Amor, louco, amor – Microconto Elton Tavares e Fernando Canto

Ao se verem pela primeira vez, ela o olhou e devaneou: “gostei desse doido”.

Por sua vez, ele, sem juízo, ajuizou: “curti essa maluca”.

E foram felizes para sempre no manicômio do Hospital das Clínicas. Fim.

Elton Tavares e Fernando Canto

Você é abençoado? Eu sou! – Crônica de Elton Tavares (ilustrada por Ronaldo Rony)

Pensando sobre sorte, por conta de nos livrarmos de situações perigosas e as portas se abrirem, cheguei à conclusão de que sou abençoado. E muito!

Significado da bênção: “quando você bendiz a alguém, também está atraindo a proteção de Deus para você. O efeito de abençoar é multiplicador, já que é dado por Deus a seus filhos. A bênção invoca o apoio permanente de Deus para o bem estar da pessoa, fala de agradecimento, confere prosperidade e felicidade em toda pessoa que a recebe da nossa parte”.

O escritor Rubem Alves, no livro de crônicas intitulado “Pimentas”, disse: “a gente fala as palavras sem pensar em seu sentido. ‘Bênção’ vem de ‘bendição’. Que vem de ‘dizer o bem ou bem dizer’. De bem dizer nasce ‘Benzer’. Quem ‘bem diz’ é feiticeiro ou mágico. Vive no mundo do encantamento, onde as palavras são poderosas. Lá, basta dizer a palavra para que ela aconteça”.

Então, mesmo quando rolam situações adversas, circunstâncias estranhas, tempestades em copos d’água ou cagadas violentas na minha vida, sempre me saio bem.

Deus, para muitos, é mitologia cristã. Para mim, é a força que rege tudo isso aqui. Afinal, cada um com suas crenças e descrenças. Mas como frisou escritor William Shakespeare: “existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

Quem me conhece sabe: não sou muito religioso. Até brinco e digo que graças a Deus, tenho uma sorte dos diabos.

Bom, só sei que, toda vez que posso, peço (ou tomo) a benção de minha mãe e avós. E de também alguns tios e tias. Talvez esses “bendizeres” sejam o fio condutor de Deus, quem sabe?

A verdade é que muitas bênçãos têm acontecido comigo ultimamente. Sei que a vida é feita de vitórias e derrotas que quase sempre dependem de nós mesmo, mas que ELE dá uma força, ah, isso dá. E no final das contas, Deus acerta um bocado e só tenho a agradecer por ser abençoado.

Valeu, God!

Elton Tavares

A Convenção – lindo conto de Natal de Fernando Canto

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Conto Natalino de Fernando Canto

O Centro de Convenções daquela moderna cidadezinha no interior da floresta era o palco de um evento religioso bianual da cristandade, de grande importância para nós, teólogos do Novo Olhar.

Após o grande processo de destruição ambiental do planeta ficamos espalhados pela terra sofrendo a ansiedade de vê-la reconstruída e fazendo a nossa parte. Levávamos aos mais necessitados uma nova forma de encarar o mundo e uma nova esperança para evitar os sofrimentos humanos causados pelos incontáveis desastres ecológicos ocorridos até em lugares onde nem se cogitava que eles pudessem acontecer.

Cientistas constataram a grande obviedade que a desgraça ocorrera mesmo devido a ganância dos detentores do capital internacional e o excesso de poder dos países ricos que tiravam a vida de milhões de pessoas pelo mundo afora, sem contar as vítimas de guerras causadas pela intolerância religiosa. Éramos poucos, mas a seriedade de cada um de nós fazia a diferença, aprofundada em detalhes interpretativos dos cânones universais contemporâneos e nos santos ensinamentos de Jesus Cristo.

Todos se esforçavam muito, participando de seminários e congressos pelo país, porque grande parte dos conhecimentos da nossa religião havia desaparecido ou queimado no mundo todo.

Ali, ao lado do grande evento, muitos acontecimentos ocorriam: feiras, espetáculos e exposições, como a de novas descobertas tecnológicas e de máquinas que respondiam perguntas sobre metempsicose e a natureza dos espíritos. Livros curiosos eram lançados e relançados virtualmente em telões, inclusive aqueles considerados sagrados que por séculos vinham intrigando a inteligência dos sábios com seus mistérios herméticos. Tumblr - AliensHavia debates intermináveis que abrangiam desde o pensamento de filósofos gregos sobre relatos de povos extraterrestres a absurdos que a contemporaneidade não conseguiu mudar.

Eu participava pela primeira vez desse encontro, e já dera minha palestra sobre a existência de Papai Noel Redivivo no Novo Mundo Amazônico e meu testemunho sobre isso em outro tema da programação, portanto estava livre de compromissos. Mas os debates continuavam em outros níveis. noelE eu fui guindado meio sem querer – e curioso – a assistir a um deles promovido pelos neoperipatéticos de Rinha, um convento de uma ordem sacra europeia. Chamou-me a atenção o denominado “Aristóteles e o Paraíso”, cujo tema central era sobre a localização geográfica exata do Jardim do Éden. Havia outro, muito singular, chamado “Dançarinos Aristotélicos” no qual se discutia sobre quantos anjos poderiam dançar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha. Os grupos de discussão seguiam um sacerdote-mestre sob as sombras das árvores na praça principal da cidade.

Aristóteles gozava de grande popularidade entre os sábios. Sobre ele corria a lenda da sua imensa alegria quando pôs as mãos em uma das penas verde-claras do anjo Gabriel, descoberta dentro de uma arca envolta em tafetá. Um grupo dizia que a partir dessa pena teria o filósofo reconstruído a pessoa do arcanjo. O grupo oposicionista, porém, suspeitava que a pena fosse proveniente da cauda de um periquito de asa branca, o que proporcionou um grande exaustivo debate entre os participantes. Após a discussão chegaram ao consenso de que a pena teria sido arrancada da asa do anjo na ocasião do seu aparecimento à Virgem Maria para anunciar a imaculada conceição. Presumiram que a própria Virgem Maria embrulhara a pena em tafetá, de modo que ela viesse a ser uma das sete maravilhas do mundo teológico. Para eles Aristóteles teria sido contemporâneo de Jesus.

Outro interessante tema de reverência religiosa que vi nesse encontro foi a respeito da unha de um querubim. Entretanto, o que chamou mais a atenção de todo o congresso bianual e que gerou a maior lotação no Centro de Convenções foi a maravilhosa descoberta arqueológica de um ataúde com acabamento em ouro e prata, onde estava ainda intacta, uma das costelas do Verbo feito carne.

Acho que aprendi muito com essa viagem. Os arqueólogos mostraram outras peças de grande valor teológico advindas de descobertas em expedições perigosas. Não era fácil expor seus nomes e conceitos profissionais e terem que viver em um mundo de fanáticos e ateus. Eles sabiam que como cientistas e religiosos ao mesmo tempo teriam dificuldades de mostrar as relíquias à sociedade e serem somente aplaudidos e reconhecidos.

Nesse meio os vulcões da vaidade explodem rápida e facilmente, e sempre há um lado invejoso e descontente. Mas não deixavam de demonstrar certa genialidade e coragem para afirmar suas convicções e prová-las. Foi muito difícil para eles, segundo seus próprios relatos, mas conseguiram encontrar um dos raios da estrela de Belém, que foi quebrado e guardado por um dos três reis magos que foram adorar Jesus em uma manjedoura, assim como a pequena garrafa de vidro, dentro da qual havia notas musicais, que teriam sido entoadas mais tarde pelas abelhas do Templo de Salomão, de acordo com as antigas escrituras não oficiais.

Mas juro pelos santos sacramentos que de tudo o que eu vi na convenção nada me impressionou mais do que as descobertas. Cometi o pecado capital da inveja, pois não consegui parar de imaginar o rei Baltazar em estado de delírio gozoso ao ver a epifania da estrela de Belém, ao adorar o salvador do mundo e a usar sua arte mágica para quebrar um raio e guardá-lo.
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Era tempo de natal e eu tinha que voltar logo para trabalhar nos preparativos da festa para as crianças órfãs da minha vila amazônica ainda em lenta recuperação ambiental. Elas estavam tão ansiosas como eu, ainda que não tivéssemos brinquedos. Contávamos apenas com a esperança e a bondade do Papai Noel. Fui embora com a humildade que cabe a um pobre missionário, saindo da civilização da cidadezinha para minha aldeia de crianças pobres e estropiadas, martelando o cérebro sobre como conseguir presentes para elas quando me deparei com um negro alto, vestido de túnica e turbante. Estava envolto em uma aura radiante.

Entregou-me um objeto dourado e disse: – Imagina e realizarás. E sumiu. Era Baltazar, o mago rei e o verdadeiro Papai Noel Redivivo das minhas pobres crianças que me dera a chave de um tesouro: um pedaço do raio da estrela-guia. Horas depois já refeito da situação olhei para as estrelas. Todas eram pequenas e brilhantes, e delas caiam ao meu redor centenas de brinquedos. Só pude exclamar: – Bendito é aquele que vem em nome do Senhor! Hosana nas Alturas!

Dezembro e a saudade (crônica republicada de Elton Tavares)

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Dezembro é sempre bacana. Lembro dos anos 90, eu e meus velhos amigos de recuperação ou já reprovados, tomando as saideiras do ano no velho Bar Xodó . Quem estudou no saudoso Colégio Amapaense quando o boteco existia lá no canto sabe do que falo.

Diziam que, da velha turma, ninguém “prestaria” pra nada. Afinal, como aquele bando de jovens biriteiros teria futuro? Sim, nós nos divertimos muito, mesmo com todos os sonhos e incertezas daquele momento. Quando não tinha grana para cerva, era rum, vodka ou cachaça. Nós éramos metidos a rebeldes (rebeldia muitas vezes sem sentido, natural de adolescentes).

Tempos de festas de garagem, estilo de vida meio Bukowski e com trilha sonora rock’n’roll, claro! Internet, Rede Social e toda essa modernidade era coisa de cinema. Eu tinha feito curso de datilografia (com o Werlen), estava aprendendo a mexer no MSDOS (programa de computador com tela preta e letras verdes) e tempos de disket. Quem tinha celular era rico e tocava sempre Legião Urbana. 

Bom, apesar de termos tomado cervas pra esta vida e para a próxima nos tempos do Xodó (ainda bebemos bem, mas não como naquela época), cada um seguiu seu caminho da melhor forma.Xodó

Só que eu, meu irmão Emerson (era o mais moleque entre nós) Walbene, Zeca (Edmar, também conhecido como poeta), Frank, Klinger, Negão (Helder), Junhão (Alessandro Rigamont Junior, Venilson, Topo (Josoelson), Rico, Juciram, Boca, Patrick, Sandro, Marruá (Lígia), Adriano (Bago), Índio (Rômulo) e Marcelo nos demos bem, sim!

Também fiz amizade com o Ewerton, Ismênia, Delano, Renato (Atayde ou Punk), Cacu (Elho), Anderson Favaceumagroho, Anderson Miranda, Newton Barata, Rodrigo (Juarez), Adelson, Zagalo, Rizandra, Jéssica, Glauci, entre tantos outros. É, fiz muitas amizades nos anos 90. A maioria delas bem sólidas e que me gabo de perdurarem após mais de 20 anos.

A maioria daquela galera formou e “vingou”. Quem não possui curso superior se garante na profissão que escolheu seguir. Claro que existem alguns que realmente não quiseram porra nenhuma com a vida mesmo. Mas isso é problema deles.xodoAlbino

Sinto saudade da velha turma, daqueles dias incríveis da nossa feliz juventude irresponsável. Mas tudo virou lembrança boa e experiência de vida, pois graças a todas as coisas bacanas e difíceis que passei naquela época, não me tornei um babaca que se norteia somente por teorias de vida. Aprendi muitos valores morais naqueles tempos.

Sim, dezembro chegou e com ele todo esse sentimento legal de fim de ano, de renovação, de esperança. E com este mês vem sempre a saudade dos que já partiram, dos amigos, dos tempos do bom e velho Colégio Amapaense e Xodó. Eu sempre escrevo sobre minhas memórias afetivas e essas estão no fundo do coração. 12400675_1957125681178307_1652223358896026548_n

Afinal, dia desses li a frase: “Saudade: sentimento do que valeu a pena”. E tomar todas aquelas cervas no bar do Albino com os velhos amigos do C.A. Valeu. E como. É isso!

Elton Tavares

*Texto republicado em todo início de dezembro e assim será enquanto eu sentir saudades de uma época mágica. 

Tu a minha espera – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto

Tu não sabes o que a açucena é além de flor? Ela é a cena do amor que eu ainda trago em mim ao te ver num palco de sonhos, dourado de luz com efeitos especiais.

Dia desses, rompido em flor de dança, quebrado de partidas e cheganças, de odores e suores, aportei neste porto que zelas a me esperar, que eu sei. Não adianta me dizer que desconheces o destino, posto que ele já estava traçado em tuas mãos de cigana desconfiada.

Grunhi um desabafo quase silencioso sobre os camburões de ferro que flutuavam no trapiche, agradeci a Deus e me encolhi diante da tua figura de mulher. Foi então que me dei conta que o coração batia duplamente: tocava um ritmo caribenho por ter te encontrado como a flor que és e, num sentido contrário, o velho Tum Tum Tum desritmado se extasiava, pleno, na quintessência que só a paixão traz, desordenada e incompreensível, quando bombeava excessivamente o líquido vital.

Foi assim que eu me fiz de peixe, e com as mãos se transformando em nadadeiras, coloquei teu anzol na minha boca.

ESTAREMOS SEMPRE JUNTOS ESTA NOITE, AMORE MIO – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto
Ao pintor Olivar Cunha

– Não duvido mais, conclui Pietro di Paolo, triste, sentado no sofá, olhando para a estranha figura da tela abstrata que parece ter ganho nova forma, novo estilo e perdido as cores mais vivas.

– Daqui pra frente vão começar as mudanças. Te prepara, amore mio. Minha intuição é mais forte que as profecias de Nostradamus.

Betsylla acende o incenso enquanto o marido mergulha em si mesmo. Deve ser para meditar e para espantar as emissões malignas que penetram naquele apartamento. O odor se espalha minando cada canto da sala. A ideia é formar uma cortina esfumaçada para conter o que virá.

Pietro di Paolo não sabe mais a forma, dimensão, peso ou qualquer referência sobre o que virá daí para frente. Sabe que dentro da tela há uma moradia, exatamente nos olhos da figura deformada exposta na parede, que se manifesta aos poucos em três dimensões.

O quadro é grande, embora sem moldura, porém tem um chassi perfeito e seguro, o que lhe dá a impressão de indestrutibilidade. Mede 2,00 x 1,50 m e ocupa a parede de forma onipresente. Para onde se anda e se observa a imagem, os olhos dela estão nos olhos do observador. Provoca uma relação de dependência, suscitando um desejo de troca, de transposição. Assemelha-se a uma técnica medieval de pintura religiosa onde os santos parecem estar sempre observando os pecados dos crédulos. Betsylla traz o chá preto que ele pediu. Não dormirá nessa noite. Ela senta junto a ele e o afaga, lhe acariciando as barbas alongadas. Prepara-se para a noite comprida como à espera da revelação de um segredo.

– Vá dormir, amore mio, ele diz.
– Não tenho sono. Quero ficar.
– Você não está preparada pra…
– Estou, sim, diz cortando a frase bruscamente. – E não tenho medo. Eu te amo, amore mio. Estaremos sempre juntos.

Ficam longo tempo sem falar. Escutam Sonata para Violín y Piano, de Mozart, tão suavemente executada por Luiz Felipe e Armando Merino. Os olhos fixados nos olhos da tela sob a luz acesa da sala onde bebem várias xícaras de chá preto e café. A fumaça do incenso se confunde com a dos cigarros que fumam incessantemente. A causa que gera a situação não pode ser uma simples patologia ocular, um escotoma, um ponto negro, uma escuridão, uma ilusão que o cérebro possa achar que é o que quer ver. Nem o efeito um carma. Pietro di Paolo e Betsylla têm lá suas certezas e experiências de vida. Conhecem o mundo todo. E sabem, sabem de muitas coisas misteriosas.

O enfrentamento é inevitável. Será uma guerra de imaterialidade. Por isso os olhos estão acesos. Não cochilam em nenhum momento. A vigília é mútua pelo compromisso assumido entre os dois. Mas em dado momento o alerta vacila.

*******

Às 08h00 em ponto a diarista abre a porta, sente o cheiro estranho no ambiente. Copos, xícaras e pires, pedaços de torradas caídos na mesa da sala, o som dos instrumentos tocando num CD player e um lençol de casal no sofá, de onde emerge um homem disforme, bocejando e se espreguiçando. Ele é magro e está com o rosto pintado como se vestisse uma máscara. Pede café a mulher, que nem se assusta mais com as esquisitices daquela casa e de seus hóspedes.

Na parede da sala há um quadro novo, de cores vivas, com o retrato dos patrões.

– Eu, hem?! Que gente esquisita, esses estrangeiros, reclama a diarista. – Vivem mudando a decoração da parede e trazendo gente estranha pra cá.

DIÁLOGO DE DOIDOS – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Há uns 16 anos, época de campanha política, anotei com uma velocidade incrível num papel de pacote de cigarros Free, esse interessante diálogo entre os amigos Walmir Capiberibe e Dinho Araújo. Só participei do início do papo para poder anotar, pois na ocasião eu não tinha um gravador. Para variar aconteceu no Bar do Abreu, em 2002.

DINHO: – Fernando, tu não achas que o ser humano, o ser humano brasileiro, tem que encontrar seu mundo aqui na terra e aprender a ser um ser humano melhor?

FERNANDO: – Hunrum!

WALMIR: – O meu negócio agora é a 3ª dimensão, é a espiritualidade.

DINHO: – Porra, de baleia.

WALMIR: – Ah, a baleia, caralho, do Alto Tapajós.

DINHO: – Vou te ralhar. (*)

WALMIR: – Tu já sabes ralhar, caralho? Eu fui convidado pra assistir a peça e fiquei muito puto. Quase que eu tiro o meu 38 e te dou um tiro no pé. Fiquei muito puto. Eu fui assistir à peça e não pegar ralho, caralho!

WALMIR: – Dinho, aquele cara, o Tutancâmon, era teu parente? A cabeça dele era igual a tua. Faz três mil anos que ele viveu e morreu na corrida de biga, maninho. O crânio dele era igual ao teu.

DINHO: – Quando a gente queria que a visita fosse embora, a gente colocava uma vassoura atrás da porta. O japonês peida.

WALMIR: – Eu pensei que ele era teu parente por causa da deformação da tua cabeça. Porra, a próxima vez que eu vir um japonês peidar, eu mato ele.

DINHO: – É cultura!

WALMIR: – Vou pedir pro meu primo, que é maior do que ele, rebentar o japonês. Vai peidar assim no Oriente. O meio do mundo tem que estar cheirando pra caralho. Um peido é foda, meu irmão! Eu vi na Internet que uma mulher foi dar um peido na boca do cara e ele pulou cinco metros de distância.

WALMIR: -Tu já pegou uma linguarada peidada? Com todo o respeito, você já pegou uma linguarada na bunda?

DINHO: – Não.

WALMIR: – Então eu vou lhe dar. Pensando melhor, não. Você vai morrer sem uma linguarada na bunda.

DINHO: – Égua da atitude nobre! O português assume o peido do cu dele e dos outros. O peido do gordo é por minha conta, disse ele.

DINHO: – Tu já viste um português fudido, pobre?

WALMIR: – São tão filhos da puta que até hoje a gente não aprendeu a falar o português.

WALMIR: – Vai fazer o teu exame de próstata, rapaz.

DINHO: – Eu não. O Severino veio de lá capengando e reclamando do toque.

WALMIR: – Era mentira desse filho da puta. Era só o PSA, exame de sangue.

DINHO: – Ah..!

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(*) Dinho Araújo é autor de um monólogo teatral chamado “O Ralho”.

PORCA – Conto de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Eu insistia com ela todas as noites de lua cheia.

– Para com essa história de se transformar em porca, mulher. Não aguento mais esse cheiro de lama.

Era um segredo nosso que tive de aceitar por pura dependência financeira, desde que nos casamos. Mas ela não parava. Queria porque queria parecer melhdownloador que a Velha Xambica, do sítio do seu Ladislau, vizinho ao nosso, que tinha o mesmo fado dela e se transfigurava em Matinta. As duas concorriam para ver quem assustava mais as pessoas desprevenidas nas noites enluaradas da minha cidadezinha.

Um dia eu estava num couro doido, numa pindaíba roxíssima. Era meu aniversário e eu vivia sempre cobrado pelos meus amigos do boteco da Waldirene Boca de Tambor.

– Quando é o churrasco, porra? Perguntavam o tempo todo, me pressionando pra valer.

Eu dizia que quporca-dente-de-ouro-480x788e ia depender da indenização que estava para receber do frigorífico que fui botado injustamente pra fora, sem justa causa. O processo estava tramitando há tempos, sempre acompanhado de perto pelo iminente causídico Dr. Robário Paladino, que me garantiu o recebimento para logo, antes do fim do mês.

Na véspera do aniversário eu não aguentei mais o fedor da minha galega. Ela havia voltado de um Passeio de Assustamento da lua cheia e estava no quintal grunhindo e chafurdando na lama do chiqueiro, antes de voltar a ser mulher. Ela dizia sempre que a transformação era um processo doloroso, mas que tinha prazer em fazer sempre, pois se achava renovada toda vez que isso acontecia.

Ela estava lá. Tinha acabado de chegar. Eu fiquei pensando, pensando, pensando… Peguei a peixeira e a enterrei no pescoço dela por trás. A porca revirou os olhos e o sangue esguichou com tanta força que me sujou toporcamortado. Estrebuchou e deu três longos e desesperados grunhidos. Enrolei a boca e o focinho com uma corda até ela parar de se debater. Depois coloquei o corpo em um camburão de água fervente para raspar os pelos, e, como bom açougueiro, comecei a preparar o corpo do animal para fazer um belo churrasco. Os raios do dia chegaram com uma intensidade que me feriu os olhos.

Fui ao boteco da Waldirene Boca de Tambor e convidei a rapaziada malandra pro churrasco. E ainda churrasco-widedizia, brincando:

– Levem um presente, seus vadios. Cheguem perto do meio-dia pra me ajudarem a assar.

Cada um se servia como podia. Eu havia trocado os miúdos da porca por cachaça e farinha com a Wal. Todo mundo se refestelou e ficou de bucho cheio. Tomaram cachaça à beça, arranjaram uns tambores e o batuque correu o dia todo. Quem chegava pro churrasco também trazia uma bebida. Mas eu não tive coragem de comer nenhum pedaço de carne, talvez em respeito à minha falecida mulher.

Já era quase meia noite e todo mundo já estava “calibrado”, tomando cachaça e dançando uns sambas de cacete. Ninguém notou a ausência da minha galegcartaz-a-matinta-perera-1998uinha, só o Ambrósio, saliente que só ele. E eu lhe disse que ela tinha ido à casa da mãe doente lá em Mazagão.

A lua rompeu uma nuvem escura e iluminou mais ainda o terreiro da festa. E o batuque ensurdecia e ecoava em toda a área.

Mas tudo parou de repente quando uma mulher idosa com bico de pássaro surgiu perto da mata onde ficava o chiqueiro da minha esposa.

– Quero tabaco, ela dizia. Quero tabaco pra levar pra minha comadre.

porcosOs convidados se entreolharam e o medo tomou conta de todos. Atônitos viram seus ventres se mexerem involuntariamente e em todos eles uma voz dizia:

– Onde está minha costela? Cadê minhas coxas? Quede meu peito?..

A lua parecia descer do céu de tão grande, naquele momento de desespero dos imagesconvivas. E todos eles saíram correndo para o mato se transformando a cada passo em caititus, porcos-do-mato, queixadas e javalis.

A velha Matinta me olhou de soslaio, cuspiu pelo bico de pássaro um cuspo negro de quem masca tabaco. Eu caí de costas no chão e tive que sustentar com os braços até de manhã a lua quase cheia que parecia ter caído em cima de mim.

O cara que queria ser dono da Lua (conto de Elton Tavares)

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Era uma vez (só pra “clichezar” mesmo) um cara que, de tão arrogante, audacioso, impetuoso e imbecil, quis ser o dono da Lua. O maluco se acha o Sol. Há tempos ele a observava e a admirava. Ela sempre teve um brilho diferente. Assim era a Lua, que de tanta velocidade imaginativa, não dormia, e ele nem sabia ainda.

Ele curtia todas as suas faces. Podia ser Lua de São Jorge, de Caetano, Lua Bonita, de Raul Seixas ou somente o “Reflejo de Luna”, do Paco de Lucia. Era realmente fascinante.

Quando a Lua apareceu, ninguém sonhava mais do que eu”, disse o tal Sol. E seguiu a cortejá-la: “Como nunca se mostra o outro lado da Lua, eu desejo viajar no outro lado da sua” ou “O sol veio avisar que de noite ele seria a Lua”. Coisas desse tipo. E conseguiu sua atenção. Parece que ela até gostou.

Ele a via como disse Fernando Canto: “Como a Lua grande, que gasta seu brilho imenso todos os meses sobre o Equador, no meio do mundo”.

Tendo a Lua, como disseram os Paralamas, ele fez Moonlight Serenade (que nem Glenn Miller), mas luar21hoje está mais para Luar do Sertão, de Luiz Gonzaga e The Killing Moon, dos ingleses do Echo And The Bunnymen.

Sim, o homem que se achava o Sol, pisou na Lua e até morou nela por um tempo feliz. Mas ele não leu em um poema da Juçara, que “A Lua não é de ninguém, pertence aos casados, aos namorados, aos arrasados, aos cantores e ao violão”. Só que ela até tinha avisado que, assim como Cecília Meireiles (e ele), tinha fases, como a Lua.

Ele tentou dominá-la e a Lua, que também é aluada, revidou. Nem um dos dois entenderam a mensagem de Bob Marley, na frase “Seja humilde, pois, até o Sol, com toda sua grandeza, se põe e deixa a lua brilhar“.

Sol ainda lembra quando ele e a Lua foram grandes amigos. Às vezes, até no espaço (ou será tempo?), o destino dá um nó(s), mas a lição é que sempre devemos desejar a liberdade a todo custo ou em qualquer Lua.

Agora, ele é como o Astronauta de Mármore, e vê “A Lua como um manto negro”, mas a falta de brilho é só saudade. Se é que se pode dizer “só”. Alguns dizem que o Sol enlouquece bêbado e uiva pra Lua até hoje, mas em silêncio.Lua

Sem vitimismo ou guerra, Sol pensa nisso tudo como explicou o sábio Drummond “Sentimos saudade de certos momentos da nossa vida e de certos momentos de pessoas que passaram por ela”. Eles nunca foram os mesmos, pois vira e mexe, vomitam escritos de quase profundo arrependimento. Sem, coragem, sabotam a si próprios.

Sol vive preso numa fenda no tempo, ancorado num mar de memórias por muitas luas. Mas luta pra zarpar, pois como disse o sabido Nelson Cavaquinho: “Eu só errei quando juntei minh´alma à sua. O Sol não pode viver perto da Lua”. Caramba! Existe vida em Marte?

Elton Tavares

Quarta-feira – Crônica de Marcelo Pereira – @marcelodepeche


Crônica de Marcelo Pereira

Regozijai-vos ! Hoje é quarta-feira! Povos pagãos da antiguidade reverenciavam esse dia em homenagem à Mercúrio (O Deus dos comerciantes e ladrões!). Em sueco se diz “Onsdag”, ou seja, “Dia de Odin”.

Confesso, tenho uma grande má vontade contra esse dia em especial. Explicarei: todos que conheço detestam a segunda-feira. Eu não. Porque detestaria o início da semana? Segundas-feiras representam um novo começar, um novo querer, um novo desejo! Somente os preguiçosos e amantes da vida desregrada detestam-na.

Mas então, porque pego “no pé” da quarta? Veja bem, não é um simples malquerer, raciocinem comigo: Na segunda o bom trabalhador está com carga plena, pronto para a labuta, pro que der e vier, na terça essa energia já está um pouco comprometida, mas com fé nos deuses, vamos em frente…Mas aí chega a tal da quarta-feira, sua bateria já está pela metade e você pensa: – Ainda estou no meio da semana! Pelo menos tem o futebol sagrado hoje à noite!

Mas para seu infortúnio, sua esposa vem discutir justo nesse dia sobre a relação, perguntando porque você não é mais romântico com ela, se você ainda a ama, e você preocupado se o juiz maldito não vai roubar seu time….

-Amor, deixa de bobagem, você sabe que eu te amo! Aproveita e pega mais uma geladinha pra mim, por favor.

Você ouve um impropério qualquer, fica sem a cerveja e provavelmente sem a companhia da sua esposa essa noite. Culpa de quem? Da quarta-feira é claro! Não falei que ela era danada?

E para que você não pense que a minha raiva é infundada, vos digo: minha raiva tem motivos científicos! Isso mesmo! Várias situações complicadas aconteceram em quartas-feiras, senão vejamos: pesquisei um mês aleatório, janeiro, ano de 2015 e vi que numa quarta-feira dois homens mascarados invadiram o escritório do semanário satírico Chalir Hebdo, em Paris, e mataram 12 pessoas, entre elas cartunistas, o editor-chefe da publicação, e dois policiais. Cinco outras vítimas foram internadas em estado grave.

Também numa quarta-feira, dia 18 de março de 2015, Yassine Labidi, Hatem Khachnouai e um cúmplice abriram fogo no Museu Nacional Bardo em Túnis, capital da Tunísia, matando 21 pessoas (principalmente turistas europeus) e ferindo outras 50. Outra vítima morreu dez dias depois.

Ok, leitor. Você deve estar pensando que sou um paranoico (será?!) ou adepto de teorias de conspirações…afinal de contas tragédias acontecem todos os dias da semana não é? Mas pense comigo: A quarta-feira tem algo de ruim, e vou provar isso de maneira definitiva: Quarta-feira de cinzas! Quer algo pior do que isso? O fim do carnaval? O término da alegria, dos sonhos do folião? Com toda certeza esse dia é terrível.

Faço aniversário no dia 10 de janeiro, e nesse ano de 2018 caiu numa quarta-feira..previ problemas. Mas para minha surpresa, nada! Fizemos um jantar para os familiares e me bateu uma curiosidade: no longínquo ano de 1973, o dia dez de janeiro caiu em qual dia da semana? Perguntei para meu pai e ele não lembrava, perguntei para minha mãe e ela me disse:

– Lembro como se fosse hoje, você nasceu às 06:30 da manhã, um dia quente e ensolarado, plena quarta-feira!

– Nããão! Gritei. (mentira, não gritaria com minha mãe, mas tive vontade…).

Será essa então a minha grande má vontade com esse dia? Xi…Freud explica?

Mas pensando bem, bem mesmo…as quartas não são tão ruins não ?

Retratos – Conto de Marcelo Pereira

Ao final de mais um dia de trabalho, chego em um pé-sujo e tento desanuviar às ideias. O pinguim que me atende tem menos dentes do que aquilo que se chama de minimamente necessário. Peço uma geladinha e o sujeito balbucia algo sem sentido.

Vejo a fauna reinante no barzinho. Fauna é um termo bem apropriado, pois os seres ali presentes são dignos de catalogação. O bêbado onipresente está lá com suas garrafas espalhadas embaixo da mesa, ele se encontra naquele estágio de semiconsciência em que as imagens tornam-se turvas, e não se percebe o que é real.

O velho professor está lá também. Está lendo um antigo romancista russo. Suas roupas já viram dias melhores. Dostoiévski tenha pena desse pobre professor. O jovem casal está mais ao fundo do bar, estão discutindo por alguma bobagem própria dos casais na tenra idade. Logo descobrirão que a vida é muito curta para discutir por bobagens. Um Don Juan de araque está em pé assoviando para as meninas que passam apressadamente pela avenida. Que criatura bizarra! Será que o pavão acredita realmente que suas cantadas mal conduzidas e sua plumagem circense podem atrair possíveis vítimas?

A senhora olha com ar de tristeza para os pequenos quadros expostos na lateral do barzinho. Seus cabelos presos, sua face carregada por uma maquiagem superlativa demonstram que na juventude sua vida deve ter sido menos difícil. O que provocou sua queda precoce?

Então vejo Joaquim, meu amigo de infância, e grito: Joaquim! Joaquim! Ei rapaz! Sou eu! Antônio! Meu amigo olha pra mim e não me reconhece. Estou tão velho assim? Ou ele não quis falar comigo? Éramos tão amigos antigamente. Que pena. Os poucos amigos que me restaram, ou morreram ou moram em lugares tão distantes….Ou não me reconhecem mais, e se reconhecem, não me acham merecedor de uma pequena conversa.

O proprietário do bar avisa que o mesmo está para fechar e pede para os clientes pagarem suas contas. Sou forçado a ir, sou forçado a pagar a conta. Passei uma vida inteira sendo forçado a fazer coisas que não queria. A cerveja vai esquentar, o bar vai fechar, um dia o dono do bar, o bêbado, o velho professor, o jovem casal, o pavão, a senhora, Joaquim, eu, iremos morrer e tudo continuará, como se nunca tivéssemos existido. Seremos retratos na estante de alguém. Tudo passa.

O pouso do anjo viajante (Conto ´porreta de Fernando Canto)

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Conto de Fernando Canto

Anjo migrador anda silencioso pelo trapiche que ora aporta – barco de sonhos, nave de asas longas. O anjo tem a pele avermelhada como a de um de buriti flutuante ao sabor da maré, e ronda misterioso pela frente da cidade onde pousa. Parece ter medo ou desconfia que ela não o receba. Ele olha, então, o rio, uma grande dádiva de Deus, e sente o vento lhe arrepiar o corpo como um hálito frio da madrugada, uma brisa que levanta seus cabelos aureolados pela luz contraposta da lua minguante, nesta noite onde a viagem parece terminar.

Depois que o dia acende sua fogueira e o rio se prende num alguidar é que se vê o anjo em sua humildade: é velho e está nu. De suas minúsculas asas se soltam antigas penas que pegam penura e depois descem mansamente nas águas. Ele caminha pela ribanceira para se hospedar na primeira casa que encontrar.images (3)

– Bom dia, diz ao homem da primeira casa. – Tenho fome, me arranje o que comer.

– Bom dia nada, seu velho tarado. Vá tratar de se vestir que já-já minha família se acorda e eu não quero que ninguém lhe veja assim.

O anjo se magoa. Ah, nada como um anjo magoado pela malícia e a incompreensão dos homens comuns. Ele chora, abana as asas e voa, para o espanto do homem da primeira casa.

images (1) (1)Ele desce. Limpa as lágrimas. Assua o nariz com as mãos. Não desiste. Bate na segunda casa. Pergunta à dona dela: – A senhora poderia me dar água?

A mulher, ainda sonolenta, despeja-lhe um balde d’água e lhe diz: – Vá tomar banho, miserável. Isso são horas de me acordar?

Ah, ele sofre de novo. E chora e sobe e rola nas nuvens cirros, lamentando a incompreensão dos seres humanos, para o espanto e a confusão que fez nascer na cabeça da mulher da segunda casa.

Mas ele pára e releva tudo. “São apenas seres humanos”, pensa. Vai à terceira casa e uma criança lhe diz: – Entre vovô, deite na rede do papai que eu vou servir um café quentinho pra você.images (2)

A criança conversa como um adulto. Liga a TV, mas não pára de tagarelar. O anjo viajante fica abismado com a precocidade daquela criatura e se envolve em um diálogo onde não cabem tantas palavras e onde os gestos se rompem entre lágrimas retidas e rios de alegrias.

Perto do almoço o anjo sente o odor do peixe em cozimento. Gostosos cheiros de ervas desconhimages (6)ecidas para ele dançam no ar do ambiente. A criança lhe explica tudo, fala os nomes das coisas. Repete a toda hora: – Papai tá pra chegar, fique pro almoço. Ele saiu cedo pra pescar, mas já tá vindo.

Admirado, o anjo decide ir embora antes que o pai da criança chegue, pois não queria ser novamente ser incompreendido pelos adultos. Come a caldeirada de filhote, um manjar inusitado em sua desmemoriada vida eterna. Sai pé-ante-pé, saciado e contente, com as asas revigoradas empurradas pelo vento forte da maré.

Ao chegar lá em cima, começa a crescer tão desmedidamente que chega cobrir o sol. Olha para baixo: uma multidão de curiosos fere as retinas sob o sol. Todos querem ver esse prodígio.

O homem da primeira casa, que lhe negara comida e o escorraçara, a tudo assiste e lhe acena. A mulher que lhe negara água diz a todos os vizinhos que o saciara, mas que era um anjo ingrato. A criança da timages (4)erceira casa – que lhe dera abrigo, água e comida – solta seus cabelos amarelos ao vento e ele então pára no ar, volta ao tamanho inicial e sorri. Faz um sobrevôo e de rasante rapta a criança e a coloca em cima das águas do rio. Ela anda sem medo e chama as pessoas para que a acompanhem. Todos vão a ela, exceto o pai, aflito, que acabara de chegar para o almoço.

O sorriso do anjo é forçado agora. Há de se notar que ele fora arrogante e não queria fazer o que fez. Mas está feito. As águas do rio se revoltam e todos nelas se afundam. Todavia o sol a pino se abre e raios brilhosos conduzem a criança a terra para os braços do seu pai.

Aí o anjo entra em seu barco alado, que agora parece uma bola de fogo, e parte levando em suas asas todos os cheiros, todos os gostos e todas as palavras ditas pela criança. Ouve-se um trovão e uma chuva amazônica desaba sobre a cidade.

acIDEz e SOLidão – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto

Que diferença faz acidez e solidão se jaz pela escuridão a dor da infecundidade do solo que agora deito. Que diferença, me diga, se a acidez destrói a massa e a solidão sombreia a alma. Na certa a acidez da dor vislumbra o soerguimento do pó que vomitaremos após solidões cansadas. Que diferença faz acidar-me ou isolar-me se for capaz de nascer. Que diferença, me diga, na certa terei castigo se for capaz de nascer. Se me desgasto sou pedra, sou esmeril contra o aço e ainda insólito prisma de vidro e de cores rudes. Que diferença, me diga, entre gastar e parar, se resta apenas desejo de ser superfície e ar.

* Publicado no livro Equinocio – Textuário do Meio do Mundo – Editora Paka-Tatu – Belém, 2004

Coração de prateleira

Meu amor tão dividido é dentro do coração uma prateleira onde guardo em recipientes grandes histórias passadas e presentes, nenhuma tragédia até hoje.
Foram tristes como o adeus e felizes como os encontros.
Mais estarão lá como velhos manuscritos, canções e poemas.
Eu os encontrarei novamente nas esquinas da minha saudade.

Osmar Júnior