Escrever é a arte de cortar palavras. De que mestre das letras teria partido essa preciosa lição?

Por Armando Nogueira 


Escrever é cortar palavras. Passei alguns anos certo de que o autor dessa preciosa máxima era Carlos Drummond de Andrade. Até que um dia perguntei ao poeta. Ele conhecia, mas negou que fosse dele. Confesso que fiquei desapontado. A sentença tinha a cara do mestre Drummond, cuja prosa é um exemplo de concisão.

Otto Lara Resende desconfiava que pudesse ser de um escritor mexicano a ideia da dica preciosa. Eu, por mim, seria capaz de atribuí-la a John Ruskin, notável escritor e crítico inglês do século passado. Se não o disse, com todas as letras, certamente foi Ruskin quem melhor ilustrou o adágio, num conto antológico. É o caso de um feirante de peixes num porto britânico. 

O homem chega à feira e lá encontra seu compadre, arrumando os peixes num imenso tabuleiro de madeira. Cumprimentam- se. O feirante está contente com o sucesso do seu modesto comércio. Entrou no negócio há poucos meses e já pôde até comprar um quadro-negro pra badalar seu produto. 

Atrás do balcão, num quadro-negro, está a mensagem, escrita a giz, em letras caprichadas: HOJE VENDO PEIXE FRESCO. Pergunta, então, ao amigo e compadre: 

– Você acrescentaria mais alguma coisa?

O compadre releu o anúncio. Discreto, elogiou a caligrafia. Como o outro insistisse, resolveu questionar. Perguntou ao feirante :

– Você já notou que todo o dia é sempre hoje? – E acrescentou: – Acho dispensável. Esta palavra está sobrando…

O feirante aceitou a ponderação: apagou o advérbio. O anúncio ficou mais enxuto. VENDO PEIXE FRESCO.

– Se o amigo me permite – tornou o visitante -, gostaria de saber se aqui nessa feira existe alguém dando peixe de graça. Que eu saiba, estamos numa feira. E feira é sinônimo de venda. Acho desnecessário o verbo. Se a banca fosse minha, sinceramente, eu apagaria o verbo. 

O anúncio encurtou mais ainda: PEIXE FRESCO.

– Me diga uma coisa: Por que apregoar que o peixe é fresco? O que traz o freguês a uma feira, no cais do porto, é a certeza de que todo peixe, aqui, é fresco. Não há no mundo uma feira livre que venda peixe congelado…

E lá se foi também o adjetivo. Ficou o anúncio, reduzido a uma singela palavra: PEIXE.

Mas, por pouco tempo. O compadre pondera que não deixa de ser menosprezo à inteligência da clientela anunciar, em letras garrafais, que o produto aí exposto é peixe. Afinal, está na cara. Até mesmo um cego percebe, pelo cheiro, que o assunto, aqui, é pescado…

O substantivo foi apagado. O anúncio sumiu. O quadro-negro também. O feirante vendeu tudo. Não sobrou nem a sardinha do gato. E ainda aprendeu uma preciosa lição: escrever é cortar palavras.
  • Faço tanto esse exercício de concisão que isso justifica a minha escassez de textos, rs rs. Não podia perder a chance da piada. Mas, é bem por aí. Faz tempo que não bebo nada e ouvir o silêncio tem sido quase impossível. Beijos!!!

  • Fantastica reflexão, se formos analisar cada frase em nosso dia a dia, com certeza inúmeras palavras seriam cortadas de nosso vocabulário.

  • Conheci esta frase no título da coluna de Armando Nogueira e ele reproduzia a história do feirante. Não lembro o autor, só que era inglês.

  • Corta palavras quem se omite no roteiro melhor elaborado. O poema admite, talvez o conto. Todavia, o romance exige a concatenação de vocábulos bem empregados, sem cortes e exageros. Escrever é tecer histórias com o fio da palavra escolhida, sonora, virtuosa e necessária.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *