Foi Don Rei

Conto de Ronaldo Rodrigues, com pequena participação de Thiago Quintas

Foi Don Rei que me enfiou neste ringue. Me convenceu de que eu poderia ser boxeador. E agora estou aqui com estas luvas pesadíssimas diante de um cara de mais de dois metros, bufando, me olhando como deve olhar para a mosca no momento em que vai matá-la com uma palmada. Ele vai me estraçalhar com um sopro, vai me trucidar.

Olho pra Don Rei na primeira fila, com suas três esposas e o harém de amantes por trás. Don Rei ficou milionário com lutas de boxe. Ele que nunca subiu num ringue, nunca teve seus dentes arrancados, suas costelas quebradas. Seu único talento consistia em conferir e aplicar o dinheiro das lutas. Quando eu perguntava se algum dia eu sairia vencedor de alguma luta ele dizia que minha hora estava chegando. E eu ali, levando porrada dos caras mais brabos, há mais de cinco anos. Todo mundo sabia que o boxe tinha aquelas coisas, tipos como Don Rei arrumando as lutas, decidindo quem venceria, quem perderia e em que round, controlando apostas…

Don Rei sorriu lá de sua confortável cadeira estofada. Quando levei o primeiro soco meu nariz partiu para o lado esquerdo, indicando a direção de alguma saída, meu queixo quase abandonou a cara, meu olho inchou na hora, mas a tempo de ver os olhos de Don Rei brilhando, suas pupilas saltando em forma de cifrões fazendo aquele ruído de caixa registradora.

Perdi mais aquela luta e Don Rei embolsou a fortuna da bilheteria. Fez o costumeiro pagamento irrisório a todos os envolvidos na trama. Ele dominava a cena do boxe e era respeitado. Temido, melhor dizendo. Ninguém ousava questionar os valores que ele pagava, mas naquele dia eu reclamei:

Não me leve a mal, Don Rei, mas acho pouco o dinheiro que ganho pra ficar neste estado deplorável.

Don Rei olhou lá de cima de sua arrogância e falou soprando a fumaça de seu charuto:

Pouco? Como assim? Você nunca ganhou o que ganha aqui naquele seu trabalho de estivador. Eu pago muito mais pra você ficar sete minutos num ringue do que você ganhava o dia inteiro tendo que carregar aquelas caixas pesadas lá no cais do porto. Além do mais, esta é a última luta que você perde. A partir de agora serão só vitórias! E tudo aquilo que as vitórias trazem: grana, carros, mulheres, drogas mais sofisticadas que a sua cachaça de boteco. Agora vá que eu tenho que pensar na sua carreira, campeão!

Exultei com a notícia. Finalmente, minha hora estava chegando. Saí do luxuoso escritório de Don Rei e me dirigi à boca pra comprar crack. Eu usava aquilo ultimamente. Me enfiei no meu barraco, torrando as pedras e sonhando com minha brilhante carreira que começaria a deslanchar da próxima luta em diante. Imaginava os troféus numa grande sala numa das minhas casas. Imaginava pôsteres gigantescos em que eu aparecia olhando o adversário estendido na lona. Imaginava meu nome sendo aclamado pelos especialistas. Imaginava minha história incluída na história do boxe. Imaginava…

A polícia chegou arrombando a porta, acabou com minha imaginação e me deu o maior flagrante. Foi logo me batendo e me algemando. A quantidade de crack encontrada comigo era muito grande e fui preso por tráfico.

Na penitenciária, encontrei muitos dos meus antigos adversários, todos pugilistas candidatos a campeão que Don Rei foi descartando pelo caminho. Ele nos manda uns cigarros de vez em quando junto com alguns jornais especializados em boxe para que fiquemos informados dos novos campeões e derrotados fabricados em série.

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