só texto de aniversário.

Mamãe também é vó coruja e amorosa da pequena Maitê, esposa parceira do Enilton, amiga fiel e de quem tem a sorte de ter sua amizade.

Orientadora educacional e professora aposentada, mamãe trabalhou muito, desde bem novinha, para vencer na vida. Ela conseguiu e batalhou muito para dar o melhor para seus filhos, sua mãe e seus irmãos.

Essa senhora de 70 fevereiros, carrega o peso da vida com a graça de quem aprendeu a dançar com o tempo. Maria Lúcia desafiou o destino e esculpiu seu próprio caminho.

Esta mulher, bruta e amorosa ao mesmo tempo, carrega em si a dualidade que permeia a condição humana. Sua teimosia é como um escudo que a protegeu nas batalhas diárias, enquanto sua obstinação foi a chama que a impulsionou a ultrapassar limites. E em meio a tudo isso, seu coração, fiel e vencedor, pulsou com o ritmo da dedicação incansável.

Difícil contabilizar tudo que ela já fez por mim e pelo meu irmão. Aliás, muito mais por mim, seu filho mais velho. A nossa “Lucinha” é uma mulher espetacular e admirável. Ela personifica os amores que tem e realmente faz valer seus dias por cada um de nós.

Mamãe é íntegra, honesta, inteligente, batalhadora e decente. Lucinha sempre foi a luz do meu caminho e o amor que sempre zelou por mim. Ah, ela tem a reza mais forte que conheço e quando tenho problemas, peço suas orações. Sempre sinto que sua oração e bênção são mágicas poderosas e me protegem.

Dela, herdamos atitude e firmeza. Eu e Emerson talvez não fôssemos trabalhadores e todo o resto de coisas legais que nos tornamos, se não fosse por conta da Lucinha. Ela é meu anjo da guarda, minha conselheira e benzedeira, inteligente e sábia. Além de melhor cozinheira do mundo. Ela sempre foi e sempre será minha melhor amiga. Se tem uma coisa de que me orgulho nessa vida, é de ser seu filho.

Em resumo, completa 70 anos neste terceiro dia de fevereiro, minha amiga para todas as horas e a pessoa que mais fez por mim durante meus 47 verões. Mamãe sempre foi meu farol na tempestade, sempre me guiou com sua luz pelo labirinto da existência.

Mãe, que Deus continue a lhe dar saúde. Que os anos se dobrem à sua frente e que tua vida seja longa. Que a senhora siga com essa sabedoria, sexto sentido e alegria (e brabezas) que lhe são peculiares, pois a jornada é seguramente mais porreta porque tenho o seu amor. Nossas existências se cruzaram nesta e espero que assim seja nas próximas vidas. Te amo, Lucinha. Feliz aniversário!

Elton Tavares e Emerson Tavares (pois como irmão mais velho, posso falar pelo Merson).

Baiano e os novos caetanos – Por @giandanton

Por Gian Danton

Baiano e os novos caetanos era um quadro de humor do programa Chico City que satirizava a tropicália. Composta por Chico Anysio (Baiano) e por Arnaud Rodrigues (Paulinho Boca de Profeta), a dupla fez muito sucesso, o que levou ao lançamento do disco Vô bate pra tu, em 1974. O disco era não só uma sátira, mas também uma homenagem a Caetano Veloso e Gilberto Gil, que na época haviam sido exilados pela ditadura militar.

A música de maior sucesso do disco (Vô bate pá tu) fala justamente da delação de artistas no período. Além disso, havia até mesmo crítica ao milagre econômico, como em O urubu tá com raiva do boi.

A parte humorística fica por conta principalmente dos comentários ácidos e non-sense de Chico Anysio, que lembram as falas de Caetano e Gil.

Na música Cidadão da Mata, Chico fecha com o discurso, cheio de humor e de duplo sentido: “Amo, amo a mata! Porque nela não há preços. Amo o verde que me envolve… o verde sincero que me diz que a esperança, não é a ultima que morre. Quem morre por último é o herói. E o herói, é o cabra que não teve tempo de correr…”.

Em O urubu tá com raiva do boi, ele diz: “O norte, a morte, a falta de sorte… Eu tô vivo, tá sabendo? Vivo sem norte, vivo sem sorte, eu vivo… Eu vivo, Paulinho. Aí a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’

E ele diz pá gente: ‘Tudo bem!’ Não é um barato, Paulinho? É um barato…”. Uma fala ao mesmo tempo humorística, profunda e non-sense.

Apesar de ser uma sátira, o disco ficou tão bom que fez enorme sucesso e levou seus autores a uma turnê pelo Brasil. Explica-se: além da humor e das letras engajadas, havia os ótimos arranjos musicais. De certa forma, pode-se dizer que Baiano e os novos caetanos era tão bom que pode ser incluído entre o melhor da tropicália.

Meu comentário: tenho 43 anos e lembro bem disso. Inclusive, minha tia Maria Penha tinha esse disco. Muito porreta!

Ouça aqui o disco completo:

Fonte: Ideias Jeca-Tatu

Nostalgia Plástica – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Na volta de uma viagem perguntei ao meu neto de três anos se ele tinha sentido saudade. Ele disse que não sabia. Insisti: – Você sabe o que é saudade? Ele respondeu-me que era “uma coisa errada” e correu para me mostrar as novidades e as experiências que adquiriu nos dois dias de minha ausência, encerrando o assunto.

Minha pergunta estava eivada de preocupação, após mergulhar num sentimento raramente sentido: o da nostalgia, ocorrida no lugar para o qual viajei. Para algumas pessoas ela acontece como uma espécie de dor voluntária, causada pela vontade de estar no passado, vivendo uma vida prazerosa e feliz. A nostalgia é um tipo de dor do exílio, da vontade de voltar ao lugar de origem depois de um longo período obrigado a morar em terra estrangeira, e não se adaptar a ela, segundo rezam os dicionários. Para outras pessoas ela é mais dura. È uma melancolia que demonstra claramente um estado de tristeza e de languidez, por desgosto ou pesar, que pode evoluir para um processo mais sério em nível de afecção mental, inclusive com a perda do interesse pela vida, com tendência ao suicídio e delírio de auto-acusação.

Mas calma lá. A melancolia é uma coisa. È um estado mórbido que leva a situações inconseqüentes e irreparáveis como o suicídio. A nostalgia é a palavra que usamos para suavizar a melancolia. É como a saudade de algo ou alguém, de pessoas ou de coisas distantes. É uma “lembrança nostálgica”, que ocorre de forma leve e suave, mas que carrega seguramente um inevitável desejo de tornar a vê-las, pegá-las, possuí-las.

Humberto Moreira

Por essa situação passamos todos nós. Eventualmente enxergamos pessoas que não vemos há muito tempo e quando elas passam, ao longe, sem saberem que estamos ali, em certo lugar, temos vontade de falar com elas. Entretanto somos impedidos por algum obstáculo, por alguma barreira física. Só nos resta, então, lamentar que nunca mais as veremos. Fica um buraco no coração, uma sensação de vazio, de frustração. A nostalgia é plástica a meu ver. Eu dou a ela a expressão que quero: formas e cores, linha e volume.

Não quero aqui entrar na questão dos acontecimentos pessoais que levam as pessoas ao suicídio, assunto de patologia social de alta morbidade em nosso Estado, considerando as estatísticas bolerianas amplamente divulgadas nos jornais de Macapá. Quero, sim, dizer o quanto essa questão pode balançar a vida e os conceitos sobre o mundo e as pessoas.

Devo contar que o radialista Humberto Moreira certa vez foi visitar um amigo no Rio. Caminhando pela Avenida Rio Branco ele percebeu que era seguido por um sujeito corpulento de camisa “tremendão”. Pens

ou: “Tô assaltado”. Mas conseguiu driblar o marmanjo. Olhou para os lados e seguiu adiante. Quando estava chegando a seu destino sentiu o toque nas costas e se preparou para entregar a carteira. De repente ouviu do suposto assaltante: “Tu num é o Humberto Moreira da Bola é Nossa?” Humberto sentou pálido, embaixo da marquise do edifício da White Martins e se comoveu com a chorosa história do rapaz, que era de Santana, seu fã, que o conhecia da televisão. Estava há mais de um ano sem ver uma cara conhecida no Rio de janeiro.

Creio que meu neto está certo, pois as crianças são certeiras. A saudade é mesmo uma coisa errada. Mas a nostalgia, essa sim, é plástica.

*Texto de 2017, republicado. 

Sobre Macapá, Mazagão e meu avô, João Espíndola – por Bellarmino Paraense de Barros

 *O texto é de 1997. O recorte de jornal foi um presente da minha amada tia Maria Conceição (A “Penha”). Adorei a forma que o senhor Bellarmino redigiu e contextualizou os fatos para enaltecer a pessoa do meu avô, falecido um ano antes do autor escrever esse belo registro. 

Parabéns para mim nesta data querida – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Autor do meme: Pequeno

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Se algum dia um grupo de extraterrestres chegar, entre amigos, conhecidos e familiares, companheiros de trabalho ou de farra, e perguntar por mim sem dizer meu nome, apenas algumas caraterísticas, quem poderá informar?

O líder dos extraterrestres vai perguntar assim:

– Vocês conhecem esse cara?
• Nasceu em Curuçá, no Pará, em 17 de janeiro de 1966.
• Se criou em Santa Maria das Mangueiras de Belém do Grão-Pará.
• Hoje mora em Macapá do Meio do Mundo, se tornando, assim, um amaparaense.
• Escreve, desenha e lê bastante, não necessariamente nessa ordem.
• Rói unha desde que habitava o útero materno.
• Gosta de estourar plástico-bolha.
• É viciado em palavras cruzadas.
• Perfume? Só usa Leite de Rosas.
• Usa alpercatas frequentemente.
• Usa meias por vezes extravagantes.
• Não gosta de pizza.
• Não curte pets. Aliás, curte, desde que estejam beeeemmm longe.
• Não dirige carro. Nem moto. Só bicicleta, mas não sabe soltar as duas mãos. Bicicleta é seu veículo preferencial.
• Bebe muito, de preferência cerveja.
• Fuma muito. Até cigarro.
• Fala muito palavrão.
• Videogame? Nada! Joga somente paciência. E de um naipe só.
• Não se dá bem em jogo nenhum: futebol, vôlei, natação. Nada disso. Joga um pouco de xadrez e bilhar, mas sua estratégia consiste apenas em dificultar a vitória do adversário.
• Não sabe dar aqueles assovios fortes, como a maioria dos moleques de sua geração.
• É do país do futebol, mas é muito ruim de bola.
• Já brigou algumas vezes, mas só aprendeu a apanhar na vida.
• É cheio de TOCs e manias. Não pode ver sandália emborcada, por exemplo.
• Odeia supermercados e não frequenta shoppings.
• Detesta fazer compras, pois evita ao máximo qualquer relação comercial entre pessoas. As únicas coisas que gosta de comprar: livros e revistas. Antigamente, CDs de música.
• Não vê mais televisão, séries, filmes, novelas, noticiários, futebol, programas de auditório, podcasts. A intenção é retornar ao primitivo. Um dia, lá no futuro, já que hoje ainda não dá, vai abrir mão de toda a tecnologia. Vai largar a internet, a futilidade das redes sociais e o tatibitate do WhatsApp. Vai sair de todos os grupos, já que se acha capaz de ser burro sozinho.
• Já foi cabeludo. E careca. E cabeludo. E careca. E cabeludo…
• É destro, mas adoraria ser canhoto. Acha mais charmoso.
• Usa óculos, mas não escuros.
• É capricorniano, mas não liga pra isso.
• Há mais de 30 anos, exerce a profissão de redator publicitário. Isso mostra que ou ele entende mesmo disso ou está enganando muito bem.
• É filho da dona Darlinda e do seu Rodrigo, irmão do Reginaldo, da Ronilda, Renilda, Socorro e Fátima.
• É pai do Pedro, com Maria Lídia, e do Artur, com Patrícia Andrade.
• Não serve de exemplo pra coisa alguma.
E aí? Alguém pode informar?

Aí imaginei alguém respondendo:
– Rapaz, vi uma pessoa assim um dia desses! Mas o que aconteceu? Por que vocês estão procurando?
– É que hoje é aniversário dele e temos uma surpresa.

Aí mostraram um bolo imenso, no formato de um disco voador. Foi quando saí do meu esconderijo e me revelei aos meus irmãos ETs. A partir daí a festa começou e só vai acabar quando eles retornarem à Terra novamente para me levar de volta ao meu planeta originário. Até lá, vamos de festa:
– Parabéns para mim / Nesta data querida / Muitas felicidades / Muito anos de vida…

E segue o baile!

Inteligência primordial – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sabe esse negócio de Inteligência Artificial? Pois é! Estou a fim de entrar na era da Inteligência Primordial, a primitiva, aquela que dispensa o uso de aplicativos. Funciona assim: vamos nos desligando. No falar deste tempo, nos desapegando desses produtos que nos deixam conectados.

Eu comecei deixando de ver televisão e tudo o que nela tem: noticiário, futebol, novela, reality show, programa de auditório, talk show… Hoje não vejo filmes, séries, podcast, stand-up, esse tipo de coisa. Minha ideia é entrar em total estado de comunhão com a natureza.

Me libertar, ainda que eu nunca tenha sido preso a isso: influencers, coachs, pastores eletrônicos ou outras malandragens, picaretagens desse naipe.

Muitas coisas me interessam, mas não estão na internet. Estão ao meu redor, sem que haja uma tela entre nós.

Pode-se dizer que eu esteja desligando os aparelhos e morrendo aos poucos. Mas pode muito bem acontecer que, daqui a um ano, mais ou menos, eu esteja me comunicando por telepatia. Sim. Retorno às raízes, tudo isso.

Retorno ao primitivo, ao intuitivo. A comunhão com o planeta, dispensando a vulgaridade de parte da população que o habita, deixando apenas a essência das pessoas que valem a tentativa. Os momentos libertados de selfies, lives, likes e essa porra toda.

Inteligência Primordial. Pensem nisso. Vou terminar citando o beatle John: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas eu não sou o único”. Imagine tudo isso!