Desceu no Pacoval.
Antes sobrevoou a Fortaleza, sentiu o odor dos peixes no Mercado Central e imaginou que algum dos seus tinha sido morto…
Sobrevoou o Curiaú e ao passar por sobre Mazagão veio a lembrança que há coisa de 300 Equinócios atrás tinha visto uma cavalgada por esse posicionamento registrado na tela brilhante a sua frente, uma coincidência dessa longitude…latitude atual com a que ficou registrada no visor da Impulsiver nome com que chamava sua Nave…
Esses nativos do Planeta Azul não sobrevivem 300 Equinócios, o que eles chamam anos. Nenhum deles daquele tempo está lá embaixo.
De noite após deixar a Nave em uma dobra invisível do tempo, foi a um restaurante e ficou observando os clientes e ao ver um deles sair do local se auto copiou dele e entrou…não havia necessidade dele se alimentar havia tomado uma super absorção de oxigênio irradiado na linha imantada, que os nativos chamavam de Equador…
Mas já com a cópia implantada do terráqueo que sairá…entrou calmamente e sentou como todos ali faziam… De outra vez ali estivera e absorverá um vinho escuro ao qual os nativos adicionavam um pó branco que chamavam t a p i o c a.
Curiaú Macapá – AP – Foto: Floriano Lima
Ele gostou mais do vinho, era difícil ele manipular a imagem quântica e afasta-la da sua pele semimetalica para flutuar as partículas até seu orifício processador de substâncias alimentares solidas.
Não tocou nessa substância, porém repetiu o vinho…apontando com o dedo…pois falar açaí saia nasalado, o que chamava a atenção dos ao redor…
Seu avisador neutronico vibrou em seu pulso para avisar que depois de oitenta pulsabidades se estraçaria a carapaça com a qual contruira a forma humana do copiado cliente. Tratou de absorver o líquido com rapidez…
E se esforçou a correr quando notou que apêndices deslocadas das suas mãos punham expostas suas armações metálicas liquidas, coloridas de lilás…
Saiu correndo até o prédio do antigo hotel que carregava o ônus do abandono, e destruição, pelo poder público.
Eu estava urinando escondido depois de tomar algumas geladíssimas cervejas no restaurante um pouco adiante…quando me deparei com um barulho de uma chaleira expelindo o produto de sua fervura…olho assustado e deparo com minha cópia se esfacelando em fragmentos fosforescentes que foram ao chão e gaseificaram imediatamente, flutuando minha cara…
Corri muito e bastante…
Anos depois soube que um ser extra terrestre havia visitado o mundo…
E havia indícios que estivera em Macapá e frequentará locais públicos clonando um dos humanos ali presentes, para não ser identificado…
Eu li e ouvi as reportagens a respeito…mas nada comentei…
Quem ia acreditar que acontecera comigo…ainda mais em mim…que sempre bebo muito, e costumo sair para ir urinar nos lugares mais ermos…eu heim!
Mas o dente postiço que foi clonado com a obturação lilalizada,e sendo amalgama metalizado se impregnou da cor lilás…eu recolhi do chão e mandei colocar em um pingente e uso, ela nunca deixou de disparar a sinalizador da presença de metal nas portas dos bancos…
Guardo como amuleto…
Quem sabe um dia o devolva…
Pensávamos que tinha começado em abril de 2020, com o “barulho no céu”. As pessoas comentavam nas redes sociais: “parecia um navio”, diziam. Mas era no céu, sempre a noite. A verdade é que eram ET’s, sim, extraterrestres no meio do mundo, em sobrevoo por Macapá.
Nada de anormal, pois no dia 27 de abril de 2020, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos divulgou três vídeos que mostram pilotos da Marinha interagindo com “fenômenos aéreos não identificados” — em outras palavras, Objetos Voadores Não Identificados (OVNIs). Duas das filmagens são de janeiro de 2015 e a outra de novembro de 2004, mas as três tinham vazado em anos passados. Em setembro de 2019, o Pentágono atestou a sua veracidade.
Além de evidências, múmias não terrestres achadas em uma caverna na Ásia e pinturas rupestres de ET’s, encontradas há décadas, que relatam visitas dos ovnis há milhares de anos. Entre outros milhares de registros ufólogos.
Depois do barulho no céu, rolaram aparições no interior e na Gruta, balneário na periferia de Macapá. Afinal, os ET’s não vieram fazer guerra ou círculos em plantações, mas sim, amizade. Lembrei que há tempos li: “Eram os Deuses Astronautas”, de Erik von Däniken, a Bíblia dos sonhadores com as estrelas e seus povos.
Diferente da obra, nossos amigos visitantes e observadores não são cheios de tentáculos ou cabeças enormes, gosmentos, nem verde e nem cinza, são das nossas cores ou algo assim.
E não foi surpresa para alguns não. Eles já eram monitorados por alguns de nós, terráqueos tucujus. Pois, o Clube de Astronomia do Amapá (Mirzam), a Alcinéa Cavalcante e Márcio Spoth, com seu potente telescópio, além de poetas e biriteiros notívagos, entre outros observadores do céu noturno, manjavam a traquinagem extraterrestre e relatavam observações de Objetos Voadores Não-Identificados (Óvnis).
Foto: Reprodução/ Iphan
E mais. Há muito tempo, alguns deles já viviam aqui, infiltrados, sondando se o lugar era bom mesmo de se viver. Falam até que o Marco Zero do Equador seria o portal espaço/tempo de civilizações de outros mundos e dimensões.
Bem, como o “Stonehenge da Amazônia”, o observatório astrológico erguido há mais de mil anos na floresta do Amapá e descoberto em 2006, mais precisamente no município de Calçoene. Não à toa, o escritor Ronaldo Rodrigues e o cartunista Ronaldo Rony sempre disseram que aqui a gente “Calça o N e marca o zero”. Égua!
Um deles é Fernando Bedran, membro fundador e capitão da Cavalaria Aérea Marítima Subterrânea Interestelar (Camsi). Contatos aqui na Terra com ele mesmo, que aterrissou sua nave na Cidade Velha de Belém (PA) e depois que descobriu os portais, remou para o meio do mundo. Não à toa, o Fernandinho possui conhecimentos teológicos advindos de descobertas em expedições etílicas por outros sistemas solares.
Bedran é um ET bacana que só. Vive falando em micro-universalidade, macro-cósmico, multi-universos, viagem no tempo, múltiplas realidades, seitas e povos ocultos.
Muito longe das darwinistas-hollywoodianas, que sempre pregaram que os manos das estrelas chegariam por aqui com violência e exploração dos recursos. Pé-de-pato-bangalô-três-vezes!
Em um desses papos molhados com o ET brother, no auge de seu platô da inteligência sobre-humana-boêmia-malandra, disse-me:
“Meu caro amigo, Elton, a Camsi tem como atividade principal a cultura, mas é uma cultura considerada insólita para muitos. Nada mais é do que um sarro com as artimanhas do sistema das coisas que nos são escondidas e você tem que descortinar os véus, ir atrás, às vezes cavar um bocado, por isso subterrânea, e também mergulhar um bocado entre muitas outras situações”, explicou a simplicidade de sua Cavaleria interestelar.
E concluiu: “Nós somos dados à capacidade de imaginação e para passar para outra etapa temos que cavalgar, né – risos – temos que navegar bastante, temos que sorrir bastante, ter muita coragem e muita alegria! Esse é o objetivo da Camsi, meu amigo! Um forte abraço!”.
Ou seja, em meros devaneios tolos, como diria Zé Ramalho resumiu que tanto aqui, quanto lá, é preciso descomplicar e ter coragem de ser feliz. Afinal, ninguém manja dos movimentos cosmológicos. E no dizer de outro alienígena porreta, o mestre Yoda, Em uma galáxia (não) muito distante: “difícil de ver. Sempre em movimento está o Futuro.” E, por fim, como diria Raul Seixas: “cada um de nós é um universo” (que desconfio ter sido outro ET que veio aqui tirar um sarro com a gente).
Portanto, queridos leitores, façam amizade com estranhos legais, mas respeitem suas esquisitices. É isso!
Livro de Joseli Dias, que contém este conto – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.
Dizem que, há muitos anos, às margens do Rio Calçoene, havia uma pequena aldeia indígena. Era ali que vivia Ubiraci, curumim conhecedor da fauna e da flora. Desde que nasceu, Ubiraci foi abençoado por Tupã com o dom de falar com todos os animais, fossem eles da água, da terra ou do ar, e com todas as árvores, desde as menores até as que cortavam as nuvens e iam fazer sombra no reino de Tupã. Ubiraci conversava com os bichos e com as árvores, contava-lhes histórias e sabia de tudo o que acontecia no mundo. E foi assim que cresceu em plena harmonia com os elementos, filho da água, da terra e do ar que era.
Imagem do site “TERRA BRASILIS 2”
Um dia, Ubiraci caminhava pela floresta quando descobriu a mais linda indiazinha que seus olhos já tinham visto. Seus cabelos pareciam com as quedas-d’água que despontavam das pedras, onde, por tantas vezes, sentou-se por horas a escutar os pássaros. Seus olhos assemelhavam-se ao anil do céu. Seu rosto jovem lembrava brotos nascendo da terra, ainda indomados. Suas mãos, mágicas, se tocavam o solo, desabrochavam sementes. Se voltadas para o ar, controlavam as chuvas, os ventos e as tempestades. Se apontadas para os rios, domavam as marés, as pororocas e as maresias. Ubiraci, sem saber, havia se apaixonado pela Natureza.
Tronco do Tarumã, navegando o rio Calçoene – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.
Apaixonado, o índio passou a procurar sua amada por toda parte. Com ajuda dos pássaros, subiu na nuvem mais alta na esperança de vê-la entre os abençoados de Tupã. Vasculhou cada recanto da floresta e acompanhou os peixes na imensidão dos rios, mas nunca voltou a rever sua alma gêmea. Acompanhou a pororoca por entre troncos e barrancos, mas não voltou a vê-la. No entanto, podia senti-la no canto dos pássaros, nas brisas da manhã, na calidez da noite e no sussurro sereno das maresias.
Imagem do site “TERRA BRASILIS 2”
Era tanta a paixão que sentia que Ubiraci se esqueceu de conversar com as árvores, com os animais e com os filhos das águas. O dom que recebeu de Tupã foi perdido para sempre. Ubiraci só se importava em procurar pela amada, que julgava estar perdida em algum lugar do mundo. Ele não entendia que a Natureza estava em todo lugar.
Rio Calçoene – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.
Uma noite, quando o mundo dormia, quando os cantos dos pássaros haviam cessado e não se ouvia murmúrio algum no seio da floresta, Ubiraci avistou a Lua, refletida na água. Imaginou que era naquele mundo que sua amada vivia. Foi tanta a sua felicidade que esqueceu-se de ter perdido seu dom. Mergulhou no rio, mas quanto mais lutava contra a correnteza, mais parecia que a Lua se afastava dele. Foi tanto o esforço que fez que as forças o abandonaram, e Ubiraci sucumbiu à morte. Tupã, compadecido com tanto amor, pediu à Natureza que transformasse Ubiraci em uma árvore, no meio do rio, para que fosse lembrado para sempre. À noite, no entanto, quando a maré subia, a árvore estranhamente desprendia suas raízes do solo e navegava contra a correnteza. Imaginando tratar-se de magia, seus irmãos índios cortaram a árvore, deixando apenas o tronco, mas, mesmo assim, o mistério continuou, e eles, amedrontados, deixaram o local, com medo do tarumã, que, na etimologia indígena, significa o tronco que se move.
Os anos se passaram, Calçoene transformou-se em cidade, mas muitas pessoas juram que, ainda nos dias de hoje, o tronco se move, contra a correnteza, subindo o rio.
Dizem que, quando algum morador depara-se com um amor impossível, faz promessa ao tarumã, deixando sobre ele algum presente ou alguma oferenda. Se o tronco navegar rio acima e retornar vazio, o pedido será realizado.
(Autor: escritor Joseli Dias – da obra Mitos e Lendas do Amapá)
Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
“- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.”
E o ladrão, confuso, diz:
“- Dotô, eu levo ou deixo os pato?
Zeca Baleiro, faz essa mesma citação em sua música “Vô Imbolá”, mas num contexto diferente que pode-se aplicar muito bem ao nosso dia-a-dia, principalmente aos bucéfalos anácronos:
“- Como é por ignorância transito, mas se fosse unicamente para menoscabar de minha alta prosopopéia, dar-te-ia um soco no alto da sinagoga que por-te-ia mais raso do que solo pátrio!”
Não lembro onde achei isso, pois faz anos, mas é genial, não?
“De tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto / ela já foi namorada”. Eu era um perdido no caos do porto da vida e ela me amava assim mesmo. Desconsiderava minhas feridas e lambia meu corpo inteiro. Me colocava pra dormir em sua cama de papelão, sob a marquise de alguma loja. Ou no chão de um banheiro imundo. Ela acolhia a todos os famintos e dava de comer. Os que tinham frio, ela aquecia entre seus seios. Eu era mais um em sua teia, mas cada um sabia que era único.
Ela nos fazia amados e preparados pra amar. Nos fazia crer que era possível continuar a sugar da vida tudo o que ela trazia de bom. O que era ruim já se conhecia tanto. Não devíamos desperdiçar energia em ofícios vãos, preocupações metafísicas, o segredo dos astros, a fofoca da esquina. Que vivêssemos! Vivêssemos! Vivêssemos! Só isso!
Ela não fraquejou nem quando a carruagem parou na entrada do beco. O Dono do Mundo desceu reclamando suas carícias. Ele desejava ter aquela mulher que tantos tinham. Ele começou oferecendo dinheiro, joias, roupas, viagens ao exterior. Ela disse não a um homem que não estava acostumado a ouvir essa palavra tão pequena na forma e tão grande em sua significação. Ele ofereceu toda a sua fortuna e ouviu outro não.
Por fim, ofereceu apenas o seu amor. Quando ela duvidou disso, ele passou à chantagem. Colocou todos nós, os mendigos, como reféns. Ele só queria uma noite de amor, senão mandaria nos matar. Ela olhou o Dono do Mundo por longo tempo. A limpeza de suas ricas roupas a enojava. Seu perfume caro causava náuseas. Seu sorriso com todos os dentes lhe dava repugnância. Ela nos olhou e sorriu. Aceitaria aquela tortura por nós. E nós, covardes, não fizemos um gesto de impedimento. Também podíamos tão pouco. Ele apenas anteciparia a matança.
“Ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira” e foi embora, nos deixando vivos. Ela nos abraçou e abençoou nosso cheiro azedo, nosso hálito de cachaça, tabaco e fome. Aquele homem que era dono de tudo não era nada perto de nós. E se a cidade toda quiser, um dia, apedrejá-la vai encontrá-la subindo aos seus céus, como uma santa, levando pelas mãos todos os perdidos.
Ronaldo Rodrigues
*Geni e o Zepelim – Letícia Sabatella (Chico Buarque):
É preciso segui-la. Sinto isso logo que a vejo na livraria. Está folheando uma revista, sem muita atenção, fixando-se apenas nas fotografias. Parece estar ali com o mesmo propósito que eu, matando o tempo até voltar ao trabalho.
*** *** *** *** *** *** *** *** ***
– Outubro é muito, muito perigoso!
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Ficamos lado a lado, embora a mulher permaneça como se só ela existisse. Tenho a visão no livro que folheio sem qualquer interesse e a atenção totalmente voltada para a mulher. Ela fecha a revista decididamente, olha para o relógio e o percebe parado:
– Sabe as horas, moço? – Pergunta, altivamente.
– Nã… Não! Não… sei… – Gaguejo, respondendo.
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Quem sempre me dizia isso era o Capitão Nemo:
– Tenha muito cuidado, menino! Outubro é muito perigoso!
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Ela deixa a revista na estante e dirige-se à portaria. Confere a hora e acerta o relógio. Sai da livraria e eu continuo olhando aquela mulher, agora através do vidro da vitrine. Ou será que não existe vidro algum? Meu olhar é que fez a parede tornar-se transparente?
Pergunto o motivo do perigo de outubro e ele responde, depois de longo silêncio, os olhos em transe, na direção do mar:
– É em outubro que começamos a enlouquecer! É em outubro que costumam surgir as sereias!
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Ela atravessa a rua. Saio da livraria, disposto a segui-la, e paro na esquina. Contemplo, então, o espetáculo da rua silenciar-se para a passagem daquela mulher. A paisagem urbana torna-se repentinamente quieta, mas com uma acelerada pulsação interior que começa no asfalto e termina/continua no meu peito.
Ela entra num edifício e eu continuo seguindo seus passos. Ainda não me percebeu e acho que isso não acontecerá nunca. Ela aguarda a chegada do elevador junto a mais três pessoas. Incorporo-me ao grupo e passo a esperar também.
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Todos dizem que não devo dar atenção às palavras do Capitão Nemo. Dizem ser louco tanto o Capitão Nemo quanto quem o escuta. Mas eu digo que não. É preciso buscar o sentido das palavras, principalmente das que nos parecem mais delirantes.
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O elevador chega, nos recolhe e inicia sua lenta subida. As pessoas vão ficando em seus respectivos andares até restar apenas eu e a mulher. Como música de fundo, meus batimentos cardíacos ecoam nas paredes do elevador confundindo-se com a palavra outubro.
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Outubro. Agora compreendo claramente seu perigo. O Capitão Nemo ficou aprisionado em sua louca lucidez, nos destroços do seu navio, enfeitiçado por uma sereia. Eu estou preso neste elevador atraído por uma sereia. Aqui ficarei para sempre, aguardando todos os dias aquela mulher maravilhosamente perturbadora cujo nome conheço apenas a letra inicial (F), que vi uma vez em que ela abriu rapidamente a agenda.
Todos os dias, quando ela sai do elevador, ainda sem notar minha presença, recordo as palavras do Capitão Nemo, que todos acreditavam serem palavras de um louco:
– É preciso ter muito cuidado com as sereias de outubro. Elas são cruéis e nos enfeitiçam com desejos intocáveis. Principalmente, meu filho, as que se chamam Flávia…
* Este conto foi publicado em 1995, na coletânea Novos Contistas da Amazônia, em Belém, resultado de um concurso promovido pela Universidade Federal do Pará. Tempos depois, o conto inspirou a HQ Outubro, do cartunista Paulo Emmanuel, premiada em dois salões de humor. Isso mostra o quanto este conto é quente.
Macapá já se anunciava para mim, pois o livro trazia contistas que só fui descobrir aqui, como Archibaldo Antunes e Ray Cunha, e apresentação do grande Fernando Canto.
Gosto muito deste texto, creio que seja um ponto alto da minha carreira de contista, que ofereço agora como homenagem, digamos assim, ao mês de outubro.
A primeira noite tem um nome: chama-se Obeda. Ela é homônima de uma lua cheia. Como todas as luas cheias ela surge risonha, aparentemente bem-humorada.
Estamos na terra dos sedentários lavradores Pernas-de-Pau, próximos a um quase inacessível monte de cristal espelhado que se interpõe e se protege por um vento gritante e avassalador. Aqui, o Grande Peido de Deus, estrondoso e respeitável por natureza, se espalha com o orvalho da madrugada, perfumoso, todos os dias.
2
A segunda noite não tem nome.
Seres-Rodas espiam meu comportamento, eu intuo, e os daqueles que estão comigo neste ambiente cegante.
3
Na terceira noite há um farfalhar de asas.
Um homem – um herói – acende um charuto e o atira em direção à floresta. Lá adiante o barulho de uma explosão ensurdece a todos nós que, estupefatos, vemos fugirem, voando, os mesmos demônios que nos atormentam em nossas noites de sonho. São os pesadáctilos.
4
A quarta noite é um mistério.
Uma moça linda é vista nesse território. O povo fala que ela é filha de um poderoso comerciante estabelecido acima das Cachoeiras Estrondosas. Grupos de jovens viciados procuram por ela em vão, ávidos com a possibilidade de ganharem alguma recompensa para poderem beber caxiri, fumar liamba ou cheirar rapé de paricá com pó de ostra calcinado… essas coisas todas.
5
A quinta noite de lua é a da beleza.
Lânqui, meu tio, a vê primeiro. Na terceira pequena queda d’água da curva do rio.
Ele avisa meu pai e a mim assim que aporta no cais de nossa casa. Vamos até lá. Ela está esplendorosamente nua, nadando, e não percebe nossa silenciosa presença. É linda, a moça. Tem um corpo pálido e roliço e se banha, na sua inocência, como uma deusa em seu nicho de adoração. Eu espero a próxima noite, pois nossos dias são inúteis. Nossas peles não suportariam os sóis. E a utilidade da noite é a nossa condição de felicidade
6
A sexta noite é a do desmascaramento.
Meu pai e Lânqui, o herói, se entreolharam e deixam suas roupas penduradas em uma árvore. Preparam-se para acender seus charutos explosivos quando os interrompo.
– Não matem a moça, por favor, falo baixinho.
Meus parentes se voltam lentamente para mim, com os rostos vazios, sem olhos, narizes, bocas e sobrancelhas. E sem as escamas que antes cobriam seus belos e brilhantes rostos, e que agora parecem fazer parte das roupas penduradas na árvore.
Sinto um arrepio percorrer todos os tutanos.
Os charutos, porém, já estavam acesos. Faltava colocar os rostos para tragá-los, porque era assim o procedimento ritualístico correto antes das explosões. E a moça está lá no rio, na sua inocência, prestes a ser detonada pelos tauaris dos heróis.
7
A sétima noite passa mais rápido que as outras. A lua Obeda brilha muito e faz a terra girar tão ligeiro que estonteia.
Mais que depressa salto sobre eles e tiro suas roupas e a pele facial dependuradas nas árvores. Elas pulam em meus braços, parecendo ter vida própria. São como máscaras vivas pedindo seus corpos, protestando e se enrolando em minhas mãos. Atiro-as no meio do rio e depois as recolho num saco de sarrapilha que uso para guardar caças. Chamo a moça, que está assustada e sem entender nada. Ela vem até a mim, colocando às pressas um vestido vermelho. Eu a tomo nos braços amorosamente e fujo com ela antes de ouvir a explosão.
8
A oitava noite é lenta e já dura quase quinze anos. Vivemos felizes.
Na margem esquerda do rio vejo meu filho correndo e gritando que eu estava em perigo. Ele salta sobre a canoa de meus perseguidores e pega sua mãe e eu para fugirmos em nossa ubá. De todos os lados surgem pessoas como por encanto, que se põem a jogar seixos sobre nós, na tentativa de ajudar seus heróis, que agora eram xamãs mais poderosos ainda e estavam, há tempos, em busca de suas roupas. Mas estavam muito idosos e secos.
Rapidamente apanho um velho saco de sarrapilha onde guardava há quinze anos aqueles despojos nojentos e o jogo no rio para atrasar a perseguição.
Enquanto eles nos atiram pedras vejo meu pai e meu tio Lânqui pularem n’água às cegas, para apanharem suas roupas e faces, que por sua vez se enrolam e se debatem, ganhando vida própria dentro do rio. Aprecio de longe: os heróis se renovam em suas roupas e máscaras.
Ocorre, porém, uma ressonância de odor delicioso trazido pelo vento. O Grande Peido de Deus, cheiroso por natureza, se espalha com o orvalho que já começa a cair. Fujo, para longe com a minha mulher e meu filho.
9
Na nona noite ressurge Obeda.
Deparo com uma cordilheira de espelhos.
– E agora? Pergunta meu filho. – Vamos atravessá-la, respondo.
Minha linda mulher, que pouco fala, me diz: – Ela não existe. São as lágrimas empedradas do meu povo sofrido que espera por mim além das cachoeiras.
– Sinto uma grande coceira no pescoço, diz meu filho, mudando o assunto. – Eu também, digo-lhe com certa agonia, esfregando e lanhando meu rosto.
A mulher entra no rio para se banhar e nos convida, nos informando da tepidez da água. Tiramos nossas roupas e as dependuramos em uma árvore.
A vontade de fazer e de fumar tauaris é irresistível, apesar de nunca termos experimentado essa arte xamânica. Eu olho para o meu filho e ele me olha estranhamente. Estou sem rosto. Ele também. Não nos reconhecemos naquele momento. Eis que sentimos em seguida, novamente, o estrondo e o aroma do Grande Peido de Deus que vem das montanhas.
Desisto de acender os tauaris e visto minhas roupas.
Quando a noite ameaça descobrir seu pálido lençol, enormes pesadáctilos levantam voos das frondes das mais altas árvores e Seres-Rodas sobem a montanha de cristal deixando rastros de fogo, com grande esforço.
Eu e meus familiares sorrimos felizes nesta longa noite, graças à fragrância providencial do Grande Peido de Deus.
– Para com essa história de se transformar em porca, mulher. Não aguento mais esse cheiro de lama.
Era um segredo nosso que tive de aceitar por pura dependência financeira, desde que nos casamos. Mas ela não parava. Queria porque queria parecer melhor que a Velha Xambica, do sítio do seu Ladislau, vizinho ao nosso, que tinha o mesmo fado dela e se transfigurava em Matinta. As duas concorriam para ver quem assustava mais as pessoas desprevenidas nas noites enluaradas da minha cidadezinha.
Um dia eu estava num couro doido, numa pindaíba roxíssima. Era meu aniversário e eu vivia sempre cobrado pelos meus amigos do boteco da Waldirene Boca de Tambor.
– Quando é o churrasco, porra? Perguntavam o tempo todo, me pressionando pra valer.
Eu dizia que ia depender da indenização que estava para receber do frigorífico que fui botado injustamente pra fora, sem justa causa. O processo estava tramitando há tempos, sempre acompanhado de perto pelo iminente causídico Dr. Robário Paladino, que me garantiu o recebimento para logo, antes do fim do mês.
Na véspera do aniversário eu não aguentei mais o fedor da minha galega. Ela havia voltado de um Passeio de Assustamento da lua cheia e estava no quintal grunhindo e chafurdando na lama do chiqueiro, antes de voltar a ser mulher. Ela dizia sempre que a transformação era um processo doloroso, mas que tinha prazer em fazer sempre, pois se achava renovada toda vez que isso acontecia.
Ela estava lá. Tinha acabado de chegar. Eu fiquei pensando, pensando, pensando… peguei a peixeira e a enterrei no pescoço dela por trás. A porca revirou os olhos e o sangue esguichou com tanta força que me sujou todo. Estrebuchou e deu três longos e desesperados grunhidos. Enrolei a boca e o focinho com uma corda até ela parar de se debater. Depois coloquei o corpo em um camburão de água fervente para raspar os pelos, e, como bom açougueiro, comecei a preparar o corpo do animal para fazer um belo churrasco. Os raios do dia chegaram com uma intensidade que me feriu os olhos.
Fui ao boteco da Waldirene Boca de Tambor e convidei a rapaziada malandra pro churrasco. E ainda dizia, brincando:
– Levem um presente, seus vadios. Cheguem perto do meio-dia pra me ajudarem a assar.
Cada um se servia como podia. Eu havia trocado os miúdos da porca por cachaça e farinha com a Wal. Todo mundo se refestelou e ficou de bucho cheio. Tomaram cachaça à beça, arranjaram uns tambores e o batuque correu o dia todo. Quem chegava pro churrasco também trazia uma bebida. Mas eu não tive coragem de comer nenhum pedaço de carne, talvez em respeito à minha falecida mulher.
Já era quase meia noite e todo mundo já estava “calibrado”, tomando cachaça e dançando uns sambas de cacete. Ninguém notou a ausência da minha galeguinha, só o Ambrósio, saliente que só ele. E eu lhe disse que ela tinha ido à casa da mãe doente lá em Mazagão.
A lua rompeu uma nuvem escura e iluminou mais ainda o terreiro da festa. E o batuque ensurdecia e ecoava em toda a área.
Mas tudo parou de repente quando uma mulher idosa com bico de pássaro surgiu perto da mata onde ficava o chiqueiro da minha esposa.
– Quero tabaco, ela dizia. Quero tabaco pra levar pra minha comadre.
Os convidados se entreolharam e o medo tomou conta de todos. Atônitos viram seus ventres se mexerem involuntariamente e em todos eles uma voz dizia:
– Onde está minha costela? Cadê minhas coxas? Quede meu peito?
A lua parecia descer do céu de tão grande, naquele momento de desespero dos convidados. E todos eles saíram correndo para o mato se transformando a cada passo em caititus, porcos-do-mato, queixadas e javalis.
A velha Matinta me olhou de soslaio, cuspiu pelo bico de pássaro um cuspo negro de quem masca tabaco. Eu caí de costas no chão e tive que sustentar com os braços até de manhã a lua quase cheia que parecia ter caído em cima de mim.
Porra, eu andava puto porque tinha sido demitido da TV que trabalhava porque em uma transmissão ao vivo a Big Big apareceu e pegou no meu pau e eu gritei de dor. Não teve jeito nem chora minha nega. Fui pra rua mesmo por justa causa, falta de ética, descompostura, atentado ao pudor… essas coisas. O féla da pôta do patrão não estava nem aí pros meus argumentos. Não convenci o fresco do judeu insensível. Ele sabia que eu era solteiro e não adiantaria mentir.
Conheci a dita cuja da Big Big quando eu cobria o Pronto Socorro para um jornal impresso. Ela tinha sido atropelada pela sétima vez. E já estava aleijada. A droga que ela se apaixonou por mim desde que me viu fazendo a reportagem pra televisão, pois me achou bonito e queria que eu a fizesse famosa. Onde eu chegava ela achava um jeito de passar a mão em mim. Até dedada eu levei dela. Ridículo. Logo eu, porra, um jornalista considerado…
Fudido do jeito que eu estava, com o troco do salário que me deram, pois não tive direito a nada, fui lá na beira-rio tomar uma cerveja. Pensei em almoçar no bar do Nego, mas resolvi só beber e resolvi misturar cachaça com cerveja. Comecei a ficar porre e queria fazer sexo. Não vi nenhuma garota de programa pra afogar o ganso, o Neymar, o Messi e minhas mágoas. Bebi, mas bebi pra caralho. Quando já estava chamando uma coluna do bar de meu bem vi a Big Big caminhando arrastando a perna. Pensei, na minha visão meio truvisca, que ela dançava Marabaixo. Que nada! Ela dançava um reagge e estava linda com sua pele morena.
Paguei a conta e ainda deixei dez por cento pro garçom Raimundo, que costumava me roubar nas contas quando eu estava por cima da carne do churrasco.
Chamei a linda Big Big e lhe disse sem pudor: – Pega à vontade no meu pau, amor.
Ela ficou me olhaaaando! Não disse nada.
De repente eu caí em mim e vi a Matilde Joaquina com o câmera da emissora que eu trabalhava me filmando, só pra fazer o mal, pois ela havia ocupado meu antigo posto de trabalho. Porra, todo mundo ia saber que eu tinha quase um caso com a Big Big. Quase um caralho. Agora teriam certeza.
Pedi mais um copo cheio de cachaça pro garçom ladrão e segui desolado até as muralhas da Fortaleza de São José de Macapá. Na realidade eu fui me lamentar naqueles muros. Chorei muito. Minhas lágrimas quase amolecerem as pedras da edificação secular.
O dia se punha no oposto do rio Amazonas. E os caminhantes habituais do parque do forte olhavam para mim, me reconheciam e riam. “Drogado”, diziam, “eu até que admirava teu trabalho”. “Safado”… Assim me chamavam.
Fui cambaleando e encontrei um amigo artista plástico literalmente caído na sargeta. Tentei levantá-lo a todo custo, mas não conseguia . Até que senti uns braços fortes me ajudarem. Era a gostosa Big Big que pôs o pintor num lado do ombro e pediu com gestos que eu fizesse o mesmo com o meu. Levamos nosso amigo de cachaça até a prainha que fica entre aquelas falésias da Fortaleza e bebemos o resto da granada de duelo que ele tinha no bolso, e mais duas que ela guardava na calcinha, a gitinha logo. Cantamos e rimos até a lua surgir mais porruda que em qualquer outro lugar, como disse o poeta.
Acordamos com a maré enchendo suavemente, marulhando na areia.
A bacana companheira por fim falou e me revelou que a jornalista que me substituiu pagou a ela pra pegar no meu pau naquela reportagem que fiz ao vivo.
Nessa altura do campeonato nem esquentei mais. Eu perdoei a Big Big porque ela precisava de dinheiro pra beber e pra dar pros caras dela. Agora, lúcidos que nem uns filhos de uma égua, estamos arquitetando um plano pra invadir o estúdio da TV ao vivo e pegar na buceta daquela jornalista desgraçada. Eu, meu amigo pintor e a minha noiva Big Big. Ora, Ora. Marrapá! Vamos sair na mídia nacional. Ihiihihihihihihih!
*Quando recebi este conto (ao qual gostei bastante), disse para o Fernando: “os politicamente corretos cairão de pau na gente por causa deste escrito”. Canto, que é sábio e irreverente, disparou: “os bêbados e loucos fazem parte na nossa paisagem cotidiana da cidade”. É isso aí!(Elton Tavares).
**Republicada por hoje ser o Dia Mundial da Saúde Mental.
Ele soube que era um demônio no momento em que o viu. Assim como soube que ali era o inferno. Não havia nada mais que um ou outro pudessem ser.
A sala era comprida, e do outro lado o demônio o esperava ao lado de um braseiro fumegante. Uma grande variedade de objetos pendia das paredes cinzentas, cor de pedra, do tipo que não parecia sensato ou reconfortante inspecionar muito de perto. O pé-direito era baixo, e o chão, estranhamente diáfano.
– Chegue mais perto – ordenou o demônio, e ele se aproximou.
O demônio era magro como uma vara e estava nu. Ele tinha muitas cicatrizes, parecia ter sido esfolado em algum momento num passado distante. Não tinha orelhas nem genitais. Os seus lábios eram finos e ascéticos, e os olhos eram olhos de demônio: tinham visto demais e ido muito longe, e frente ao seu olhar ele se sentiu menor que uma mosca.
– O que acontece agora? – ele perguntou.
– Agora – disse o demônio com uma voz que não demonstrava sofrimento nem deleite, somente uma horripilante e neutra resignação – você será torturado.
– Por quanto tempo?
O demônio balançou a cabeça e não respondeu. Ele percorreu lentamente a parede, examinando um a um os instrumentos ali pendurados. Na outra extremidade, perto da porta fechada, havia um açoite feito de arame farpado. O demônio o apanhou com uma de suas mãos de três dedos e o carregou com reverência até o outro lado da sala. Pôs as pontas de arame sobre o braseiro e observou enquanto se aqueciam.
– Isso é desumano.
– Sim.
As pontas do açoite ganharam um baço brilho alaranjado.
– No futuro, você vai sentir saudade desse momento.
– Você é um mentiroso.
– Não – respondeu o demônio. – A próxima parte é ainda pior – explicou pouco antes de descer o açoite.
As pontas do açoite atingiram nas costas do homem com um estalo e um chiado, rasgando as roupas caras. Elas queimavam, cortavam e estraçalhavam tudo o que tocavam. Não pela última vez naquele lugar, ele gritou.
Havia duzentos e onze instrumentos nas paredes da sala, e com o tempo, ele iria experimentar cada um deles.
Por fim, a Filha do Lazareno, que ele acabou conhecendo intimamente, foi limpa e recolocada na parede na ducentésima décima primeira posição. Nesse momento, por entre os lábios rachados, ele soluçou:
– E agora?
– Agora começa a dor de verdade – informou o demônio.
E começou mesmo.
Cada coisa que ele fizera, que teria sido melhor não ter feito. Cada mentira que ele contara – a si mesmo ou aos outros. Cada pequena mágoa, e todas as grandes mágoas. Cada uma dessas coisas foi arrancada dele, detalhe por detalhe, centímetro por centímetro. O demônio descascava a crosta do esquecimento, tirava tudo até sobrar somente a verdade, e isso doía mais que qualquer outra coisa.
– Conte o que você pensou quando a viu indo embora – exigiu o demônio.
– Pensei que meu coração ia se partir.
– Não, não pensou – contestou o demônio, sem ódio. Dirigiu seu olhar sem expressão para o homem, que se viu forçado a desviar os olhos.
– Pensei: agora ela nunca vai ficar sabendo que eu dormia com a irmã dela.
O demônio desconstruiu a vida do homem, momento por momento, um instante medonho após o outro. Isso levou cem anos ou talvez mil – eles tinham todo o tempo do universo naquela sala cinzenta. Lá pelo final, ele percebeu que o demônio tinha razão. Aquilo era pior que a tortura física.
Mas acabou.
Só que, quando acabou, começou de novo. E com uma consciência de si mesmo que ele não tinha da primeira vez, o que de certa forma tornava tudo ainda pior.
Agora, enquanto falava, se odiava. Não havia mentiras nem evasivas, nem espaço para nada que não fosse dor e ressentimento.
Ele falava. Não chorava mais. E, quando terminou, mil anos depois, rezou para que o demônio fosse até a parede e pegasse a faca de escalpelar, ou o sufocador, ou a morsa.
– De novo – ordenou o demônio.
Ele começou a gritar. Gritou durante muito tempo.
– De novo – ordenou o demônio quando ele se calou, como se nada houvesse sido dito até então.
Era como descascar uma cebola. Dessa vez, ao repassar sua vida, ele aprendeu sobre as consequências. Percebeu os resultados das coisas que fizera; notou que estava cego quando tomou certas atitudes; tomou conhecimento das maneiras como infligira mágoas ao mundo; dos danos que causara a pessoas que mais conhecera, encontrara ou vira. Foi a lição mais difícil até aquele momento.
– De novo – ordenou o demônio, mil anos depois.
Ele agachou no chão, ao lado do braseiro, balançando o corpo de leve, com os olhos fechados, e contou a história de sua vida, revivendo-a enquanto contava, do nascimento até a morte, sem mudar nada, sem omitir nada, enfrentando tudo. Abriu seu coração.
Quando acabou, ficou sentado ali, de olhos fechados, esperando que a voz dissesse: “de novo”. Porém, nada foi dito. Ele abriu os olhos.
Lentamente, ficou de pé. Estava sozinho.
Na outra ponta da sala havia uma porta, que, enquanto ele olhava, se abriu.
Um homem entrou. Havia terror em seu rosto, e também arrogância e orgulho. O homem, que usava roupas caras, deu alguns passos hesitantes pela sala e parou.
Ao ver o homem, ele entendeu.
– O tempo é fluido por aqui – disse ao recém-chegado.
*Conto de Neil Gaiman* **Contribuição do amigo jornalista Aloisio Menescal. Fonte: Universo dos Leitores.
Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.
Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.
Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.
O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.
Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.
Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.
Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.
Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.
E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.
E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.
Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.
O vulto para mim um desconhecido, num banco afastado de onde estou, senta para descansar suando muito.
Sente mais perto, disse acenando com a mão, para que a notasse. Venha!
Ergue-se devagar, puxando fortemente da perna direita.
Aproxima-se limpando os óculos na roupa xadrez. Dá-me a mão e de perto noto que é cego do olho esquerdo, sob longas pestanas meio amareladas.
Enxerga apenas e muito mal, pelo olho direito. Tome…digo e dou-lhe um copo que ainda não havia tocado. Cerveja! Disse quase gritando. Tomou tudo de um gole só devia estar sedento. Depois me olhou como quem não entende mesmo o que se passa.
Os cavalos dos que estavam dentro do bar relincharam.
Eu espalhei um pouco de sal na mão e fiquei passando a língua. Voltei a mil novecentos e quarenta e cinco. Vivia viajando pelas estradas de barro, vendendo roupa por todo o baixo São Francisco, quando cheguei a cidade de Ilhéus. Neste instante fui desperto de meus pensamentos por palmas. Olhei e o carteiro acenava de defronte de uma casa enorme tipo estábulo, com cartas. Seriam cartas para mim?
Larguei o desconhecido bebendo e fui. Fugi dos pensamentos.
Duas éguas fogosas bebiam água no cocho em frente ao Bar quando entrei. Uma delas trazia MR marcado a fogo na ilharga.
Dei a mão suja de sal para que lambesse.
Ela a lambeu com tal jeito que eriçei os pelos.
Quando cheguei ao interior do Bar todo o salão pareceu-me mais escuro e custei mais a definir os rostos. Abri os alforjes cheios de roupas ali protegidas do pó que havia no caminho para Ilhéus. Doido para atravessar a praça em direção ao carteiro.
Aquela estação fora de boas vendas. Bati com os pés no chão. As sapatas de couro estavam ressecadas e como patas amarelas deixaram as marcas deles no desenho como grandes patas, sujando toda a madeira do assoalho por onde eu passava.
Eram muito mais de dezessete horas. Quase abracei o parceiro suado sedento próximo ao balcão. Manoel Raimundo, meu irmão! Manoel levantou-se me pegou pela mão e foi andando em direção a porta.
Antes de sairmos apanhei o saleiro espalhei no dorso mão e pus-me a lambê-la. Só quando chegamos próximo ao cocho dos cavalos. Foi que não suportando mais a sede. Abaixei a cabeça para beber água.
Ai foi quando senti de súbito uma vontade intensa de namorar as éguas suadinhas doutro lado da calçada.
Para chama-las pensei em gritar… alguma coisa como…ei !…ei !…ei !
Mas apenas saiu um relincho forte e alto …
Que atribui ao calor e ao gelado… e disparei em um galope desenfreado, coiceando os cães…
A Pedra sempre me atraiu. Parecia enorme. Mas eu era uma criança e tudo me parecia grande demais. Andei perguntando como tinha surgido ali, tão sozinha, a cerca de trezentos metros da margem do rio Amazonas e a uns poucos do Trapiche Eliezer Levy. Ninguém soube me dizer. Pelo contrário, as únicas palavras que ouvi foram de advertência.
– Não chega por lá.
– A pedra é encantada.
– A noite os fantasmas cuidam da Pedra, e ninguém pode ficar olhando.
Uma moradora do Igarapé das Mulheres – um dos bairros mais antigos da cidade, onde ficavam isoladas as prostitutas – que encontrei, por acaso, perto do Grupo Escolar Barão do Rio Branco, me afirmou que na Pedra existia uma cobra grande:
– Enorme mesmo. Ninguém sabe dizer quantos metros de tão grande que é, eu já vi.
Emocionada e parecendo ter medo de suns próprias palavras, afirmou:
– Quando o rio está na cheia a cobra sai para beber, de maneira que a água nunca consegue cobrir a Pedra. Se alguém remover a Pedra, a cidade vai ser inundada.
Tudo isso apenas aumentava minha curiosidade. Certa noite de lua cheia, acordei com calafrios. Todos dormiam. Silêncio. Senti medo. Um tremor estranho subiu pelas minhas pernas e um frio inexplicável tomou conta do meu corpo. Impulsionado, sei lá pelo que, talvez pela curiosidade infantil, desci da rede, tirei o camisolão que a Mindinha me obrigava a usar para dormir, e vesti o calção de sempre, que todos diziam já estar duro de sujeira, tantas vezes eu o usava. Me esgueirei por baixo da rede do meu irmão. Com muito cuidado, abri a porta do quarto e escapei para a saleta que se comunicava com a cozinha. Não senti o frio que esperava. Muito pelo contrário. Abri cautelosamente a porta que dava para o quintal e recebi na face uma lufada do vento que soprava do Amazonas. O ar suave percorreu meu corpo franzino e aumentou meus arrepios e meu medo. Em Macapá, depois de certa hora, a única luz que restava era a da lua.
Olhei para o céu. O satélite brilhava contribuindo para me amedrontar. Eu e meu calção saímos furtivamente, atravessando o quintal. O cacarejar das galinhas me assustou mais com a possibilidade de um escarcéu. Pulei o muro que separava o quintal da rua. Não foi muito fácil.
Precisei escalar algumas caixas que, empilhadas, facilitaram minha escapada furtiva. Caí do outro lado e senti uma leve dor na perna esquerda. Me aprumei e conferi. Não sofrera nada grave. Levantei e caminhei alguns passos na calcada até pisar na rua coberta com piçarra. Meus pés acusaram o pequeno sofrimento que as pedrinhas me infligiam. Machucavam meus pés.
Valentemente continuei. Eu queria ver a Pedra a luz da lua. Por que? Não sei.
Atravessei a rua e caminhei até a casa do meu amigo Cabeçudo. Portas e janelas fechadas. Bem que ele poderia acordar e me acompanhar na aventura, se não tivesse medo da Pedra.
– Não. Ele tem medo da pedra… – pensei comigo mesmo. À medida que caminhava em direção ao Macapá Hotel e da mureta, que fragilmente o defendia da maré alta do Rio Amazonas, uma sensação desagradável tomava conta de mim. Eu tinha receio. Não sabia de que, mas tinha. E muito. Me sentia ameaçado. A sensação estranha me deixou em estado de alerta e crescia a medida em que andava. Ao mesmo tempo, o medo aumentava minha curiosidade. A mesma bisbilhotice não me permitia recuar. O barulho suave que meus pés produziam, quando se chocavam à piçarra, marcava minhas passadas e ajudava a diminuir o medo porque prendia minha atenção. Logo percebi que além do meu ruído, outro mais forte, e arrastado surgira logo atrás. E aumentava. E se aproximava. Apertei o passo, mas o medo fazia com que minhas pernas ficassem presas e diminuía minha velocidade.
Foto: Renato Ferreira
– Será uma alma do outro mundo? Seriam os fantasmas que cuidavam da Pedra?
Com esforço consegui apressar o passo.
A essa altura o barulho na piçarra já estava próximo. O medo me impedia de olhar para trás. Enquanto tentava saber o que estava acontecendo, ouvi uma voz cavernosa.
– O que tu estás fazendo aqui, a estas horas da noite?
Aí sim. Consegui saber quem era. Para meu desespero era o seu Congó. Um homem negro e forte que já tinha sido escravo e fugira para o quilombo do Curiaú. Ganhava a vida fazendo biscates. Muitas vezes era contratado para assustar as crianças que faziam malcriação.
Diziam que comia crianças. E eu acreditava. Nessas ocasiões, com as mãos, revirava as pálpebras, expondo o vermelho da mucosa, conseguindo um aspecto assustador que sempre
me aterrorizava desde os primeiros anos de vida.
– Não tenha medo. Não vou lhe fazer mal.
Não teve jeito. O medo se tornou pavor.
– Tenho que fingir, se não ele vai me comer – pensei.
Blefando segurança, respondi que não tinha medo. Andamos lado a lado. Eu magrinho, sem camisa, encolhido pelo temor. Ele um homem enorme com tórax avantajado, braços longos e mãos grandes. Suas passadas arrastadas produziam um sibilar que parecia de cobra se arrastando na piçarra. Carregava um paneiro pendurado através de uma cinta que cruzava o tórax. Na mão uma vara de pescar. Usava camisa branca surrada, aberta no peito, feita de sacos de aniagem doados aos pobres pela dona da única mercearia da cidade, minha avó.
-Vou pescar – disse sorrindo.
Nunca lhe tinha visto os dentes. Tão brancos que faiscaram à luz da lua. Caminhamos calados. A dupla mais improvável na hora mais incerta. Com lágrimas insistindo em molhar meus olhos os esfreguei com força para disfarçar.
Aos poucos nos aproximamos da mureta em frente ao Macapá Hotel. Eu fascinado pelo homem, pela lua, pela Pedra e pelo medo. Não conseguia mover minhas pernas para correr, como era meu íntimo desejo. A essa altura eu não sentia medo, sentia pavor. Tremia antecipadamente, imaginando o que aquele homem poderia me fazer. Mental e gradativamente fui me reestruturando e resignado permaneci ao lado do seu Congó. Afinal, nós dois estávamos à procura de alguma coisa. Ele de peixes, e eu da Pedra. Eu, do piar. Ele, da comida. Eu, do sonho.
Ele, da realidade.
-Vem cá menino, vamos nos sentar aqui – disse ele, me puxando pela mão e me indicando um lugar na mureta.
A maré estava alta e as ondas, apesar de fortes, batiam na parede com suavidade.
Pareciam querer ouvir a história que o velho ia me contar.
– Maré cheia — falou.
Olhei para a Pedra. Estava linda. A luz da lua ressaltava suas curvas. Semelhantes às de uma mulher. O velho olhou para mim. E só aí vi que seus olhos eram cândidos e suaves, como o olhar de um puro. O luar destacava sua barba branca.
– Tu conheces a história da Pedra, meu filho?
– Não senhor- respondi.
– Vou te contar.
Acariciando minha cabeça, com mãos calosas e fala arrevesada, me contou que muito antigamente, mesmo antes de ter vindo para aquelas bandas, vivia ali uma tribo que se chamava Tucujú. Acrescentou que esse nome vinha da árvore do tucumã que tem frutas deliciosas e servem para fazer mingau ou vinho.
-Foram os primeiros a morar por aqui. Muito antes de se bandearem para o lado dos franceses e partirem para a Guiana – afirmou. Pudera, eram mais bem tratados por eles do que pelos portugueses! Dizem que muitos foram para o reino da França e nunca mais voltaram.
– Todos os dias um guerreiro saía de madrugada em busca de alimentos. Solitário,
caminhava pela praia para flechar algum peixe. Na tribo, uma linda mulher se encantou pelo guerreiro. Atendia por nome de Iara. Quando o guerreiro saía na calada da noite e a lua passeava pintando tudo de prata e o vento refrescava a terra, Iara, com seus cabelos longos, negros e lisos, levava à beira da praia seu perfume quente, rescendendo a pau rosa, para observar o homem. Resolvera seduzi-lo. Pensava, sorrateira, que tinha meios suficientes para fazê-lo esquecer de si e amá-la. Não se comparava às outras índias que competiam pelo amor do guerreiro. Fingiu que não o desejava usando um meio sorriso. O olhar furtivo e o corpo bonito acabaram por cativá-lo. O amor foi intenso e aprovado pela lua que os espiava na madrugada.
A namorada passou a acompanhar o guerreiro todos os dias e aguardava seu retorno até o sol se pôr, atrás da Lagoa dos índios. Voltavam juntos, enlaçados, à maloca. Em um dia especial, depois de fazer amor na praia na madrugada, o guerreiro partiu em sua busca diária. A amada ficou à espera, no local de sempre.
Foto: Manoel Raimundo Fonseca
– Logo ali, onde fica a Pedra – disse seu Congó.
Eu me encolhi com o frio do vento, e ele me aproximou do seu corpo para me proteger.
– Pois é, o sol se levantou e se pôs, o tempo passou e o guerreiro não retornou. A indiazinha continuou a esperar. Chorando muito, como fizera todos os dias, Iara esperou, até que morreu de tristeza.
– Sabe, menino, a lua se compadeceu da mulher e chorou com ela. As lágrimas da lua
caíram justamente no mesmo lugar que estava a indiazinha e misturou as suas às dela. Das lágrimas e do corpo da moça nasceu a Pedra.
Seu Congó, vendo que eu chorava, acariciou, mais uma vez, minha cabeça com suas mãos calosas e aconselhou.
– Vá para casa, menino.
*Contribuição de Fernando Canto.
**Texto que recebeu Menção Honrosa no Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras (AML), em 2022, na modalidade Conto.
Eu achei a caixinha de música no sótão. O estranho é que desde os doze anos eu não subia ao sótão. Eu achava que era por preguiça de subir os quase quarenta degraus da escada em caracol.
Culpava também meus acessos de espirros no contato com pó. E como havia pó no sótão. Dentro dele os móveis de minha avó estavam cobertos com panos e pareciam túmulos.
Última vez que eu havia estado no sótão foi por ocasião de um jogo entre os times da escola em que criamos bandeiras e eu precisei de pano colorido. Mesmo assim desci rapidamente, largando a única janela aberta o que fez com que mamãe durante a primeira chuva, vendo aquele rio de água descer pela escada, me aplicasse umas palmadas. Hoje eu sei. Eu tinha medo era do escuro do sótão. Tinha medo do seu espaço sempre em silêncio.
Depois achei a caixinha de música. Não, aí então eu criei coragem. Mas também eu já tenho oitenta anos. Agora subo as escadas com o auxílio de uma bengala de cabo rugoso. Lentes de grau espessas e uma paciência que nunca imaginei que criasse. Um pé por vez, pausadamente, como se ensaiasse um passo de balé. Demoro muitos minutos para vencer todos os degraus da escada. E cada dia parece que ela ganha um novo degrau. Antes eu os conferia. Agora deixei de fazê-lo.
Às vezes a roupa me pesa um pouco a mais e eu me dispo, atiro a calça, a camisa, a cueca e os chinelos escada abaixo e eles caem com um barulho de lata no chão. Deve ser pelos botões da roupa e o chinelo com biqueira de aço antiderrapante. Não tenho medo de atingir ninguém com meus pertences. Moro só. Todos partiram.
Da única janela do sótão posso vê-los. Digo, posso ver suas lápides que eu mesmo fiz com um desenho único para cada uma das cinco cruzes no jardim. A menor é a do nosso cão. Morreu de uma descarga elétrica. O único cão que eu soube que morreu atingido por um raio quando urinava debaixo de uma tempestade, em sua árvore favorita.
Da janela eu vejo cada um deles. E ela minha esposa. Era dela esta caixinha de música. Ganhou de presente num bingo da Igreja, mas nunca se afeiçoara a ela. Certo dia quando eu quis saber onde estava respondeu que havia perdido.
Quando ela morreu atropelada por um bando de borboletas enlouquecidas em disparada, fugindo de um incêndio, procuraram a caixinha para entreter uma menina de nome Anne Frank que chorava no velório, entediada. Ninguém a achou. Ficou por isso. Esta ocasião já morava aqui onde moro hoje. A casa era recém-construída. Eu recém-viúvo, os óculos recém-comprados, a unha recém-cortada e ela recém-vítima.
Fazia trinta anos que eu viera de Macapá. Nunca mais regressara. Fiquei só. Desliguei-me do emprego e comecei a pintar. Pintei as cercas que circulam a casa. Os muros. Os sacos de supermercado. As paredes da casa. A mim mesmo. Pintei-me todo.
Por fim não havia amigos que me visitassem ou que me telefonassem, cobrando notícias. Os dias eram enormes e as noites eram dias escuros. Não tendo nada mais a pintar.
Eu ia ao sótão todos os dias. E acionava a caixinha de música. Ouvia as melodias que eram cinco. Ouvia-as inteiras por várias vezes. Depois com saudades de todos, chorava. Estranhamente, um dia, comecei a pintar as lágrimas.
Luiz Jorge Ferreira
*Do Livro Antena de Arame – Rumo Editorial – 2ª Edição (2017) – São Paulo – Brasil.