Nelson Rodrigues inventou o óbvio (centenário do gênio)


Sou um grande fã de Nelson Rodrigues e seus textos viscerais. Costumo usar a frase “a vida como ela é”, do escritor, para legendar situações do cotidiano. Hoje (23), o gênio faria 100 anos de idade. Como eu não consegui escrever nada a altura do mestre, resolvi publicar o texto abaixo, do Jabor, com vocês. Leiam:

Nelson Rodrigues inventou o óbvio

Os 100 anos de Nelson Rodrigues estão sendo celebrados por muita gente que o criticou em vida e hoje o glorifica. Tanto as depreciações quanto alguns louvores são descabidos – ele não era nem pornográfico nem um escritor aspirando à condição de estátua. Nelson adorava elogios, mas odiava os “medalhões”.

NR é importante como inventor de linguagem. A importância de sua obra está onde ela parece ‘não ter’ importância. Onde ela é menos “profunda” – ali é que se encontra uma qualidade rara. Era fácil (e justo) considerar ‘gênios’ homens como Guimarães Rosa ou Graciliano, mas Nelson nunca coube nos pressupostos canônicos. Sua obra é um armazém, um botequim geral, uma quitanda de Brasil.

Formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros ‘plásticos e ornamentais’, metido no cotidiano marrom do jornal do pai, Nelson flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via.

Uma vez ele me disse: “Se Deus perguntar para mim se eu fiz alguma coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: ‘Sim, Senhor, eu inventei o óbvio!'”

Filho do jornalismo policial, Nelson desconstruía o pedantismo tão comum entre nossos escritores.

Uma vez ele me disse ao telefone que o “problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio”: ensolarada imagem esportiva para definir literatos folgados. Até hoje, muita gente não entendeu que sua grandeza está justamente na observação dos detritos do cotidiano. A faxina que Nelson fez no teatro e depois na prosa é semelhante à que João Cabral fez na poesia. Nelson baniu as metáforas a pontapés “como ratazanas grávidas” e criou antimetáforas feitas de banalidades condensadas. “A poesia está nos fatos”, como escreveu Oswald no Pau Brasil. Pois é, Nelson também odiava metáforas gosmentas. Suas imagens não aspiravam ao “sublime”. 

Exemplos: “O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado”, “a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil”, “seu ódio era tanto que ele dava arrancos de cachorro atropelado”, “a bola seguia Didi com a fidelidade de uma cadelinha ao seu dono”, “o juiz correu como um cavalinho de carrossel”, “o sujeito vive roendo a própria solidão como uma rapadura”, “somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria imagem”, “vivemos amarrados no pé da mesa bebendo água numa cuia de queijo Palmira”, “hoje o brasileiro é inibido até para chupar um Chica Bon”.

Visto por ele, tudo boiava no mistério: os ovos coloridos de botequim, as falas dos ‘barnabés’, as moscas de velório no nariz do morto. Nelson fazia a vida brasileira ficar universal, não por grandes gestos, mas pelo minimalismo suburbano que ele praticava. E o sublime aparecia na empada, na sardinha frita ou no torcedor desdentado.

Sua obra é um desfile de tipinhos anônimos, insignificantes – nisso aparecia sua grandeza desprezada. São prostitutas bondosas, cafajestes poéticos, canalhas reluzentes, vagabundos épicos, sobrenaturais de almeida, adúlteras heroicas e veados enforcados. Ele me dizia: “O que estraga a arte é a unidade…”

Ele dava lições de arte e literatura: “Enquanto o Fluminense foi perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que deixou de ser tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões, pois a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita.” Existe coisa mais ‘contemporânea’?

Gilberto Freyre sacou sua “superficialidade profunda”, assim como André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era “a épica das irrelevâncias…” E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve um bilhete sem buscar a eternidade.

Nunca deixava a literatura prevalecer sobre a magia dos fatos. Sempre um detalhe inesperado caricaturava os dramas. No meio da tragédia, vinha a gíria; no suicídio – o guaraná com formicida; no assassinato – a navalhada no botequim; na viuvez – o egoísmo; nos enterros – a piada.

Uma vez, me contou que viu uma família esperando num hospital a notícia sobre um filho atropelado. Morreu ou não? Afligiam-se todos, vistos pelo Nelson através do vidro do corredor. Viu o médico chegar e dizer que o menino tinha morrido. “Eu vi pelo vidro. Não ouvi um som. A família começou a se contorcer em desespero. Pai, mãe, tios gritavam e, através do vidro, pareciam dançar. Pareciam dançar um mambo. Daí, eu concluí a verdade brutal: a grande dor dança mambo!…”

Nelson recusava teorias. Contou-me um episódio hilário: uma vez o Oduvaldo Viana Filho e Ruy Guerra, grandes artistas, chamaram-no para escrever um roteiro de filme sobre uma mulher adúltera. Nelson foi trabalhar com eles, mas desistiu e me disse: “Parei, porque eles queriam que a adúltera fosse para a cama do amante e traísse o marido movida apenas pelas ‘relações de produção’….”

Ele intuiu na época que a vulgata do marxismo era o ópio dos intelectuais. Foi chamado de fascista porque puxava o saco do Médici, para ver se soltava o filho preso havia anos. Eu mesmo sofri por causa dele; em 1973 ousei filmar Toda Nudez Será Castigada e dei uma entrevista na Veja em que disse que “fascismo é amplo: existe fascista de direita e de esquerda também”. Pra quê? Mandaram um manifesto à revista onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso imenso que o filme fazia “não era a missão do cinema novo”. 

Foi das grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas. Aí, meus amigos comunas tiraram o texto, “para não dar razão ao inimigo principal”, que era a ditadura, a censura. (Eu e Nelson éramos inimigos secundários, para usar o termo de Mao Tsé-tung). O filme voltou ao cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim e os generais ficaram com medo da repercussão e liberaram a exibição.

Se fosse vivo, ao ver os escândalos atuais, repetiria a frase eterna: “Consciência social de brasileiro é medo da polícia.”.

Texto de Arnaldo Jabor – O Estado de S.Paulo

Gordinho


Eu fiquei gordinho.

Não sei como aconteceu. Mas eu fiquei com aquela barriguinha de cerveja – eu que não tomo cerveja!

O homem não percebe quando engorda. É diferente da mulher que tem uma balança em seus olhos e controla seu corpo todo o dia.

O homem engorda e acredita que foi uma fatalidade, uma distração, inveja da ex.

É como um crime que cometeu e não se lembra.

Nenhum amigo avisa, a mãe nos elogia e assim nos engana, os filhos não sentem nenhuma diferença.

Eu não sei como engordei. Não sei como mudei de categoria e fui do peso galo para o peso pesado.

Vi meu corpo de lado no espelho. Havia um travesseiro na cintura. Havia uma pochete na cintura. 

Não dava mais para encolher o excedente durante as fotos. Fingir que não era comigo.

Não me levei a sério, vivia me adiando: logo emagreço de novo.

Pensava que era inchaço, dor de barriga, cólica. Mas não perdi uma grama sequer, apenas acumulava peso.

Já usava a barriga como escrivaninha para escrever, já usava a barriga como apoio para carregar objetos, já brincava de gangorra no sexo, já fazia gol de barriga.

A barriga passou a ter a relevância de um braço, o prestígio de uma perna.

Posso encontrar culpados: é que parei de fumar, é a crise dos 40 anos, é a falta de exercício físico.

Mas  a verdade é que comi absurdos nos últimos meses, exagerei no almoço e na janta e nos doces fora de hora. Engravidei quindins.

É barra, é triste. Quando o homem descobre que engordou é tarde demais. Já se distanciou dez quilos do seu peso original.

Agora só com lipoaspiração ou fossa de amor.

Fabrício Carpnejar

Escrever é a arte de cortar palavras. De que mestre das letras teria partido essa preciosa lição?

Por Armando Nogueira 


Escrever é cortar palavras. Passei alguns anos certo de que o autor dessa preciosa máxima era Carlos Drummond de Andrade. Até que um dia perguntei ao poeta. Ele conhecia, mas negou que fosse dele. Confesso que fiquei desapontado. A sentença tinha a cara do mestre Drummond, cuja prosa é um exemplo de concisão.

Otto Lara Resende desconfiava que pudesse ser de um escritor mexicano a ideia da dica preciosa. Eu, por mim, seria capaz de atribuí-la a John Ruskin, notável escritor e crítico inglês do século passado. Se não o disse, com todas as letras, certamente foi Ruskin quem melhor ilustrou o adágio, num conto antológico. É o caso de um feirante de peixes num porto britânico. 

O homem chega à feira e lá encontra seu compadre, arrumando os peixes num imenso tabuleiro de madeira. Cumprimentam- se. O feirante está contente com o sucesso do seu modesto comércio. Entrou no negócio há poucos meses e já pôde até comprar um quadro-negro pra badalar seu produto. 

Atrás do balcão, num quadro-negro, está a mensagem, escrita a giz, em letras caprichadas: HOJE VENDO PEIXE FRESCO. Pergunta, então, ao amigo e compadre: 

– Você acrescentaria mais alguma coisa?

O compadre releu o anúncio. Discreto, elogiou a caligrafia. Como o outro insistisse, resolveu questionar. Perguntou ao feirante :

– Você já notou que todo o dia é sempre hoje? – E acrescentou: – Acho dispensável. Esta palavra está sobrando…

O feirante aceitou a ponderação: apagou o advérbio. O anúncio ficou mais enxuto. VENDO PEIXE FRESCO.

– Se o amigo me permite – tornou o visitante -, gostaria de saber se aqui nessa feira existe alguém dando peixe de graça. Que eu saiba, estamos numa feira. E feira é sinônimo de venda. Acho desnecessário o verbo. Se a banca fosse minha, sinceramente, eu apagaria o verbo. 

O anúncio encurtou mais ainda: PEIXE FRESCO.

– Me diga uma coisa: Por que apregoar que o peixe é fresco? O que traz o freguês a uma feira, no cais do porto, é a certeza de que todo peixe, aqui, é fresco. Não há no mundo uma feira livre que venda peixe congelado…

E lá se foi também o adjetivo. Ficou o anúncio, reduzido a uma singela palavra: PEIXE.

Mas, por pouco tempo. O compadre pondera que não deixa de ser menosprezo à inteligência da clientela anunciar, em letras garrafais, que o produto aí exposto é peixe. Afinal, está na cara. Até mesmo um cego percebe, pelo cheiro, que o assunto, aqui, é pescado…

O substantivo foi apagado. O anúncio sumiu. O quadro-negro também. O feirante vendeu tudo. Não sobrou nem a sardinha do gato. E ainda aprendeu uma preciosa lição: escrever é cortar palavras.

TUDO O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE EX Namorado


— Ex é ver realizado aquilo que você desconfiava. Ele sairá justamente com AQUELA que gerou a briga por ciúme.

— Ex é desagradável como uma parcela a pagar do celular que foi roubado de você.

— Ex é como chocolate derretido. Não tem como colocar de novo na embalagem.

— Ex é atravessar o Natal enquanto o mundo já comemora a Páscoa.

— Ex é sentir pontada ao entrar no Facebook, no Twitter e no próprio email.

— Ex é um vírus que compromete seu computador. Perderá os álbuns na web, já que inventou de tirar a maior parte das fotos com os rostos colados.  

— Ex é quando o “tudo bem?” deixa de ser um cumprimento para realmente soar como uma pergunta.

— Ex é informar para metade da cidade onde está ele. Por uns dois meses, você ainda será confundida como porta-voz do casal. 

— Ex é uma memória atrasada. Descobrirá as sacanagens dele com a separação, pois os conhecidos e familiares não tinham coragem de contar.

— Ex é fantasma. Você  escuta sua respiração e não pode mais responder com beijo.

— Ex se torna o mais simpáticos dos seres com o fim do namoro. Não esqueça: ele está fingindo. Mas tanto faz, vai doer igual.

— Ex é repetir detalhes e palavras da despedida, mudando a ordem das frases e testando se havia alguma esperança do final ser diferente.

— Ex é desistir do futuro, viver no passado e desconhecer o presente.

— Ex é pensar pela primeira vez numa viagem longa para uma região remota em um trabalho voluntário.

— Ex é melhorar as amizades e piorar a relação com os pais e irmãos.

— Ex é ter saudade de si. E raiva de qualquer outro aborrecimento menor.

— Ex é sempre encontrar algo dele perdido em suas coisas, é sempre procurar algo seu que deve estar nas coisas dele.

— Ex é uma faxina obrigatória.

— Ex é emagrecer em uma semana os quatro quilos que tentou durante o relacionamento inteiro. 

— Ex é reaver todas as dúvidas antigas que estavam escondidas debaixo da certeza da relação.

— Ex é voltar a se perguntar: Será que sou bonita? Será que sou inteligente? Será que beijo bem?

— Ex é nascer sozinha depois de morrer a dois.

Fabrício Carpinejar

Sobre o julgamento do mensalão


Ok, o julgamento do mensalão começou. Eu acho que vale a pena colocar alguns pingos nos seus devidos “is”.

1- Sim, julgamento no STF é chato pra cacete. São milhares de páginas de processo e um bando de velho falando. Por isso que dá menos quorum que carnaval.

2- Desista de buscar “cobertura isenta” na imprensa. Ou em qualquer lugar, incluindo a mesa do bar. Isso é virtualmente impossível, posto que todo mundo tem um interesse na vida.
   
3- Veja e Carta Capital são dois bons exemplos do que eu disse acima. Demóstenes foi o 2º senador caçado em mais de um século de história e todas as revistas deram capa. A Veja fez uma mera notinha (oh, por que será?). Agora todas dão capa para matérias que analisam o mensalão, um dos julgamentos mais bombásticos da história recente. E a Carta Capital finge que não é com ela, preferindo dar capa para um ataque a um dos juízes do STF (não por acaso, indicado por um ex-presidente que agora é oposição). Ambas prestam um péssimo serviço ao que outrora a gente chamava de jornalismo.

4- Você quer fazer manifestação a favor da condenação de alguém? Boa sorte. Manifestações por aqui causam tanto efeito quanto dar bronca para um bando de panda: ninguém dá bola. E seu eu fosse você não me aliaria a nenhum político em manifestações do tipo. O acusador de hoje pode virar o réu de amanhã. Por aqui é bem comum.

5- Você quer manifestar apoio aos réus? Não faça isso. Eles não precisam da sua ajuda. Eles já têm advogados muito bem pagos para fazer o trabalho. VOCÊ não vai fazer diferença. E eu ficaria envergonhado em apoiar alguém que amanhã pode ser realmente condenado. Tenha motivos além dos ideológicos para defendê-los, pelo menos.

6- O mensalão não é uma farsa. Não sei ainda o que é, mas algo aconteceu, tá na cara. Deixe que os ministros julguem. Eu, você e seu barbeiro não temos conhecimento para dar muito palpite. Evite filosofar sobre algo que, no fundo, você não domina nem um pouco.

7- Aliás, por favor: se você quiser denunciar a “farsa do mensalão”, fique à vontade. Mas por piedade, use as letras corretas. Farsa é com “s” e não com “ç” como algumas pessoas escreveram por aí.

Gostem ou não, esse julgamento precisa ser feito. É um trabalho sujo, chato, mas necessário. Colocar políticos (qualquer um) e empresários na parede faz bem ao país. Pode não dar em nada (bem provável), mas é bom pra assustar o resto da manada.

Texto do jornalista Walter Carrilho.

O batedor de falta é um atirador de elite

Por Fabrício Carpinejar

Um time campeão pede um cobrador de falta. Corinthians tem Alex, papou a Libertadores e o Brasileiro. Palmeiras tem Marcus Assunção, ganhou a Copa do Brasil.

O cobrador de falta é o segundo capitão. O xerife do ataque. A possibilidade de salvar o jogo quando nada funciona.

É um gerador de luz nos apagões do talento. Quando a bola não quer entrar, ele surge com força ou jeitinho para impor a vantagem. Assegura tranquilidade no nervosismo das prorrogações.

É o suspiro de esperança quando não resta sopro, é o que mantém o torcedor na arquibancada durante os acréscimos. 

O cobrador corresponde a um atirador de elite, aquele que fica no telhado com a mira do rifle esperando a mínima movimentação do goleiro para surpreender as redes. 

Os melhores plantéis sempre forjaram um cobrador em suas fornalhas. Não necessitava ser um craque, desde que não comprometesse a partida.

O Atlético Mineiro dos anos 80 contou com o canhotaço de Éder. Cruzeiro dos anos 70 se valeu da potência de Dirceu Lopes e Nelinho (sua força estrondosa está exemplificada no Guiness Book, conseguir chutar uma bola para fora do estádio do Mineirão). Flamengo brilhou com Zico, Tita e Júnior. Vasco reluziu com Roberto Dinamite. O Inter esbanjou títulos com Valdomiro e Jair em sua década vitoriosa no Brasileirão. São Paulo chegou ao tri da América e Mundial com Rogério Ceni e Raí. O timão nunca desprezou a essência desse personagem predestinado: Zenon, Neto, Marcelino Carioca.

Não há título mundial brasileiro que não requisitou de um matador de falta em suas trincheiras. Em 58 e 62, Didi e Garrincha desfilaram sabedoria e malandragem. Em 94, Branco fez a diferença. Em 2002, Ronaldinho Gaúcho e Roberto Carlos revezaram os tiros de misericórdia.  A seleção brasileira de 70 alcançou a proeza de juntar cinco grandes finalizadores a distância, um verdadeiro pelotão de fuzilamento formado por Gérson, Rivelino, Pelé, Tostão e Jairzinho.

Preparar um cobrador é cuidar da validade do extintor de incêndio e viabilizar saídas de emergência imediatas. É pensar no futuro.

Falta perto da área é quase inevitável, mesmo diante da zaga mais educada (já o pênalti é um milagre, e os juízes estão cada vez mais céticos diante das encenações constantes dos atacantes).

Equipe que se preza reivindica um batedor.  Um personagem unânime no grupo, o que treina um pouco mais com o fim do coletivo.

Acontece uma falta, e não existe confusão, protesto e briga para definir quem assumirá o lance. Está definido pelo treinador desde o início dos tempos. Ele aparece de longe e com a calma de um veterano. Transpira a exclusividade e o carisma de um líder – os demais se afastam por respeito. 

Todos sabem quem ele é, devem saber ao menos, para temer. O batedor vem com seu sangue-frio pegar a bola, ajeita a redonda na grama e dispara seu petardo ou com efeito ou com violência.

O colorado está carente de um cobrador, de um coringa. D`Alessandro não vem cumprindo a missão – é irregular e instável (poucos gols em cinco anos, mal enche as mãos). O último que apareceu no Beira-Rio foi Andrezinho (hoje no Botafogo), mas ele era um reserva de luxo e nem sempre estava em campo para chamar a responsabilidade.

O cobrador não é um acessório, mas é a alma da competitividade.

No caso do Inter, que já teve uma linhagem formidável de Mário Sérgio a Rubem Paz, não desfruta sequer de um cobrador de pênalti fixo.

Isso aponta para a ausência de liderança no vestiário e de referências em campo. É a manifestação da desordem, o aviso do caos.

Definir tarefas é a principal tarefa do técnico, e deve ser a preocupação imediata de Fernandão.

A bola parada é competência num jogo feito de sorte e azar.

A importância do ato de ler (*)


Se leio, conheço. Se conheço mais é porque leio sempre.
Ler é descobrir, interpretar e ampliar a visão das coisas.
Ler é conhecer, conhecer é ler.
O ato de ler revela o mundo e dá novo sentido à vida.
Ler é ter acesso ao conhecimento do mundo.
A ação de ler é como a de alimentar-se. Corpo e alma precisam de nutrientes.
Quem quer participar ou criticar precisa ler.
Ler é lazer, é prazer, é necessidade.
Quem lê interpreta seu próprio tempo.
Toda cidadã ou cidadão participante é aquele que lê.
Cidadã ou cidadão que lê sabe de seus direitos.
Criança que lê sonha mais, pensa maior, tem mais imaginação.
Ler não cansa, faz sonhar.
A leitura é um ato necessário. Quem lê vive melhor e sabe mais.
Quem quer progredir lê mais.
Quem lê erra menos.
Ler é libertar-se.
Quem lê participa da emoção de quem escreve.

O PRINCÍPIO DA LIBERDADE ESTÁ EM DEMOCRATIZAR O ACESSO AO ATO DE LER.

(Fernando Canto)

(*) Texto publicado no informativo da Biblioteca Elcy Lacerda, s.d.

Amigos ausentes: Rubem Alves


Uma das alegrias da literatura está em que ela cria a possibilidade de estabelecer conversas mansas com pessoas ausentes e mesmo mortas. Muitos dos meus melhores amigos, pessoas com quem converso longamente, estão mortos há muito tempo.

É o caso de Albert Camus. Ler Camus é um exercício de felicidade. Poderíamos até formar uma dupla… Seus pensamentos mais pessoais não se encontram em seus livros com príncípio, meio e fim. Encontram-se nos seus diários, onde registrava os pensamentos que lhe ocorriam sem imaginar que um dia seriam transformados em livros. Muitas das suas experiências batem com as minhas.

Num certo lugar ele escreve notas para um romance: “Infância pobre. Eu tinha vergonha da minha pobreza e da minha família. Só conheci essa vergonha quando me puseram no liceu. Antes, toda a gente era como eu e a pobreza parecia-me o próprio ar desse mundo. No liceu foi-me dado comparar.”

Num outro lugar ele comenta: “Que pode um homem desejar de melhor do que a pobreza? Não disse miséria nem o trabalho sem esperança do proletário moderno. Mas não vejo o que pode desejar-se a mais do que a pobreza ligada a um ócio ativo”

Foi exatamente essa a minha experiência. Minha infância foi vivida na pobreza. A princípio grande pobreza. Depois, pobreza simplesmente. Desses anos não tenho uma única memória infeliz. Tive dores, como toda criança tem: dor de dente, dor de tombo, dor de barriga, dor de queimadura. Mas não tive experiência de infelicidade.

Minha infelicidade começou quando a vida melhorou e nos mudamos de uma cidade do interior de Minas para o Rio de Janeiro. Meu pai me matriculou num colégio de cariocas ricos. Foi então que, como Camus, senti vergonha da minha pobreza e da minha família: eu era diferente, não pertencia ao mundo elegante dos meus colegas.

Num outro lugar do seu diário, Camus registrou: “Atenção: Kierkegaarg, a origem dos nossos males está na comparação”. Kierkegaard foi um solitário filósofo dinamarquês. Os desbravadores são sempre solitários. Veem coisas que os outros não veem. Como foi o caso de Nietzsche. Kierkegaard foi meu primeiro amigo filósofo. Com ele tive longas e mansas conversas. Sua filosofia é construída em meio a uma teia de sutis percepções psicológicas.

O sofrimento da pobreza, quando não é miséria, se encontra na comparação. A miséria é diferente da pobreza. A pobreza está muito próxima da simplicidade. Simplicidade tem a ver com as coisas que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma mochila leve. A riqueza, ao contrário, é caminhar arrastando muitas malas pesadas, sem alças…

A pobreza simples é uma pobreza feliz. Feliz porque leve. É a comparação, origem da inveja, que a torna infeliz. Camus e eu experimentamos a infelicidade da comparação na escola. Mas hoje não é preciso ir à escola para sentir a sua maldição. Basta ligar a televisão. A televisão é uma máquina de infelicidade, na medida em que ela nos obriga a comparar. Os pobres, nos lugares mais distantes, ligam as novelas e sentem a sua desgraça. A comparação é um exercício dos olhos: vejo; estou feliz.

Trecho do livro “Ostra feliz não faz pérola”

Ana Cristina César, a Ana C.


Tenho uma folha branca / e limpa à minha espera: / mudo convite / tenho uma cama branca / e limpa à minha espera: / mudo convite / tenho uma vida branca / e limpa à minha espera”

Trajando sandálias chinesas, cabelo punk, carregando um diploma de mestrado em arte e um livro editado em Londres, Ana Cristina César chegou ao Brasil em plena década de 70, para marcar definitivamente a história da poesia contemporânea nacional. Ana C., como gostava de assinar, distinguiu-se por sua voz despudoradamente feminina e por ter criado uma obra poética nova, resultante de uma mistura de ficção e confissão.

Nascida no dia 2 de junho de 1952, no Rio de Janeiro, criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do colégio Bennet. Aos sete anos, publicou seus primeiros poemas no jornal Tribuna da Imprensa. Em 1968, passou um ano em Londres e realizou muitas viagens pelo mundo. Voltou para o Brasil transformada e formou-se em Literatura na PUC-RJ, onde mais tarde deu aulas.

Para sobreviver, fez muitas traduções, escreveu para revistas e jornais alternativos – que seriam o berço dos melhores jornalistas e ilustradores de hoje – e lançou seus livros por editoras independentes. “O Beijo”, um desses jornais alternativos, foi reconhecido em sua época como um dos mais interessantes veículos da contracultura carioca, da década de 70.


Em 1978, após finalizar um Mestrado de Comunicação na UERJ, foi mais vez para Londres, onde obteve, com distinção, o título de Master of Arts em teoria e prática literária. Ao retornar ao Brasil, fixou residência no Baixo Gávea e começou a trabalhar com jornalismo e televisão. Em novembro de 1982, pela primeira vez, ela publicou seus versos por uma grande editora: “A Teus Pés”, editado pela Brasiliense.

O livro reunia seus escritos que já eram conhecidos através de jornais (como a Folha de São Paulo), revistas e livros de tiragem limitada. O lançamento de “A Teus Pés” foi saudado pela crítica, que começou a ver Ana C. como um dos mais promissores talentos poéticos da poesia marginal carioca da geração de 70, o que as pessoas que a conheciam já sabiam.


No texto seguinte, a poeta nos ensina sobre si mesma e sobre a sua arte: “Era noite e uma luva de angústia me afagava o pescoço. Composições escolares rodopiavam, todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multidão herdada de mamãe. Era noite e uma luva de angústia… Era inverno e a mulher sozinha… Escureciam as esquinas e o vento uivando… Saí com júbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiam nas escadas íngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons eróticos povoando a sala esfumaçada”.

Com todo esse sentimento, a poeta criou “Samba-canção”, uma de suas mais belas poesias sobre o ser feminino contemporâneo: “Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhando na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz...”

Ana Cristina César demitiu o verso e a própria vida numa tarde de sábado, dia 29 de outubro de 1983. Tinha 31 anos quando se suicidou, se jogando pela janela de seu apartamento. Quarenta minutos antes de sua morte, Ana C. conversou pelo telefone com o poeta Armando Freitas Filho. O poeta, logo depois que recebeu a notícia da morte, soube que havia uma carta destinada a ele. Nela, havia brincadeiras, digressões sobre a poesia e a vida, histórias de namoros falidos ou mal começados, comentários ácidos sobre tudo e todos em uma só trama, que fez com que Armando Freitas Filho a definisse da seguinte maneira: “Ana Cristina foi uma ventania em câmara lenta que passou na minha vida”.

Ana C. foi a própria encarnação da modernidade. Soube ser feminina sem ser feminista, sem estar ideologicamente presa a nada. Talvez por isso, tenha morrido cedo, fazendo sobre nossa terra uma passagem permanente. O lugar que ocupa como poeta é na linha do horizonte – virtual e veloz. Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, a pedra fundamental de toda a poesia que se quer nova.

Depois de sua morte, Heloísa Buarque de Holanda e Armando Freitas Filho se encarregaram de editar a correspondência da poetisa. Nessa obra, mais do que um mero relato das experiências vividas pela artista, é possível reconhecermos o seu desejo de superar o circunstancial por meio do artifício literário. Intitulado “Correspondência Incompleta”, é composto pelas cartas da jovem poeta carioca endereçadas às suas professoras Clara Alvim, Heloisa Buarque de Hollanda, Cecilia Londres e à amiga Ana Candida Perez, entre 1976 e 1980.

A maneira apaixonada como relevava a sua vida às amigas, rouba a cena nestas correspondências. É uma obra maravilhosa, onde é possível perceber a personalidade de uma das mais sensíveis escritoras da literatura contemporânea. Ana C. transformou a mulher em texto, o corpo feminino em prosa e a vida em arte. Em suas palavras: “A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriam para sempre na distância. Parece pouco? Chão de sal grosso, e ouro que se racha. A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância. Lentes escuríssimas sob os pilotis.

Após sua morte, a reunião de seus escritos inéditos deu origem a três obras, organizadas por Armando Freitas Filho: “Inéditos e dispersos” (prosa e poesia), de 1985, “Escritos da Inglaterra” (ensaios e textos sobre a tradução e literatura), de 1988, e “Escritos no Rio” (artigos, textos acadêmicos e depoimentos), de 1993.

Mário Prata disse que “as pessoas não ficavam amigas de Ana. As pessoas simplesmente se apaixonavam por ela”. E Armando Freitas Filho: “Ana Cristina encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo – pura passagem permanente – muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é linha do horizonte – virtual e veloz.

Seu verso, que pertence à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, pedra de toque para toda poesia que se quer nova; com seus motivos e matizes estilizados que se deixam acompanhar, ao fundo, por uma brusca e inusitada melodia que parece ter sido feita pela mistura de cristais, heavy metal e tafetá.

A obra é breve, um cinema essencial, e depressa. Morria de sede no meio de tanta seda. Nunca nos esquecemos de sua paixão acesa e seca. O que mais queima: a pedra de gelo ou o ferro em brasa? Vulcão de neve. Ela não foi – ela fica – como uma fera.

Texto: Marina Várzea, escritora e jornalista.

A “Invenção Sexual” do Zé Ramos – Crônica porreta de Fernando Canto

tambor_menor
Foto: Fernando Canto

Por Fernando Canto

Todo mundo percebeu aflição do Zé Ramos naquela Quarta-Feira da Murta. O Marabaixo corria pela noite com as velhas senhoras rodopiando as saias coloridas pelo salão. O Zé suava tocando a caixa que a essa hora devia pesar uns cem quilos. Ele perguntava se chovia lá fora e se sua mulher ainda estava lá na cozinha tomando um caldo. Alguém disse que sim, então ele pedia mais um copo de gengibirra e esfolava a voz contando um velho “ladrão”, “do tempo do Ronca”, disse-me depois, pois “q12uando se entendeu” sua mãe já “tirava” todas essas músicas pelos salões da Favela e do Laguinho nas festas do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade.

A aflição do Zé dava na vista, parecia que ele estava querendo vigiar a mulher, por ciúme e insegurança, afinal só tinham se casado há dois anos. Ela era morena, jovem e bonita, vestia uma bela saia rodada e uma blusa branca de cetim ornada de rendas. Os cabelos ondulados estavam esticados para trás e enfeitados com uma rosa vermelha de plástico e umas folhas de murta presas atrás da orelha esquerda. Usava um cordão e brincos de ouro, além de inúmeros marabaixo3braceletes prateados que emitiam sons quando dançava, muito sem graça, diga-se, pois era extremamente pudica. Devia ter um corpo escultural debaixo daquela saia estampada de flores coloridas. De vez em quando tirava a toalha do ombro para enxugar o rosto suado e os olhos sem maquiagem alguma. Para isso precisava tirar os óculos de grau que lhe davam um ar sério e uma aparência austera, ainda mais com aquelas sobrancelhas densas e negras. No gesto de enxugar os olhos é que a sua beleza se mostrava por segundos. Ela nem dançava na hora do “dobrado”, a parte rítmica mais acelerada do Marabaixo, que exige dos dançarinos preparo físico e destreza. Nesse momento as pessoas que assistem a dança ao redor do salão ficam excitadmarabaixocapaas assim como os dançantes. Flashes explodem quando as mulheres gritam alucinadamente rodando em volta dos tocadores de caixa e sobre si mesmas, mostrando os trajes de baixo, enquanto os tambores rufam o ritmo africano.

Mas o Zé permanecia tocando com a evidente gastura que lhe tomava conta da alma. Ele viu a mulher ebike1 não se sossegou. Nem quando ela, num gesto de amor, foi lhe enxugar o rosto salpicado de suor. E sem perder o ritmo falou alguma coisa no ouvido dela, apontando para cima. Ela sorriu e assentiu com a cabeça. O Zé acompanhou mais um “ladrão”, entregou a caixa para outro tocador, pegou a bicicleta e a mulher e foi embora embaixo do chuvisco sem se despedir de ninguém.

No dia seguinte encontrei o Zé todo sorridente lá no corredor da prefeitura. Disse-lhe que tocava e cantava muito bem, mas que havia notado nele um comportamento completamente oposto ao que via agora. Perguntei-lhe se estava realmente bem. Ele disse que sim e depois me alucoracao-chuvagou o ouvido, me confidenciando sua vida íntima com detalhes.

Disse-me que a sua jovem esposa só gostava de fazer amor quando chovia. Era uma poetisa maluca – com todo respeito aos poetas – que adorava ouvir o barulho da chuva caindo sobre o telhado de Brasilit e se imaginava tomando banho nua, correndo pela rua, a tarada. A água era seu mundo, a chuva seu prazer maior. Só conseguia chegar ao orgasmo quando a chuva batia e escorria pelos sulcos do telhado. Quanto mais forte a chuva maior era a transa. foto-1Indaguei-lhe como fazia no verão. Ele me disse que quase acabou o casamento quando inventou um intrincado sistema hidráulico que sempre ligava nas noites quentes para enganar a mulher, jorrando água da Caesa sobre as telhas de amianto. Gastou um bom dinheiro, mas valeu a pena.

Quando ela descobriu a tal invenção ficou de mal com ele a estiagem toda, que não foi curta. Agora ele torce para que chova todo dia, assiste aos telejornais e as previsões do tempo, para descontar desde já o “atraso” que terá no próximo verão.

Dia desses encontrei com ele e seu inseparável guarda-chuva. Falei: – E aí, Zé? Estás feliz com esse toró que vem aí? Ele respondeu: – Nãão, é cuia!