O HOMEM IMPASSÍVEL – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Chega e depara com ele sentado como sempre no patamar acima da escada. Sobe devagar e aguarda, visivelmente nervosa, uma palavra. Por toda a casa ecoa o toque dos saltos altos nos degraus de mármore. Ela para, tenta pôr um cigarro na piteira e se treme. O isqueiro nega fogo. Rápido, num gesto brusco, joga-o por cima da cabeça do homem sentado.

– Desgraçado! Quer que eu me desculpe, não é mesmo? Você pensa que é um rei aí em seu trono de ouro. Você é um crápula até no seu silêncio.

Sua voz é forte, ainda que trêmula. Parece que bebeu além da conta. Ela ronda o homem parado. Apanha o isqueiro e acende o cigarro desejado.

– Por que não diz alguma coisa? Quer me matar, assassino! Você põe em mim a culpa de todas as desgraças, me transformando em palmatória do mundo, em pivô de todos os crimes cometidos. Que foi que eu fiz? Anda, responde, asqueroso!

Ele está impassível, como se paradoxalmente saboreasse o silêncio da dor de suas derrotas. Talvez alimente ali múltiplas sensações da possibilidade de uma vitória. O silêncio é mórbido, é carregado de sentimentos duros e ausentes de expressões gestuais. Ele não é mudo. Seu cérebro está prestes a explodir. De sua boca pode sair um universo de palavras sistematizadas. Mas ele está altivo como um silenciário de Bizâncio. É iminente o risco de adivinhar o que se oculta por trás de sua mudez.

– Fala velhaco! O que você disser não me atingirá o caráter. O que eu faço é só da minha conta. Eu agora sou a dona da minha vida, está ouvindo? Não dependo do dinheiro que você acumulou durante todos esses anos, especulando com a inflação e explorando os pobres da periferia com seu comércio de alimentos podres. Eu tenho direitos e sei usá-los.

Ela cambaleia, odiando a ostensividade do silêncio que flui com sua revolta. E o ódio circunda o espaço da casa, concretizando-se em cada molécula de ar.

Porco! O que você fez é abominável. Sei de suas mazelas, de seus atos condenáveis e calculistas, estimulados por essa mente doentia, louca. Nunca houve a supremacia da razão na sua conduta. Eu conheço você há muito tempo. Cada ação sua significou o prejuízo de alguém. Você nunca prestou… Aproveitador barato! Mesmo que fique aí, parado e silencioso como uma cobra, posso perceber que na sua cabeça ferve o ódio na mesma intensidade do que eu sinto por você…

No olhar do homem não há sentimento de culpa. Não há remorsos. É mentira dela. Não se pode adivinhar o que pensa essa cabeça esculpida de impassividade. Um olhar reto sai do rosto de pedra e penetra como um raio no corpo da mulher. Ela se assusta o olha o homem. Permanecem assim por segundos eternos.

Súbito ela gargalha no meio do silêncio. De sua cabeça parece sair casca de ódio, uma cascata de veneno na regurgitação do que engolira há séculos. Não há tempero. O veneno é cru e real. É unívoco.

Rola no chão sobre prantos latentes, rindo. É espetáculo grotesco que o homem ali observa sem ridicularizar. A mulher se levanta, se recompõe e fixa no homem um olhar estranho.

– Você ri de mim, não é? Pensa que estou bêbada, canalha?! Eu estou sóbria. Estou aqui e assim por sua causa. Lembra disso? E disso?

Pergunta tirando a blusa de seda negra. Roda em volta de si mesma e gargalha mais alto ainda, se livrando do sutiã. Deixa transparecer uma enorme e tufada cicatriz acima do seio esquerdo e mostra a ausência de duas falanges nos dedos da mão direita.

Cão desgraçado! Por sua causa vivo só e sem ninguém. Todo homem que sai comigo se enjoa do meu corpo quando descobre estas aberrações. Claro que evito que eles descubram. Mas não posso viver só de artifícios. Sou uma mulher ainda jovem e bela…

Ela ri. Ela se despe com sensualidade e agride com palavras o homem que permanece no seu silêncio de chumbo. Agora é libidinosa a sua forma de agredir. Ela está completamente despida, dançando ao som de um tango inexistente. E se aproxima do homem sentado.

O ambiente se gasta por si só. A luz arrefece aos poucos, dando vez a uma tonalidade lânguida, onde quase não se pode ver a expressão harpíaca da mulher que dança um tango. Ela deseja alguma coisa. Talvez sexo. Mas o homem não se levanta e continua silente.

Num gesto brusco, ela se projeta em direção ao sexo do homem. E o homem não se move, não se defende, não faz a mínima força. Ele se omite a qualquer ração. Deixa ela apalpar o seu sexo e não se espanta com os gestos de carinho.

A mulher desabotoa a braguilha como se abrisse uma arca prenha de segredos. Acaricia com suavidade os pelos dele, procurando o cilindro de carne. Beija-o, flanelando com a língua o prepúcio esquecido de milênios, sentindo o fluir do sangue fazer crescer o obsoleto instrumento. Ela solta os cabelos com a mão incompleta e se entrega a uma compulsiva destemperança no ato da felação. Sua boca encapa a complexidade de duas vidas. Ela pratica nesse instante um desejo, existente até então apenas nas suas fantasias. Ela observa ardentemente um rio ilusório. Um mar de chamas fulgurantes. Dentro dela há um mundo confuso entre a razão do ódio e as carícias do agora, que se metamorfosearam em ação de desreprimento. Não há litígio, no entanto, no latifúndio de sua vida, porque efloresce passional e desmedidamente, pela primeira vez, um estranho sentimento de entrega àquele homem.

O homem não gesticula. Nem fala. Nem expressa prazer ou dor. Está impassível.

Ela se superestima, se achando mirífica na sua experiência com esse homem. O que iniciou com ódio, com pleno desejo de vingança se transforma em uma sensação de querer mais, de ousar a probabilidade de outras descobertas. E então ela ronda o excitamento em si para se masturbar lentamente sobre os lábios vaginais que parecem balbuciar a alegria do encontro com o prazer.

Ela lembra. Ele está bêbado ao volante. Ela estremece. Vê focos de faróis surgindo na escuridão. Ela sorve um líquido grosso e se encandeia. Tem absoluta necessidade de líquidos e luzes. O mundo corre à sua frente num tropel infatigável. O mundo é um cavalo louco que volta com a velocidade do raio para rebentar seu peito e olhos enceguecidos de torpor. Ela grita com o choque inevitável, e se prostra, exânime, no chão.

Agora ela levanta, imputando ao homem sua sorte nefasta.

– Desgraçado! Desgraçado!

Sai com os olhos crispados de ódio, deixando cair pingos de lágrimas sobre o carpete do segundo andar. Ela bate com força a porta do quarto. Lá fora troveja. É quase manhã. A chuva não abafa completamente o choro incontrolável.

Então o homem antes impassível se move. Esboça um leve sorriso e despenca pela escadaria de mármore como um fardo, rolando em ritmo de tango, sem se desvencilhar, porém, da cadeira de rodas em que sentava.

*Publicado no livro “O Bálsamo”.

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