A pretexto de bolos de chocolate – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Esta história aconteceu num tempo e lugar muito remotos. Fui acusado de ter comido um bolo de chocolate. Nem tive tempo de alegar o fato de que não gostava de bolo, muito menos de bolo de chocolate. Era tudo meio confuso naquela época e nada do que pudéssemos dizer, por mais plausível que fosse, alteraria qualquer decisão do Governo Central. Tal governo havia inaugurado uma era de insegurança e delações premiadas, suspeitas e acusações que não precisavam ser fundamentadas para que fossem acatadas e executadas. Decretos aleatórios ressuscitaram leis que há muito tempo haviam sido revogadas. A criação da Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate foi mais um abuso daquele governo ignorante e incompetente. O bolo de chocolate tinha sido elevado ao status de iguaria divina, destinada somente aos altos escalões do Governo Central e os cidadãos comuns jamais poderiam comer.

A Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate nem quis me ouvir, não deu a menor bola pra minha declaração de inocência. Me levou preso sem a menor cerimônia, sem que eu tivesse chance de contratar o advogado de porta de cadeia que mendigava bem em frente à prisão de segurança máxima onde eram trancafiados os pecadores comedores de bolos de chocolate.

Fui levado a uma cela onde só cabiam eu e minha autoestima. Como minha autoestima não ocupava muito espaço, fiquei relativamente confortável e nem tive motivo pra reclamar, a não ser do rato que toda noite vinha me lembrar que aquilo era uma cela imunda. Fiquei ali por alguns meses sem saber o que seria resolvido a meu respeito, ingerindo a ração de carne podre que nutria minha covardia, meu medo e meu desalento, cada dia mais vorazes.

Certa vez, olhei pela janela a noite que se estendia lá fora. Estava iluminada por um clarão que não vinha da lua. Era até perigoso ficar olhando a lua, pois os admiradores do luar foram postos na marginalidade pelo governo. A luz também não vinha dos postes que ladeavam os caminhos que levavam à prisão. Estiquei bem o pescoço, pude olhar mais além e o que vi me deixou estarrecido. Era uma cruz de madeira pegando fogo. Ao redor, vários cavaleiros vestidos de uniformes e capuzes brancos e empunhando rifles. Só poderia ser a Ku Klux Klan, mas, apesar da KKK se encaixar perfeitamente naqueles tempos sombrios, ela só seria criada muito tempo depois.

Me recolhi ao cantinho da cela, onde o rato tinha acabado de urinar, e fiquei tremendo de medo de tudo aquilo, tentando dormir e acordar livre daquele pesadelo. De repente, um grupo de soldados entrou na minha cela, tomando Coca-Cola e disputando quem arrotava mais alto. Foi aí que o comandante olhou pra mim e berrou:

– Chegou a sua vez!

Pronto. Estava tudo acabado pra mim. Me levantei resignado e também louco pra que aquilo tudo terminasse. Estendi minhas mãos pra que os soldados me conduzissem até o local da execução. Mas o que ocorreu foi que o comandante me entregou uma garrafa de Coca-Cola e berrou novamente:

– Chegou a sua vez!

Aí compreendi. Tinha chegado a minha vez de tomar a Coca-Cola e participar do concurso de arroto. Então o comandante arrotou sua sentença:

– Se você conseguir arrotar mais alto do que nós, ganhará sua carta de alforria, sua liberdade, o perdão do Governo Central!

Claro que não acreditei que estavam me concedendo uma chance de escapar daquela situação, mas não pensei duas vezes (mesmo porque não era de pensar muito): virei a garrafa de Coca-Cola todinha na minha garganta sedenta e me preparei pra caprichar no arroto.

E foi mesmo o maior arroto que aquela região já havia escutado. Os soldados, todos arrotões de primeira grandeza, ficaram admirados com minha capacidade. Um especialista afirmou categoricamente que eu atingira uma nota ainda não registrada em toda a história da música, fato que só será superado num futuro distante, quando aparecerá um cara chamado Freddie Mercury.

Aí a minha vida deu uma reviravolta. Saí triunfalmente da prisão e me tornei um virtuose do arroto. Muita gente vinha tomar lições de arroto comigo e, dependendo da dedicação, em pouco tempo muitos alunos diplomados pela minha Universidade Musical do Arroto passaram a ocupar os mais cobiçados lugares nas maiores orquestras de arroto conhecidas na época.

Quando o Governo Central foi derrubado e o bolo de chocolate finalmente liberado pra toda a população, eu o introduzi nas lições de arroto. A combinação bolo de chocolate e Coca-Cola fez tanto sucesso que até eu passei a simpatizar com bolos de chocolate.

Assim, terminei meus dias, refestelado na glória, confortavelmente instalado em meu castelo, tendo aos meus pés os serviços de um batalhão de criados e a atenção de um número infindável de admiradores. Quanto ao arroto, passei a direção da minha universidade aos alunos mais destacados. Agora estou aposentado, só arrotando mesmo por esporte e pra não perder a embocadura.

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