BLEQUEFRAIDA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

No Carnaval deste ano, a Blequefraida, filha do vizinho, pulou a cerca e foi conferir no quartinho de trás de casa se eu era mesmo bom de cama como diziam por aí. Ela ia desfilar no Piratão, uma escola de samba lá do Trem. Estava toda arrumada e linda, era uma das passistas. Iria de tapa-sexo.

Fiquei um tanto abalado com essa história, juro. Eu nunca fui de me gabar e nem tinha as medidas sexuais que rolava na lenda urbana sobre minha distinta pessoa. Hehehe! Mesmo assim eu mandava bala sem grandes esforços. A Bleque que o diga.

Mais tarde eu fui até o sambódromo porque iria sair em outra escola, uma de acesso, lá do meu bairro, o Jacareacanga, convidado pelo presidente Costa Barriga.

Antes de iniciar o desfile fui bisbilhotar as outras escolas para ver a organização das alas. Na frente do portão encontrei com ela, justamente conversando com Laive, uma destaque dessa escola. Essa mulher escultural saía em todas as agremiações carnavalescas.

Eu já tinha passado a rola nela, tinha namorado com ela, ia até em restaurante jantar. Tu é doido, é? Ela me meteu um chifre sem tamanho. Até hoje ando meio corcunda por causa isso. A Laive era muito viva, mano. Se casou com um ex-padre de família tradicional de Macapá, pensando que ia se dar bem, mas se deu mal depois, Pensava que o ex-religioso ia ter uma puta pensão da Santa Madre Igreja. Era uma ninfomaníaca. Malandra que só.

As duas conversavam sambando. Eu me aproximei e elas sorriam com aquelas bocas glamourosas cheias de lindos dentes brancos. Pediram-me uísque. Queriam um “esquenta”. Sabiam que eu trazia um cantil de aço inox tei-tei de Buchanan’s no bolso. Dei a elas e quase que eu fico sem um gole.

Laive pegou o beco e Bleque ficou ali se lembrando da foda da tarde, querendo mais.

Fui embora para o fim da concentração descendo a ladeira da avenida. Falei com muita gente conhecida. As mulheres me puxavam e eu tive que me desvencilhar delas porque senti a barra pesada no olhar dos homens ali perto.

Meu brother Estandibai me avisou que era praeu chamar o pessoal da Harmonia. A escola não demoraria a entrar. Ajudei a organizar as alas. Senti a mão da baixinha Delívere na minha costa. Me avisava que Naice, Vaibe e Loquinalda ainda não haviam chegado.

– Puta merda, Estândi! Reclamei. – E agora, cara? Como é que a gente vai fazer se elas não aparecerem?

– Sei não, chefe. Ele me encarou, com aquela cara de porre permanente.

– Fala com o Émersom Cupu pra ele ligar pressas porras agora, senão o carro vai sem destaques e aí já era.

Ele saiu cunscascos atrás do Cupu. Voltou dizendo que o Cupu falou que as destaques não eram de responsabilidade dele.

Nem pensar em falar com o presidente que a essa altura estava no carro abre-alas mandando beijinhos pra nossa minguada “torcida organizada”, diz-que.

Um pouco antes dos portões se abrirem para a entrada da nossa escola avistei a gostosona da Laive conversando de novo com a não menos gostosona da Bleque. Elas já haviam desfilado na primeira escola. Chamei as duas e disse que elas iriam ser nossos destaques no último carro. Elas toparam, queriam aparecer, mesmo… Eu e Delívere passamos uns brilhos com nossas cores nos corpos delas e em seguida os guindastes as puseram no alto do carro.

Quando, enfim passamos pelo portão e os seguranças não deixaram ninguém entrar, ainda deu pra ouvir os impropérios das destaques e seus braços varando pelas grades num último esforço de querer entrar.

Ao final do desfile encontrei o presidente com câimbra na boca de tanto sorrir e mandar beijinhos para a torcida e para os jurados, Estandibai bêbado que só a porra estirado em cima do carro abre-alas e as três destaques esperando a desocupação do último carro. Continuavam gritando vitupérios para mim e para as duas destaques arranjadas de última hora.

O presidente Costa veio me falar que até perdoava a minha “louvável atitude” de substituir as destaques. As oficiais não desfilaram porque o táxi em que vinham não conseguiu o acesso nas ruas para chegarem a tempo. E porque demoraram para se montar.

– Montar? Como assim? Indaguei, me fazendo de besta.

– Sim, montar. Disse o presidente Costa Barriga. – Elas são gays, são transformistas. Elas se montam. E o nosso enredo, Ó pateta, é sobre as diferenças sexuais. Sobre o sentimento dessas pessoas. Se não desse prelas virem no carro, ele devia vir vazio. Disse, aborrecido, olhando para mim e em volta, no que foi muito aplaudido pelos participantes do desfile.

– Presidente, quero que tu te fodas. Não vou ficar aqui neste palanque de viado. Nem vou mais te apoiar para vereador. Disse a ele bem enfático, com todo o meu orgulho e machismo.

Saí da dispersão com Laive e Blequifraida sob vaias, tapas e ameaças, coberto de lama que nos jogaram. Havia chovido antes do desfile. Felizmente, no meio da turma que nos vaiava, tinha umas pessoas que conheciam minha fama e nos protegeram de levar mais porrada.

Fomos a uma padaria, a pretexto de tomar café e nos limpamos da lama. Depois consegui pegar um taxi e fui com elas beber uísque em casa, transar e dormir, nós três.

Acordei pensando em aceitar o convite da vizinha para sair no Piratão no próximo ano, desde que junto com a Laive, a gata que voltei a me apaixonar para com certeza ser corneado de novo.

 

As últimas reflexões de um bêbado quase sensato – Conto Bukowskiano de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Conto Bukowskiano de Lorena Queiroz

Em sua visão distorcida e alterada pelo alto nível de álcool em seu sangue, se concentra em uma corda – Que merda de nó difícil de arrumar. Agora tem que fazer curso de forca pra conseguir se matar nessa merda! Bem, vou passar essa parte aqui por cima dessa viga. Essa cadeira deve servir, aguentou os cem quilos da velha Amália, vai aguentar o peso desse velho otário que só quer sair deste mundo.

Mas eu não saio daqui sem música! Entrei nesse mundo sob o berrante do capeta, certeza! Vou escolher uma playlist para deixá-lo. Hum, Jards Macalé. Sem essa é uma boa escolha pra quem quer se matar, ô letrinha que já é uma baita ajuda.

Inauguro meu porre de despedida, aqui falando sozinho. Vou partir bêbado dessa merda. Não aguentei a vida no pelo quem dirá a morte. E quem vai pra casa não se molha. Não é assim que dizem?! E também, eu sei que anos me deixaram cada vez mais sozinho, além de toda essa cagada que eu me acostumei a fazer. Não reclamo, o isolamento me ajudou a gostar cada vez mais da minha companhia, hoje eu sou o único que bebe comigo. Vinho tinto com cerveja! Melhor ressaca, mas não pretendo estar aqui para recebê-la !

Merda, soluço! Não bebe rápido demais velho burro! Caralho, como eu amo essa sensação de foda-se que os entorpecentes trazem. Engraçado, nunca fiz apologia a nada, faço apologia às experiencias. E claro, experimentei alguns aditivos para sentir, para viver algumas coisas, deixa eu ver: álcool, LSD, maconha, me apaixonar, mas o álcool sempre foi meu carro chefe.

E hoje nenhuma dessas coisas fazem sentido pra mim, ou fazem, já que o que me trouxe até aqui foram esses dias: dever grana, levar chifre, transar com desconhecidas, trair quem ama, amanhecer na rua bebendo com gente mais triste que eu, essas coisas. E Como eu me irritava quando não podia ser livre, puta que pariu! Quem mais sofreu com isso foi Alice, a primeira que me deixou.

Aquela desgraçada misturava metade da minha cerveja com outra sem álcool, queria iludir meu fígado, doida. Eram tantos os cuidados comigo, mas quando fiquei desempregado, escondia a porra de um vinho caro que ganhou da tia. Esfregava todos os boletos do mundo na minha cara, meu rabo já tinha um código de barras. Quando o amor acaba até as moedas são cobradas. Foi embora, estava saindo caro demais me aturar.

Depois veio a Lourdes, essa me fodeu de tudo quanto foi jeito, fiz dívidas, chorei feito um corno e ela me batia na cara, mas me deu anos de cu sem reclamar. Acabou que me trouxe bastante alegria, até o momento que o filho da vizinha lhe chamou pra trabalhar no mercado dele e ela se tornou sua esposa. Por fim a Bia, a última que me deixou, meu antigo e morto casamento. Enjoei dessa música, peraí, agora sim So, so you think you can tell, heaven from hell?

A Bia amava essa música, foi a última paixão da minha vida. Engraçado que ela me fazia recordar da minha infância, família. Coisas que eu não pensava por iniciativa própria. Foi ela que guardou essas fotografias, vamos ver. Como eu tinha cabelos. A casa na praia, nunca mais retornei depois disso.

Bia foi a única que não escolheu ir. Engraçado pensar que um velho teve uma mãe, queria lembrar mais da voz dela. Eita, um fodido que agora no fim da vida está lembrando das três que atanazaram alguns dos meus anos, respectivamente crente, aposentada e morta. Nem sei quem teve o pior destino. Ah, enfim consegui ajustar essa corda. Hum, o que temos aqui? Como não tinha te visto antes, simpático Cabernet? Vamos ter que adiar mais uma vez essa execução.

Eu (editor deste site) e Lorena Queiroz.

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora contista e cronista. E, ainda, mãe de duas meninas lindas, prima/irmã amada deste editor.

O Século XXI…se molhou! – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O mundo ia acabar em dois mil. A única pessoa que conheci que tinha muito medo foi o Henrique e para ele acabou mesmo, a primeiro de janeiro de 2000. Sumiu no medo. Muito mais cedo que a sua mãe que tinha um enredo monstruoso de doenças e enfermidades, aquelas que ficam no rodapé das enciclopédias médicas e recebem três a quatro nomes de ilustríssimos doutores. Médicos e professores, que descobriram seus sintomas, suas entranhas e suas estranhas formas de tomarem o corpo do ser humano. E a elas dão seus nomes. Delas, ela tinha medo, mas não tinha medo da mudança do século, coisa que ela nem sabia o certo o que era.

Às vezes confundia essa denominação com a mudança do itinerário do ônibus Pedreira Nazaré, que na sua cabeça em vez de ir pela Praça Batista a Campos poderia margear Belém pela margem do Rio Guamá. Isto ela imaginava enquanto dava os nós nos arremates dos chuleios de alfaiate que aprendera em Oriximina. Para terminar os bordados e entregá-los a tempo de festas e formaturas, chamava Henrique para entregá-los a tempo de dar tempo.

Recomendava cautela e abrigo das chuvas, que naquela região cuidam de cair aos montões, assim que um incauto sai à rua todo engomado de branco, de sapato recém-engraxado ou comendo tapioca.

Henrique dobrava as roupas pelo avesso para conservar o passamento e saía sempre acocado para que a chuva não o visse. Levava um saquinho com carvão moído, uma simpatia para espantar as chuvas da tarde. Não tinha medo de aguaceiros, sabia as rezas contra trovão, faísca, relâmpagos e corisco. Só não sabia de reza contra mudança de século.

Isso ele não sabia. Consigo sempre pensava que se mudasse o século ele podia virar mulher. Ou nascer catita e ser apedrejado pelos meninos do bairro. Ou nascer vala, cheia de água podre e rãs. Tornar-se parte das águas empoçadas, protegidas pela mãe d’água. Riu pensando em nascer sabiá. Amava as mangas coloridas e cheirosas, em que eles todos prosa passavam as manhãs, saltando de uma para outra, enchendo o papo e gorjeando felizes. O tempo fechou enquanto ele pensava nos sabiás.

Caiu uma chuva que não respeitou nem as rezas nem as promessas e muito menos o pó de carvão soprado com força na rua, ela toda virando um rio. As roupas estavam ensopadas, as dele e as da entrega. Henrique começou a chorar. Só piorou as coisas porque lágrimas eram mais água. Pensou em subir em uma das mangueiras da praça, subir bem alto, mais alto que o alto da chuva. Passar de onde os sabiás ficavam, chegar o mais próximo do sol.

Primeiro colocou a roupa embrulhada em sua camisa, que para não atrair chuva, não era de cor vistosa, o que não havia adiantado muito. Colocou um pé após o outro e foi subindo como pôde, passando pelos galhos mais grossos, depois pelos mais finos, cruzou com os sabiás em seus ninhos, assustados com aquele intruso e foi subindo aos galhos mais e mais finos, enquanto a última noite do moribundo século se ia. Ninguém viu se ele voltou. Mas as entregas foram feitas. Todos foram às festas, com roupas de festa de fim de ano e de fim de século.

Eu mesmo recebi um lenço de seda que deixei sobre a mesa. Cheio de estórias como esta.

O JULGAMENTO – Conto de Alcy Araújo – (contribuição de Fernando Canto)

Conto de Alcy Araújo (contribuição de Fernando Canto)

O juiz entrou com sua toga e sentou-se gravemente na cadeira negra de espaldar alto. Fez-se, então, um silêncio que podia ser cortado com uma faca.

Com a chegada do juiz, aconteceram as coisas mais comuns, já previstas em lei, como inquirição de testemunhas, etc, etc.

O réu, vestido com uma túnica azul, de asas e auréola dourada, parecia não prestar atenção a nada, salvo ao voo de uma pequena borboleta amarela, que estava na sala há temos imemoriais.

O promotor levantou e fez a acusação, erguendo os braços para o alto. Outras vezes apontava o dedo nicotinado para o réu que olhava a borboleta. O juiz, muito grave, piscava por trás dos óculos. Os jurados fingiam muito interesse, enquanto, às escondidas, comiam pipocas. E quanto mais comiam pipocas, mais pipocas apareciam. Todas as pipocas do mundo estavam ali.

As palavras do promotor cerziam a acusação, saindo lisas e claras. Mas eram absorvida elo candelabro de cristal e desapareciam completamente. Cada qual à medida que escorregavam da barba do orador. Não ficou nenhuma na sala, por mais estranho que pareça.

O advogado gordo, que lembrava um pato obeso, comia as folhas de um grosso processo, lentamente, sem pressa, durante todos os dias em que falou o promotor que, ao terminar a sua peça acusatória, tinha a roupa em tiras e os cabelos brancos e compridos.

Então o advogado, com o ventre cheio do processo, se levantou do saco em que estava sentado e falou ..Mas ninguém ouviu a sua voz. Foi um silêncio angustiante. Para quebrar o silencio um velho gritou nas galerias. Aí aconteceram muitas coisas inesperadas. Todo mundo gritou para apagar o silêncio.

O juiz com as listras verdes da toga, aparecendo mais acentuadas e emanando uma certa iridescência, cresceu na cadeira. E bateu com o malho na mesa. Pá-pá-pá! Até que o malho criou asa e saiu pelo forro.

Nem assim cessou a gritaria. O meritíssimo, sem malho, pegou um dos braços amputados que estavam sobre a mesa e começou a bater com ele, até que a mão se deteriorou e os dedos se espalharam entre os jurados e se misturaram com as pipocas e se multiplicaram.

Com pouco tempo, havia tanto de pipocas como tanto de dedos. Aí o réu deixou de olhar a borboleta e falou aflito: Parem com isto, pelo amor de Deus!

E todo mundo parou. O juiz viu que nada tinha afazer e esboçou um gesto para o advogado gordo. Ele também fez um gesto, que os jurados fingiram compreender, batendo das vestes os dedos e as pipocas.

A defesa foi feita de modo tranquilo, com o advogado falando em silêncio. Quando muitas luas tinham passado, os jurados se levantaram e se recolheram a uma sala de vidro, para deliberar. De fora, apenas, eram percebidos os seus gestos desesperados, durante dias e noites, em que cresceram os figos da figueira.

Foi preciso que o réu tomasse a deixar de olhar para a borboleta e falasse com a voz cheia de angústia: Vamos terminar com isto, pelo amor de Deus! Muito graves, com as suas roupas pretas, os jurados voltaram. Um deles, que aparentava ter entre sete e nove anos de idade, assumiu a universal postura de líder, e transmitiu o veredito: Culpado!

O teto rachou, no momento em que o jurado-líder pronunciou a palavra fatal e envelheceu quarenta anos. Uma porta se abriu e na moldura apareceu um homem sem braços. Olhou para os presentes, que imediatamente se transformaram em auditório do mutilado. Neste ponto ele bradou, com palavras roucas, que arranhavam a perplexidade geral: Que fizeram dos meus braços? Quem espalhou meus dedos pelo chão e o meu sangue pelos móveis?

Como ninguém respondesse, aproximou-se da mesa do juiz. Mandou que colocasse o braço no lado esquerdo. Já com o braço, pôs-se a juntar os pedaços do outro braço, os dedos e armá-los, como brincam com um quebra-cabeça. Quando o braço ficou inteirinho, com mãos dedos e tudo o mais, ele mesmo o colocou no lado direito. Ajoelhou-se e ergueu as mãos para Cristo, crucificado acima da cabeça do juiz.

Ouviu-se, de mistura com a prece do homem, a pergunta necessária: E agora? Vale ou não vale o veredito?

Vale! Gritaram uns. Não vale! Gritaram outros. Fez-se um tumulto dos diabos. Quando o cansaço de gritar fechou as bocas. O meritíssimo lavrou a sentença. O carrasco se aproximou, passou a corda sobre a’ cabeça do condenado no exato momento em que o Cristo desceu da parede tomou pela mão o que ia ser justiçado e desceu com ele as escadas que davam para a rua.

Como um serventuário queria varrer as pipocas pelo chão; todos foram embora, para contar lá fora o julgamento.


*Hoje o escritor, jornalista e poeta, Alcy Araújo, faria 100 anos. De acordo com o também escritor Fernando Canto, este é antológico na literatura amazônica e um dos melhores do fantástico, do mágico e do maravilhoso. Por isso ele, Canto, me enviou este belo conto (Elton Tavares). 

O Julgamento” é, de fato, o melhor trabalho em prosa do saudoso escritor, por quem tenho grande admiração. Hoje, nesta comemoração dos 100 anos do seu nascimento, considero primordial a publicação deste conto, pois ele nunca foi publicado em livro, só em revistas e em blog. Seria uma forma de homenagearmos o caríssimo escritor” – Fernando Canto.

O Sanitarista (Conto porreta de Fernando Canto)

Antigo Aeroporto de Macapá – Foto: site Mais Paisagens Aéreas.

Conto de Fernando Canto

Depois de trinta anos ausente, o médico E. E. Spíndola avistou da aeronave o novo aeroporto da sua cidade natal e a placa de aço com os dizeres “Aeroporto Internacional das Ilhas Redondas Alberto Alcolumbre”. O dia estava amanhecendo em Macapá. Ele apanhou um táxi e mostrou o cartão do hotel ao motorista. Falante que só ele, o taxista lhe disse que pegaria a Rua Comandante Barcellos e seguiria pela Avenida General Ivanhoé, onde existira uma velha igreja em homenagem a São José, passaria por trás do Estádio Monumental dos Góes até o Marco Zero “Presidente Sarney”. Informou-lhe que passaria na rotatória da linha do Equador “Janary Nunes”, que atravessaria a Praça dos Capiberibe pela orla da Praia do Camarão no Bafo, e iria para a Cidade Evangélica para poder contornar novamente a orla em direção ao hotel, pois a Rodovia Praiana estava interditada em diversos pontos.

Ouvira no monitor do carro que havia uma greve de professores estaduais a reivindicar 501% de aumento de salários e a aquisição de instrumentos pedagógicos mais modernos para seus alunos. Também fora informado pelas redes sociais que no centro da cidade estudantes universitários e populares preparavam desde o dia anterior uma manifestação “pacífica” contra a falta de emprego e a corrupção. O médico fez uma cara de espanto, mas concordou com o taxista e seguiram. Ao chegarem ao destino, viu que o hotel tinha quase o mesmo nome de antes: “Macapá Hotel Vale do Tumucumaque”, mas que era agora um prédio de dezoito andares.

Era cedo, então tomou o seu café no restaurante e esperou a hora do evento que participaria. Perto das 09h00 adentrou o suntuoso salão de convenções “Ernestina Libório” e, para a surpresa sua, encontrou velhos amigos empaletosados em busca dos mesmos interesses profissionais.

Eram todos médicos sanitaristas preocupados com um surto de varíola que grassara inexplicavelmente na região, uma doença que parecia extinta há mais de cem anos. Realmente era preocupante. Na foz do rio Amazonas uma peste medieval dessas poderia ser muito perigosa para todas as populações que cresceram ao longo do rio e nas ilhas oceânicas, incluindo a do Marajó, agora um estado federativo importante da região.

E.E. Spíndola tomou seu lugar à mesa e foi apresentado pelo mestre de cerimônia aos presentes como grande referência nacional sobre o assunto daquele importante colóquio científico. Na sua conferência lembrou os dias difíceis como estudante vindo do interior do estado e de sua luta para conseguir se formar e crescer como médico e pesquisador. Muitos amapaenses se emocionaram ao ouvir a triste narrativa.

Abordou o assunto com competência, inclusive referindo-se à história local,  Citando o caso de um surto de varíola ocorrido na década de 1750, quando da fundação da vila que originaria a atual capital do estado. Propôs soluções socioambientais e imunológicas que mais tarde seriam consideradas incoerentes e megalomaníacas pelos mesmos colegas que o ovacionaram de pé quando terminou de falar. Lançou seu novo livro digital sobre o assunto em cerimônia previamente preparada pela editora com quem possuía exclusividade nas vendas e foi cumprimentado pelas autoridades presentes.

Almoçou com o senador Zéfiro Libório, pai do atual governador e seu herdeiro político, após lutas e lutas inglórias contra as oligarquias dos Capiberibe e Góes que se alternavam no poder havia gerações. À noite pegou um superbarco e foi jantar na Ilha dos Caititus, do outro lado do Amazonas. Comeu um prato estranho, mas muito delicioso e, sobretudo muito caro: filhorada ao molho de cupuaçu, uma mistura genética dos peixes filhote e dourada, criada em cativeiro. O prato era preparado com ervas aromáticas, marinado ao vinho e servido com a raríssima polpa de cupuaçu.

E. E. Spíndola foi apresentado a magistrados e juristas da terra que eram clientes contumazes e chiques do restaurante. Estavam acompanhados de lindas e exuberantes mulheres, porém de vez em quando se levantavam para rubricar em I Pad’s processos digitais que os subalternos oficiais de justiça levavam a eles de helicópteros. Pastores, deputados e padres gordos se refestelavam nos pratos principais e nas sobremesas. As elites riam a cada gole de um escocês e entre as baforadas de cubanos. Spíndola chegou a ver uma tentativa de protesto de dezenas de canoeiros ribeirinhos doentes remando e gritando, empunhando lampiões e faixas na escuridão, ato imediatamente dissolvido à bala pelos seguranças locais. A arrogância e o deboche das autoridades presentes causou repugnância no médico. Naquele momento ele percebeu o clima hostil das autoridades e se despediu. Entrou no superbarco, já cancelando pelo celular a visita que faria no dia seguinte às vilas ribeirinhas afetadas pela doença. Decidiu viajar o mais rápido possível para a Europa.

No trajeto veloz observou as luzes de Macapá crescendo ao longe, imaginando o quanto seria bom se as comunidades amazônicas tivessem lugares como aquele restaurante luxuoso que parecia uma redoma protegida do contágio da peste ribeirinha. Pensou em soluções definitivas para a epidemia e devaneou por uns dois minutos.

Próximo ao porto da cidade foi surpreendido por um vergalhão da pororoca que emergiu de repente no meio do rio. Ela veio sutilmente se formando por baixo do canal como uma cobra traiçoeira. Havia migrado nos últimos anos da foz do Araguari devido às alterações geográficas e ecológicas causadas pela instalação de quatro usinas hidrelétricas ao longo do outrora rio do vale dos papagaios.

A onda de arrebentação rompeu como um ser criado pelos deuses, dançarina louca bailando à música do vento, carregando lama e espuma e sedimentos no seu percurso de destruição, sem esquecer de levar em sua primeira vaga o superbarco de passageiros. O médico sanitarista ainda teve calma de espírito ao ver, pela primeira e última vez, antes de se afogar, os jovens surfistas luminosos, de lâmpadas de LED coladas aos corpos, saltarem do nada com suas pranchas de raios coloridos sobre o dorso da grande onda da noite.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Eram anjos montados no macaréu, indo ao encontro das ruínas do forte, um antigo símbolo da cidade.

*Republicado por hoje ser o Dia do Sanitarista.

Dias Iguais (Conto paid’égua de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

1.Caía uma chuva fina e chata. Era a véspera do dia primeiro de janeiro de 2018. Perto da meia-noite eu e meus elegantes parentes fizemos a ceia e desejamos um ano próspero e saudável recíproco, nos cumprimentando e nos abraçando uns aos outros, registrando nossa felicidade em fotos e filmes, mostrando sorrisos lindos em selfies maravilhosos nas redes sociais, até que minha irmã não se conteve e falou sobre a ausência de nossa mãe que havia morrido entalada na ceia de natal com um naco de peru assado. Foi uma choradeira geral que acabou com a festa. Eles se despediram e eu fiquei em casa com a mulher a olhar pela janela de vidro os carros se afastando na chuva.

Ninguém quis esperar as doze badaladas do velho relógio de parede que antigamente encantava os olhos dos meus sobrinhos. Abri o Chandon sem escutar o barulho da rolha estourando, pois lá longe, na frente da cidade, belíssimos fogos de artifício explodiam em cores, desenhando novas estrelas sob um céu escuro e chuvoso. Eu nem reparei no tempo passando. A chuva aumentava de intensidade jogando grossos pingos na vidraça. Bebi a última taça do champanhe e fui dormir.

2. Ao acordar, ainda cedo, chamei Norya para caminharmos como fazíamos todos os dias. O dia amanhecera calorento, mas com indícios que não choveria mais. De fato, o sol surgiu nos dando a luz que a esperança traz nesses momentos ritualísticos de transição para um tempo bom que todos querem. No percurso as pessoas se cumprimentavam desejando sorte, saúde e prosperidade, o que, aliás, é uma coisa que gosto nesse período porque elas mal falam com a gente e nem sequer nos dão um bom dia no resto do ano, mas agora são educadas e comunicativas. Agem com cortesia e educação como se fossem sempre assim. Nessa época muitas delas parecem mesmo felizes, e eu reitero que acho bacana. Estou convicto de que não faço parte da plateia que as aplaudem em suas atuações anuais. E ademais todos vestem suas máscaras para se dar bem. Inclusive eu no meu trabalho, onde tenho que lidar com hipócritas todos os dias.

3. Caminhamos cerca de sete quilômetros em uma hora, como sempre. Falamos do cotidiano, dos filhos que mandamos estudar nos Estados Unidos e que por lá ficaram pelas oportunidades de emprego e segurança, da nossa saudade deles e dos netos, dos nossos trabalhos e da nossa solidão. Às vezes falávamos em viajar, mas sempre aparecia algo que nos fazia adiar o projeto. Era bom falar sobre isso porque já sentíamos o peso da idade e tínhamos que ser sempre companheiros para o que viesse. Eu já tinha uma doença crônica que controlava com remédios, e em Norya foi detectado, mas felizmente depois extirpado um câncer no cérebro, após uma delicada e bem sucedida cirurgia. Mesmo assim ela se submeteu a um doloroso processo terapêutico que a deixou quase irreconhecível por muito tempo.

1. À noite Norya e eu nos vestimos a caráter como no dia anterior e arrumamos a mesa nos preparando para a ceia familiar. Lá fora caía uma chuva fina que parecia não querer parar mais. Antes da meia-noite fizemos a ceia familiar, nos cumprimentamos e registramos nossos momentos particulares. De repente, minha irmã, tão sensível que era, começou a chorar falando o nome de mamãe que há poucos dias havia se engasgado com um pedaço de peru assado em plena ceia de natal.

Consternados pela lembrança da matriarca em sua tragédia, meus parentes foram embora nos deixando tristes. Choravam muito sob a chuva que caía até entrarem em seus carros e tomarem o caminho de suas casas. Eu abri uma garrafa de champanhe e fiquei olhando o céu estrelado das cores dos foguetes que explodiam no céu escuro para as bandas da beira-rio. A chuva engrossara e batia com força nos vidros da janela. Tomei a última taça e fui dormir.

2. De manhã bem cedo acordei Norya e fomos caminhar como sempre o fazíamos. E o sol surgiu trazendo novas esperanças. Os passantes nos cumprimentavam felizes porque era o início de um ano que prometia ser melhor que o anterior. Eu comentava com minha esposa sobre como nossos colegas de caminhada eram corteses neste dia, já que eles nunca nos cumprimentavam, o que me fazia sorrir de contente e dizer a ela que gostava daquilo porque cada um põe a sua máscara no seu dia-a-dia para sobreviver, igualzinho a mim no meu trabalho.

3. Caminhamos como de costume aproximadamente sete quilômetros em uma hora. Falamos de tudo: dos filhos e netos no estrangeiro, da imensa saudade deles, das nossas ocupações profissionais e da nossa força para continuar vivendo sós, sempre colados, afinal estávamos ficando velhos e já havíamos passado por momentos terríveis de doenças graves. E Norya passou por momentos críticos durante o processo de cura de um câncer no cérebro.

Certa noite, quando preparava a ceia da família em casa me dei conta que aquilo vinha se repetindo como uma liturgia todos os dias do ano. E fiz um esforço supremo para lembrar algo que não fosse a nossa vivência dentro dos acontecimentos dessa noite e os do dia seguinte. Não consegui.

Antes dos parentes elegantes chegarem reparei que o relógio que antigamente encantava as crianças da família batia nove horas. E vi que seus ponteiros continuavam girando em sentido horário. Olhei-me no espelho da antiga cristaleira da sala e enxerguei minhas barbas tão brancas quanto a de Papai Noel.

Também reparei que a ausência de Norya e de alguns dos meus parentes era uma constatação inelutável, enrolada como um paradoxo de tempo em minha memória. Era como se fosse um ferro em brasa que me penetrava o peito sem queimar, algo que quer se lembrar, mas encontra um paredão inacessível. Pessoas e carros viravam sombras embaixo da minha janela sob a chuva contumaz e o brilho dos fogos de artifício colorido caía lento no espaço escuro da noite. Eu começava a me embriagar com a última taça de champanhe e já não conseguia dormir.

De manhã bem cedo em um desses dias de chuva fina quando as notícias dos jornais são sempre as mesmas, acordei a sombra de Norya para a caminhada matinal. O sol já se abria e as pessoas se cumprimentavam e nos desejavam saúde e prosperidade, embora não tivessem mais o entusiasmo e os mesmos sorrisos de antes. Ao chegar em casa encontrei o celular da minha mulher em cima do sofá, e ao manuseá-lo vi um calendário do ano de 2015. Certamente ela havia tentado sair desse ritual que nos prendia a um tempo pesado e mórbido que se derramara sobre a vida de todas as pessoas da cidade. Comecei a lembrar dos acontecimentos repetidos e num esforço sem precedentes não bebi mais champanhe e abri a janela de vidro para a chuva entrar em casa até amanhecer o dia.

Foi Norya que me acordou desta vez, não a sua sombra. Caminhamos entre carrancudos passantes e uma chuva torrencial lavou a calçada enquanto o rio Amazonas dançava espocando suas águas no muro de contenção.

Norya me olhava assustada e cúmplice, porque sabia que o ritual que participamos tantas vezes era imprescindível para vivermos. Imperioso era não morrer com nossos históricos apagados pelos cumprimentos, desejos e lembranças num mundo moderno que comprimia uma soturna solidão estampada no rosto dos caminhantes, os mesmos que punham suas máscaras demoníacas nas festas de fim de ano.

À noite vesti meu velho terno branco e Norya o seu melhor vestido. Ninguém veio nos visitar. Jantamos à luz de velas e adormecemos felizes ouvindo o barulho da chuva na vidraça.

*******

De manhã cedo foi Norya que me acordou e não a sua sombra. Então caminhamos sorrindo entre o vai-e-vem dos passantes, embaixo de um temporal que nos lavou a alma. O ano novo se aproximava novamente. Era a véspera do dia primeiro de janeiro de 2035.

Natal – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Quando a saudade sobe os degraus do tempo
E vem sentar no mesmo sofá em que Ontens, eu desenhei Amsterdã.
Agora é tempo de balançar os lençóis para que caiam as digitais.
Enquanto os relógios cruzam por várias vezes os anos e os meses, em por várias vezes eu vi Abril se espreguiçar na varanda.
Agora é tempo de sacudir as toalhas para retirar as migalhas de suor e shampoo que cicatrizaram nela.

É tempo de varrer os desencontros…
Por ao sol os desencantos.
Espreitar as lembranças que chegam pelo elevador.
Beliscar as cicatrizes que te mostram saudades caladas.
Voltar ao espelho para olhar de novo os olhares ali espelhados.
Polir os sorrisos para uma nova geração de vida.
Depois sentar a cabeceira de qualquer lugar.
E ver o horizonte se continuar no horizonte.

Em dúvida se teremos a companhia do Sol ou da lua, desenhar… desenhar …
Qualquer coisa azul, imensamente azul.
Pode até chama-la de você… ou dizer-lhe… Eu…
Abrir as portas, as janelas, os portões, as vírgulas, o ponto de exclamação, ruídos de trovões, e por fim silêncios…
Muitos deles são pequenos abismos onde reside coberta de limo, indiferente, a neve, e ao calor sufocante, toda a saudade que com você já teve intimidade.

Poderíamos pensar que foram clonados, um do outro…
Você não deixou ela olhar com paixão seu coração.
Por isso caminhe… volte ao início… desenhe… pode perguntar ao vento… que desenhar…
Ele dirá… A mim!
Ele rodopiará… em torno de seus pensamentos.
E se afastará espremendo nele seu desejo de ser feliz.

Quinta-feira a dor entrará no trem e partirá…

Eu espero o Natal para desenhar libélulas sob a luz descomunal da sua ausência.

*Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite moram os dias de Ontem’ – Rumo Editorial – Luiz Jorge.

A Convenção – lindo conto de Natal de Fernando Canto

Conto Natalino de Fernando Canto

O Centro de Convenções daquela moderna cidadezinha no interior da floresta era o palco de um evento religioso bianual da cristandade, de grande importância para nós, teólogos do Novo Olhar.

Após o grande processo de destruição ambiental do planeta ficamos espalhados pela terra sofrendo a ansiedade de vê-la reconstruída e fazendo a nossa parte. Levávamos aos mais necessitados uma nova forma de encarar o mundo e uma nova esperança para evitar os sofrimentos humanos causados pelos incontáveis desastres ecológicos ocorridos até em lugares onde nem se cogitava que eles pudessem acontecer.

Cientistas constataram a grande obviedade que a desgraça ocorrera mesmo devido a ganância dos detentores do capital internacional e o excesso de poder dos países ricos que tiravam a vida de milhões de pessoas pelo mundo afora, sem contar as vítimas de guerras causadas pela intolerância religiosa. Éramos poucos, mas a seriedade de cada um de nós fazia a diferença, aprofundada em detalhes interpretativos dos cânones universais contemporâneos e nos santos ensinamentos de Jesus Cristo.

Todos se esforçavam muito, participando de seminários e congressos pelo país, porque grande parte dos conhecimentos da nossa religião havia desaparecido ou queimado no mundo todo.

Ali, ao lado do grande evento, muitos acontecimentos ocorriam: feiras, espetáculos e exposições, como a de novas descobertas tecnológicas e de máquinas que respondiam perguntas sobre metempsicose e a natureza dos espíritos. Livros curiosos eram lançados e relançados virtualmente em telões, inclusive aqueles considerados sagrados que por séculos vinham intrigando a inteligência dos sábios com seus mistérios herméticos.

Havia debates intermináveis que abrangiam desde o pensamento de filósofos gregos sobre relatos de povos extraterrestres a absurdos que a contemporaneidade não conseguiu mudar.

Eu participava pela primeira vez desse encontro, e já dera minha palestra sobre a existência de Papai Noel Redivivo no Novo Mundo Amazônico e meu testemunho sobre isso em outro tema da programação, portanto estava livre de compromissos. Mas os debates continuavam em outros níveis.

E eu fui guindado meio sem querer – e curioso – a assistir a um deles promovido pelos neoperipatéticos de Rinha, um convento de uma ordem sacra europeia. Chamou-me a atenção o denominado “Aristóteles e o Paraíso”, cujo tema central era sobre a localização geográfica exata do Jardim do Éden. Havia outro, muito singular, chamado “Dançarinos Aristotélicos” no qual se discutia sobre quantos anjos poderiam dançar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha. Os grupos de discussão seguiam um sacerdote-mestre sob as sombras das árvores na praça principal da cidade.

Aristóteles gozava de grande popularidade entre os sábios. Sobre ele corria a lenda da sua imensa alegria quando pôs as mãos em uma das penas verde-claras do anjo Gabriel, descoberta dentro de uma arca envolta em tafetá. Um grupo dizia que a partir dessa pena teria o filósofo reconstruído a pessoa do arcanjo. O grupo oposicionista, porém, suspeitava que a pena fosse proveniente da cauda de um periquito de asa branca, o que proporcionou um grande exaustivo debate entre os participantes. Após a discussão chegaram ao consenso de que a pena teria sido arrancada da asa do anjo na ocasião do seu aparecimento à Virgem Maria para anunciar a imaculada conceição. Presumiram que a própria Virgem Maria embrulhara a pena em tafetá, de modo que ela viesse a ser uma das sete maravilhas do mundo teológico. Para eles Aristóteles teria sido contemporâneo de Jesus.

Outro interessante tema de reverência religiosa que vi nesse encontro foi a respeito da unha de um querubim. Entretanto, o que chamou mais a atenção de todo o congresso bianual e que gerou a maior lotação no Centro de Convenções foi a maravilhosa descoberta arqueológica de um ataúde com acabamento em ouro e prata, onde estava ainda intacta, uma das costelas do Verbo feito carne.

Acho que aprendi muito com essa viagem. Os arqueólogos mostraram outras peças de grande valor teológico advindas de descobertas em expedições perigosas. Não era fácil expor seus nomes e conceitos profissionais e terem que viver em um mundo de fanáticos e ateus. Eles sabiam que como cientistas e religiosos ao mesmo tempo teriam dificuldades de mostrar as relíquias à sociedade e serem somente aplaudidos e reconhecidos.

Nesse meio os vulcões da vaidade explodem rápida e facilmente, e sempre há um lado invejoso e descontente. Mas não deixavam de demonstrar certa genialidade e coragem para afirmar suas convicções e prová-las. Foi muito difícil para eles, segundo seus próprios relatos, mas conseguiram encontrar um dos raios da estrela de Belém, que foi quebrado e guardado por um dos três reis magos que foram adorar Jesus em uma manjedoura, assim como a pequena garrafa de vidro, dentro da qual havia notas musicais, que teriam sido entoadas mais tarde pelas abelhas do Templo de Salomão, de acordo com as antigas escrituras não oficiais.

Mas juro pelos santos sacramentos que de tudo o que eu vi na convenção nada me impressionou mais do que as descobertas. Cometi o pecado capital da inveja, pois não consegui parar de imaginar o rei Baltazar em estado de delírio gozoso ao ver a epifania da estrela de Belém, ao adorar o salvador do mundo e a usar sua arte mágica para quebrar um raio e guardá-lo.
*******

Era tempo de natal e eu tinha que voltar logo para trabalhar nos preparativos da festa para as crianças órfãs da minha vila amazônica ainda em lenta recuperação ambiental. Elas estavam tão ansiosas como eu, ainda que não tivéssemos brinquedos. Contávamos apenas com a esperança e a bondade do Papai Noel. Fui embora com a humildade que cabe a um pobre missionário, saindo da civilização da cidadezinha para minha aldeia de crianças pobres e estropiadas, martelando o cérebro sobre como conseguir presentes para elas quando me deparei com um negro alto, vestido de túnica e turbante. Estava envolto em uma aura radiante.

Entregou-me um objeto dourado e disse: – Imagina e realizarás. E sumiu. Era Baltazar, o mago rei e o verdadeiro Papai Noel Redivivo das minhas pobres crianças que me dera a chave de um tesouro: um pedaço do raio da estrela-guia. Horas depois já refeito da situação olhei para as estrelas. Todas eram pequenas e brilhantes, e delas caiam ao meu redor centenas de brinquedos. Só pude exclamar: – Bendito é aquele que vem em nome do Senhor! Hosana nas Alturas!

 

Querido Papai Noel – Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

– Deixa de coisa! Vamos embora! Papai Noel não existe!
– Claro que existe! E ele vai aparecer hoje pra deixar o presente que eu pedi!
– Espera sentado! Eu vou dormir. Papai Noel pode até existir, mas ele nunca lembra da gente!

O mano maior disse aquilo ao mano menor e entrou para dormir. O mano menor ficou ali, no quintal, sob o orvalho da madrugada, só pensando: “Poxa. Bem que o Papai Noel poderia aparecer aqui com o meu presente. Eu ia correndo acordar o mano maior pra dizer que ele tava enganado pensando que Papai Noel não existe”.

O mano menor desistiu de esperar Papai Noel e entrou no quarto onde dormia na cama de cima do beliche, enquanto o mano maior dormia na cama debaixo. Teve uma surpresa quando viu um embrulho em cima da cama. E acordou o mano maior:
– Olha só! Papai Noel teve aqui e deixou um presente pra mim!

O mano maior, bocejando e reclamando por ser acordado, falou bruscamente:
– Só se ele entrou quando eu tava dormindo, porque eu não vi nada!

O mano menor, abrindo o embrulho:
– É que Papai Noel é mágico! Ele entra nos lugares sem que ninguém veja.
– Tudo bem! Agora me deixa dormir.

O mano menor olhou para o mano maior com um olhar de compaixão:
– Poxa! Ele não deixou nada pra ti, né?
– É que eu já sou grande.

O mano menor falou com um certo ar de reprovação:
– É que tu não acredita nele…

O mano maior respondeu, já se virando na cama:
– E não acredito mesmo! Boa noite!
– Boa noite! E Feliz Natal!

O mano maior ficou ouvindo a oração que o mano menor fazia na cama de cima do beliche:
– Obrigado pelo presente, Papai Noel! Esse carrinho é o brinquedo que eu queria mesmo. O senhor acertou! Só quem sabia que eu queria esse carrinho é esse meu mano maior aí embaixo. Ele não acredita no senhor, mas ele é bacana. Perdoa ele! Agora eu vou guardar o meu carrinho, dormir e amanhã bem cedo eu vou brincar com o presente que o senhor me deu. Boa noite, Papai Noel!

Desligou a luz sem ver o brilho dos olhos do mano maior, que comemorava o fato de continuar mantendo no mano menor aquela chama de fantasia que embala tantas crianças por tantos anos.

Penumbra colorida – Pequeno Conto Poético de Luiz Jorge Ferreira

Pequeno Conto Poético de Luiz Jorge Ferreira

Enquanto mamãe lava a roupa usada na Quarta-feira, quando fomos ao rio assistir o balé do cio dos Botos.
Meu pai morre na sala, em pleno o jogo da Seleção do Haiti…
Na Praça em frente eu encontro um jeito de colocar LED na luz dos Vagalumes.
Enquanto a lua prenhe no Sexto Mês, tece com pétalas de Rosa , roupas para a estrela anã.
No portão, meu terceiro irmão seleciona cantos de Pintassilgos e Curiós, todos uníssonos na terceira voz…habitualmente usada por Tenores, nos Canticos Natalinos.

Doutro lado da cidade, a eternidade recebe meu pai de braços abertos…
Ele pensa em voltar para vir buscar os chinelos, fechar a porta da geladeira, por a tampa da Bic no lugar, aspergir um pouco de Desodorante Phebo, sob as axilas, pode ser que haja fila, e o clima parece que vai esquentar, há também a luz do banheiro acesa, a descarga por acionar, e um pouco de café derramado na toalha bordada sobre a mesa, e muita saudade no corredor.

Um pouco depois da Praça, estranhamente desligada de tudo, a vida caminha com sua bengala de velhinha, chutando polens, cuspindo saliva perfumada, desconhece a próxima visita, e o próximo endereço, caminha de braços dados com a morte, ambas tem tanto em comum.
Ela para e escreve na areia molhada.
…Essas pinceladas com cores do passado…mexem demais.
A morte sisuda até então, a lê.
E morre de rir.

*Osasco – São Paulo – 24.02.2021

O primeiro E.T ao chegar no planeta Terra – Texto Ficcional sobre estranhas visitas e outros casos – Por Luiz Jorge Ferreira

Por Luiz Jorge Ferreira

Desceu no Pacoval.
Antes sobrevoou a Fortaleza, sentiu o odor dos peixes no Mercado Central e imaginou que algum dos seus tinha sido morto…
Sobrevoou o Curiaú e ao passar por sobre Mazagão veio a lembrança que há coisa de 300 Equinócios atrás tinha visto uma cavalgada por esse posicionamento registrado na tela brilhante a sua frente, uma coincidência dessa longitude…latitude atual com a que ficou registrada no visor da Impulsiver nome com que chamava sua Nave…
Esses nativos do Planeta Azul não sobrevivem 300 Equinócios, o que eles chamam anos. Nenhum deles daquele tempo está lá embaixo.
De noite após deixar a Nave em uma dobra invisível do tempo, foi a um restaurante e ficou observando os clientes e ao ver um deles sair do local se auto copiou dele e entrou…não havia necessidade dele se alimentar havia tomado uma super absorção de oxigênio irradiado na linha imantada, que os nativos chamavam de Equador…
Mas já com a cópia implantada do terráqueo que sairá…entrou calmamente e sentou como todos ali faziam… De outra vez ali estivera e absorverá um vinho escuro ao qual os nativos adicionavam um pó branco que chamavam t a p i o c a.

Curiaú Macapá – AP – Foto: Floriano Lima

Ele gostou mais do vinho, era difícil ele manipular a imagem quântica e afasta-la da sua pele semimetalica para flutuar as partículas até seu orifício processador de substâncias alimentares solidas.
Não tocou nessa substância, porém repetiu o vinho…apontando com o dedo…pois falar açaí saia nasalado, o que chamava a atenção dos ao redor…
Seu avisador neutronico vibrou em seu pulso para avisar que depois de oitenta pulsabidades se estraçaria a carapaça com a qual contruira a forma humana do copiado cliente. Tratou de absorver o líquido com rapidez…

E se esforçou a correr quando notou que apêndices deslocadas das suas mãos punham expostas suas armações metálicas liquidas, coloridas de lilás…
Saiu correndo até o prédio do antigo hotel que carregava o ônus do abandono, e destruição, pelo poder público.
Eu estava urinando escondido depois de tomar algumas geladíssimas cervejas no restaurante um pouco adiante…quando me deparei com um barulho de uma chaleira expelindo o produto de sua fervura…olho assustado e deparo com minha cópia se esfacelando em fragmentos fosforescentes que foram ao chão e gaseificaram imediatamente, flutuando minha cara…
Corri muito e bastante…

Anos depois soube que um ser extra terrestre havia visitado o mundo…
E havia indícios que estivera em Macapá e frequentará locais públicos clonando um dos humanos ali presentes, para não ser identificado…
Eu li e ouvi as reportagens a respeito…mas nada comentei…
Quem ia acreditar que acontecera comigo…ainda mais em mim…que sempre bebo muito, e costumo sair para ir urinar nos lugares mais ermos…eu heim!

Mas o dente postiço que foi clonado com a obturação lilalizada,e sendo amalgama metalizado se impregnou da cor lilás…eu recolhi do chão e mandei colocar em um pingente e uso, ela nunca deixou de disparar a sinalizador da presença de metal nas portas dos bancos…
Guardo como amuleto…
Quem sabe um dia o devolva…

Seja bem vindo.

ET’s no Meio do Mundo e a empatia – Conto de Elton Tavares – Do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo” (republicado por hoje ser aniversário do extraterrestre Fernando Bedran)

Ilustração de Ronaldo Rony

Conto de Elton Tavares

Pensávamos que tinha começado em abril de 2020, com o “barulho no céu”. As pessoas comentavam nas redes sociais: “parecia um navio”, diziam. Mas era no céu, sempre a noite. A verdade é que eram ET’s, sim, extraterrestres no meio do mundo, em sobrevoo por Macapá.

Nada de anormal, pois no dia 27 de abril de 2020, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos divulgou três vídeos que mostram pilotos da Marinha interagindo com “fenômenos aéreos não identificados” — em outras palavras, Objetos Voadores Não Identificados (OVNIs). Duas das filmagens são de janeiro de 2015 e a outra de novembro de 2004, mas as três tinham vazado em anos passados. Em setembro de 2019, o Pentágono atestou a sua veracidade.

Além de evidências, múmias não terrestres achadas em uma caverna na Ásia e pinturas rupestres de ET’s, encontradas há décadas, que relatam visitas dos ovnis há milhares de anos. Entre outros milhares de registros ufólogos.

Depois do barulho no céu, rolaram aparições no interior e na Gruta, balneário na periferia de Macapá. Afinal, os ET’s não vieram fazer guerra ou círculos em plantações, mas sim, amizade. Lembrei que há tempos li: “Eram os Deuses Astronautas”, de Erik von Däniken, a Bíblia dos sonhadores com as estrelas e seus povos.

Diferente da obra, nossos amigos visitantes e observadores não são cheios de tentáculos ou cabeças enormes, gosmentos, nem verde e nem cinza, são das nossas cores ou algo assim.

E não foi surpresa para alguns não. Eles já eram monitorados por alguns de nós, terráqueos tucujus. Pois, o Clube de Astronomia do Amapá (Mirzam), a Alcinéa Cavalcante e Márcio Spoth, com seu potente telescópio, além de poetas e biriteiros notívagos, entre outros observadores do céu noturno, manjavam a traquinagem extraterrestre e relatavam observações de Objetos Voadores Não-Identificados (Óvnis).

Foto: Reprodução/ Iphan

E mais. Há muito tempo, alguns deles já viviam aqui, infiltrados, sondando se o lugar era bom mesmo de se viver. Falam até que o Marco Zero do Equador seria o portal espaço/tempo de civilizações de outros mundos e dimensões.

Bem, como o “Stonehenge da Amazônia”, o observatório astrológico erguido há mais de mil anos na floresta do Amapá e descoberto em 2006, mais precisamente no município de Calçoene. Não à toa, o escritor Ronaldo Rodrigues e o cartunista Ronaldo Rony sempre disseram que aqui a gente “Calça o N e marca o zero”. Égua!

Meu amigo Fernandinho Bedran – Arte: Beatriz Santana

Um deles é Fernando Bedran, membro fundador e capitão da Cavalaria Aérea Marítima Subterrânea Interestelar (Camsi). Contatos aqui na Terra com ele mesmo, que aterrissou sua nave na Cidade Velha de Belém (PA) e depois que descobriu os portais, remou para o meio do mundo. Não à toa, o Fernandinho possui conhecimentos teológicos advindos de descobertas em expedições etílicas por outros sistemas solares.

Bedran é um ET bacana que só. Vive falando em micro-universalidade, macro-cósmico, multi-universos, viagem no tempo, múltiplas realidades, seitas e povos ocultos.

Muito longe das darwinistas-hollywoodianas, que sempre pregaram que os manos das estrelas chegariam por aqui com violência e exploração dos recursos. Pé-de-pato-bangalô-três-vezes!

Em um desses papos molhados com o ET brother, no auge de seu platô da inteligência sobre-humana-boêmia-malandra, disse-me:

“Meu caro amigo, Elton, a Camsi tem como atividade principal a cultura, mas é uma cultura considerada insólita para muitos. Nada mais é do que um sarro com as artimanhas do sistema das coisas que nos são escondidas e você tem que descortinar os véus, ir atrás, às vezes cavar um bocado, por isso subterrânea, e também mergulhar um bocado entre muitas outras situações”, explicou a simplicidade de sua Cavaleria interestelar.

E concluiu: “Nós somos dados à capacidade de imaginação e para passar para outra etapa temos que cavalgar, né – risos – temos que navegar bastante, temos que sorrir bastante, ter muita coragem e muita alegria! Esse é o objetivo da Camsi, meu amigo! Um forte abraço!”.

Ou seja, em meros devaneios tolos, como diria Zé Ramalho resumiu que tanto aqui, quanto lá, é preciso descomplicar e ter coragem de ser feliz. Afinal, ninguém manja dos movimentos cosmológicos. E no dizer de outro alienígena porreta, o mestre Yoda, Em uma galáxia (não) muito distante: “difícil de ver. Sempre em movimento está o Futuro.” E, por fim, como diria Raul Seixas: “cada um de nós é um universo” (que desconfio ter sido outro ET que veio aqui tirar um sarro com a gente).

Portanto, queridos leitores, façam amizade com estranhos legais, mas respeitem suas esquisitices. É isso!

*Do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo”, de minha autoria, lançado em 2021.
*Republicado por hoje ser aniversário do extraterrestre Fernando Bedran.

Mitos do Amapá: a lenda do Tarumã – Sobre o Livro de Joseli Dias

Livro de Joseli Dias, que contém este conto – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.

Dizem que, há muitos anos, às margens do Rio Calçoene, havia uma pequena aldeia indígena. Era ali que vivia Ubiraci, curumim conhecedor da fauna e da flora. Desde que nasceu, Ubiraci foi abençoado por Tupã com o dom de falar com todos os animais, fossem eles da água, da terra ou do ar, e com todas as árvores, desde as menores até as que cortavam as nuvens e iam fazer sombra no reino de Tupã. Ubiraci conversava com os bichos e com as árvores, contava-lhes histórias e sabia de tudo o que acontecia no mundo. E foi assim que cresceu em plena harmonia com os elementos, filho da água, da terra e do ar que era.

Imagem do site “TERRA BRASILIS 2”

Um dia, Ubiraci caminhava pela floresta quando descobriu a mais linda indiazinha que seus olhos já tinham visto. Seus cabelos pareciam com as quedas-d’água que despontavam das pedras, onde, por tantas vezes, sentou-se por horas a escutar os pássaros. Seus olhos assemelhavam-se ao anil do céu. Seu rosto jovem lembrava brotos nascendo da terra, ainda indomados. Suas mãos, mágicas, se tocavam o solo, desabrochavam sementes. Se voltadas para o ar, controlavam as chuvas, os ventos e as tempestades. Se apontadas para os rios, domavam as marés, as pororocas e as maresias. Ubiraci, sem saber, havia se apaixonado pela Natureza.

Tronco do Tarumã, navegando o rio Calçoene – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.

Apaixonado, o índio passou a procurar sua amada por toda parte. Com ajuda dos pássaros, subiu na nuvem mais alta na esperança de vê-la entre os abençoados de Tupã. Vasculhou cada recanto da floresta e acompanhou os peixes na imensidão dos rios, mas nunca voltou a rever sua alma gêmea. Acompanhou a pororoca por entre troncos e barrancos, mas não voltou a vê-la. No entanto, podia senti-la no canto dos pássaros, nas brisas da manhã, na calidez da noite e no sussurro sereno das maresias.

Imagem do site “TERRA BRASILIS 2”

Era tanta a paixão que sentia que Ubiraci se esqueceu de conversar com as árvores, com os animais e com os filhos das águas. O dom que recebeu de Tupã foi perdido para sempre. Ubiraci só se importava em procurar pela amada, que julgava estar perdida em algum lugar do mundo. Ele não entendia que a Natureza estava em todo lugar.

Rio Calçoene – Imagem do site “Amapá, minha terra amada”.

Uma noite, quando o mundo dormia, quando os cantos dos pássaros haviam cessado e não se ouvia murmúrio algum no seio da floresta, Ubiraci avistou a Lua, refletida na água. Imaginou que era naquele mundo que sua amada vivia. Foi tanta a sua felicidade que esqueceu-se de ter perdido seu dom. Mergulhou no rio, mas quanto mais lutava contra a correnteza, mais parecia que a Lua se afastava dele. Foi tanto o esforço que fez que as forças o abandonaram, e Ubiraci sucumbiu à morte. Tupã, compadecido com tanto amor, pediu à Natureza que transformasse Ubiraci em uma árvore, no meio do rio, para que fosse lembrado para sempre. À noite, no entanto, quando a maré subia, a árvore estranhamente desprendia suas raízes do solo e navegava contra a correnteza. Imaginando tratar-se de magia, seus irmãos índios cortaram a árvore, deixando apenas o tronco, mas, mesmo assim, o mistério continuou, e eles, amedrontados, deixaram o local, com medo do tarumã, que, na etimologia indígena, significa o tronco que se move.

Os anos se passaram, Calçoene transformou-se em cidade, mas muitas pessoas juram que, ainda nos dias de hoje, o tronco se move, contra a correnteza, subindo o rio.

Dizem que, quando algum morador depara-se com um amor impossível, faz promessa ao tarumã, deixando sobre ele algum presente ou alguma oferenda. Se o tronco navegar rio acima e retornar vazio, o pedido será realizado.

(Autor: escritor Joseli Dias – da obra Mitos e Lendas do Amapá)

Fonte: Blog Porta Retrato.

Sobre o relato acima, assista e escute a música Tarumã, no vozeirão de Amadeu Cavalcante: 

 

“Os patos”, de Rui Barbosa e o Zeca Baleiro

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Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:

“- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.”

E o ladrão, confuso, diz:

“- Dotô, eu levo ou deixo os pato?

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Zeca Baleiro, faz essa mesma citação em sua música “Vô Imbolá”, mas num contexto diferente que pode-se aplicar muito bem ao nosso dia-a-dia, principalmente aos bucéfalos anácronos:

“- Como é por ignorância transito, mas se fosse unicamente para menoscabar de minha alta prosopopéia, dar-te-ia um soco no alto da sinagoga que por-te-ia mais raso do que solo pátrio!”

Não lembro onde achei isso, pois faz anos, mas é genial, não?

Fonte: Aititia.